Em "O silêncio de Iara", de Guinga e LuisFelipe Gama, o sujeito canta: "Calada / Na sombra / Dos dias / Iara / Querida / Não durmas não / Ah! / Não! / (...) / Se ao menos / Iara / Teus lábios / Parados / Soprassem / Aonde estás, meu bem". O pedido e o desejo do sujeito registram os medos de todo ouvinte: o silêncio da sereia e o abandono.
Como sabemos, Iara é um dos nomes da rainha do mar. Mas Iara tem sua mitologia urdida no folclore da Amazônia. De origem indígena, Iara é sereia de rio. Porém, como não poderia deixar de ser, e a título de curiosidade, de cabelos longos e pretos e de olhos castanhos, Iara é descrita como sendo "de cabeleira de ouro e corpo frio / (...) Com os verdes olhos úmidos", pelo poeta parnasianoOlavoBilac, no poema que leva o nome da sereia.
Seja como for, guardadas as devidas intenções nas apropriações e leituras do mito, Iara é sereia de água doce. E o sujeito criado por Guinga e Gama roga pelo canto dela: pede o não emudecimento da consciência-de-si, pois é na canção que o sujeito se (re)descobre como um ser "na sombra dos dias". Calada, Iara mata o conhecimento que só existe no sopro da voz.
Mais adiante, no mesmo disco - NoturnoCopacabana (2003) - outro sujeito canta os versos da canção de Guinga e Francisco Bosco que dá nome ao disco e reafirma o desejo de ouvir o canto da sereia: "Noite, à beira-mar / Carros vão passar / Por vigilantes sereias / Uns vão seguir / Sem escutar / Com algodão nos ouvidos / Outros vêm morrer / Vêm se afogar / No mar de Copacabanaanaana".
Aqui, sereia (Ana: canora) e musa (Copacabana: narradora) se embaralham, mas não se misturam: enquanto a primeira canta o sujeito de dentro do mar; a outra, por sua vez, inspira o canto do sujeito. Ambas confirmando o papel essencial da phoné, do canto praticado em viva voz.
Interessante notar que "Ana" surge do eco da pronúncia da palavra "Copacabana". Ou seja, A ninfa Eco entra na história para repetir o cantar-desejo do sujeito: ter uma sereia que o cante. Voz que fragmenta a voz do cantor, Eco desenha "Ana" no rebate sonoro da língua. Reverberação sonora do sujeito, Eco corresponde ao ego deste sujeito.
Sobre o assunto, Adriana Cavarero anota: "Mais que repetir palavras, Eco repete sons. Se esses sons, separados do contexto da frase, recompõem-se em palavras que ainda significam alguma coisa, ou melhor, significam outra coisa, esse é um aspecto que diz respeito a quem ouve, não à ninfa. (...) A re-vocalização é, assim, uma dessemantização" (Vozes plurais, p. 195-196).
É deste ato não destinado ao sentido que surgem a canção necessária e a canção desnecessária. O logos de cada uma está tanto na astúcia retórica de cada sujeito, quanto na produção de sentido efetuada pelo ouvinte. "A música ilusória / Quase te atravessa / Sem você dar conta", diz o sujeito de "Canção desnecessária".
Cúmplice do sujeito que pede o canto de Iara e do outro que ouve Ana, o sujeito de "Canção desnecessária", de Guinga e Mauro Aguiar, guardada no mesmo disco das outras, abre seu canto dizendo, diante do silêncio do outro: "Enlace o meu silêncio / E valse a valsa avessa / Que te fiz em pranto".
Metacanção, "Canção desnecessária" desdobra na sonoridade aquilo que é vocalizado - "É valsa em si contrária". E é tomado pela sonoridade que o sujeito produz que ele próprio espera que seu ouvinte se permita ser tomado pelo som do grande amor. Insana e mansa, a valsa embala - dois para lá, três para cá - cantor e cantado. Eis que surge a canção desnecessária, pequena diante do pulsar de um coração.
É na voz de Guinga interpretando a canção que emerge a unicidade do sujeito e, consequentemente, sua importância entre "tanta antimatéria". Desde modo, a "canção desnecessária" sustenta involuntariamente os amantes, posto que os distingue. "Amor que vem na valsa / Mas que só se confessa / Quando a valsa cessa" - no silêncio, olhos nos olhos. A esfera da voz dispara a esfera do sentir.
Importa lembrar que, tempos depois de Mauro Aguiar dar letra à melodia de Guinga, Zé Miguel Wisnik trabalhou a mesma música e compôs a "Canção necessária", cujos versos "se acaso eu te sentir a ponto de fugir / definitivamente / no último segundo / eu grito: pára o mundo / que eu só sei te amar" cantam e contam a urgência de recompor um tempo perdido, de encontrar o encaixe harmônico dos amantes. Amantes que, para além do encontro de gêneros sexuais, são a música e o verbo - amparados na voz de alguém.
"Lancei meias palavras / (...) / prometendo mais / querendo muito mais // Querendo o teu regaço / que num minuto sem igual / você me lesse / não me esquecesse / adivinhasse enfim / não desistisse mais de mim / e ouvisse no meu canto / as tontas entrelinhas / que silenciei / por ti", diz o sujeito de "Canção necessária" ampliando os sentidos de "Canção desnecessária". Uma é canto paralelo da outra. E as duas são o desejo de todo indivíduo: ter uma Iara, uma Ana, um outro em quem se possa ressoar e ir ser no mundo.
Seja como for, guardadas as devidas intenções nas apropriações e leituras do mito, Iara é sereia de água doce. E o sujeito criado por Guinga e Gama roga pelo canto dela: pede o não emudecimento da consciência-de-si, pois é na canção que o sujeito se (re)descobre como um ser "na sombra dos dias". Calada, Iara mata o conhecimento que só existe no sopro da voz.
Mais adiante, no mesmo disco - NoturnoCopacabana (2003) - outro sujeito canta os versos da canção de Guinga e Francisco Bosco que dá nome ao disco e reafirma o desejo de ouvir o canto da sereia: "Noite, à beira-mar / Carros vão passar / Por vigilantes sereias / Uns vão seguir / Sem escutar / Com algodão nos ouvidos / Outros vêm morrer / Vêm se afogar / No mar de Copacabanaanaana".
Aqui, sereia (Ana: canora) e musa (Copacabana: narradora) se embaralham, mas não se misturam: enquanto a primeira canta o sujeito de dentro do mar; a outra, por sua vez, inspira o canto do sujeito. Ambas confirmando o papel essencial da phoné, do canto praticado em viva voz.
Interessante notar que "Ana" surge do eco da pronúncia da palavra "Copacabana". Ou seja, A ninfa Eco entra na história para repetir o cantar-desejo do sujeito: ter uma sereia que o cante. Voz que fragmenta a voz do cantor, Eco desenha "Ana" no rebate sonoro da língua. Reverberação sonora do sujeito, Eco corresponde ao ego deste sujeito.
Sobre o assunto, Adriana Cavarero anota: "Mais que repetir palavras, Eco repete sons. Se esses sons, separados do contexto da frase, recompõem-se em palavras que ainda significam alguma coisa, ou melhor, significam outra coisa, esse é um aspecto que diz respeito a quem ouve, não à ninfa. (...) A re-vocalização é, assim, uma dessemantização" (Vozes plurais, p. 195-196).
É deste ato não destinado ao sentido que surgem a canção necessária e a canção desnecessária. O logos de cada uma está tanto na astúcia retórica de cada sujeito, quanto na produção de sentido efetuada pelo ouvinte. "A música ilusória / Quase te atravessa / Sem você dar conta", diz o sujeito de "Canção desnecessária".
Cúmplice do sujeito que pede o canto de Iara e do outro que ouve Ana, o sujeito de "Canção desnecessária", de Guinga e Mauro Aguiar, guardada no mesmo disco das outras, abre seu canto dizendo, diante do silêncio do outro: "Enlace o meu silêncio / E valse a valsa avessa / Que te fiz em pranto".
Metacanção, "Canção desnecessária" desdobra na sonoridade aquilo que é vocalizado - "É valsa em si contrária". E é tomado pela sonoridade que o sujeito produz que ele próprio espera que seu ouvinte se permita ser tomado pelo som do grande amor. Insana e mansa, a valsa embala - dois para lá, três para cá - cantor e cantado. Eis que surge a canção desnecessária, pequena diante do pulsar de um coração.
É na voz de Guinga interpretando a canção que emerge a unicidade do sujeito e, consequentemente, sua importância entre "tanta antimatéria". Desde modo, a "canção desnecessária" sustenta involuntariamente os amantes, posto que os distingue. "Amor que vem na valsa / Mas que só se confessa / Quando a valsa cessa" - no silêncio, olhos nos olhos. A esfera da voz dispara a esfera do sentir.
Importa lembrar que, tempos depois de Mauro Aguiar dar letra à melodia de Guinga, Zé Miguel Wisnik trabalhou a mesma música e compôs a "Canção necessária", cujos versos "se acaso eu te sentir a ponto de fugir / definitivamente / no último segundo / eu grito: pára o mundo / que eu só sei te amar" cantam e contam a urgência de recompor um tempo perdido, de encontrar o encaixe harmônico dos amantes. Amantes que, para além do encontro de gêneros sexuais, são a música e o verbo - amparados na voz de alguém.
"Lancei meias palavras / (...) / prometendo mais / querendo muito mais // Querendo o teu regaço / que num minuto sem igual / você me lesse / não me esquecesse / adivinhasse enfim / não desistisse mais de mim / e ouvisse no meu canto / as tontas entrelinhas / que silenciei / por ti", diz o sujeito de "Canção necessária" ampliando os sentidos de "Canção desnecessária". Uma é canto paralelo da outra. E as duas são o desejo de todo indivíduo: ter uma Iara, uma Ana, um outro em quem se possa ressoar e ir ser no mundo.
***
Canção desnecessária
(Guinga / Mauro Aguiar)
Enlace o meu silêncio
E valse a valsa avessa
Que te fiz em pranto
É valsa em si contrária
Só pisando em falso
Se pressente o chão
A música ilusória
Quase te atravessa
Sem você dar conta
E tanta antimatéria
Sem querer se apossa
Do seu coração
Esqueça o tempo então
E valse um sentimento
Por dentro a valsa esquece o som
Extemporânea
Imaginária
Etérea como o amor
Até quem sabe o Grande Amor
Amor que vem na valsa
Mas que só se confessa
Quando a valsa cessa
Amor
Abrace o precipício
E valse a valsa imersa
Num silêncio insano
É valsa involuntária
mansa em seu ofício
de soar em vão
Canção desnecessária
Quase sempre acessa
Seu fundo oceano
Se você perde o senso
Nasce na memória
Súbito salão
Esqueça o tempo então
(...)
A sorte está lançada
A valsa está cansada
Logo vai cessar
No próximo compasso
Vai sumir no espaço
Vai se dissipar
Enlace o universo
E valse a valsa imensa
Que te fiz sonhando
Por mais que não pareça
nessa valsa avessa
Pulsa um coração
(Guinga / Mauro Aguiar)
Enlace o meu silêncio
E valse a valsa avessa
Que te fiz em pranto
É valsa em si contrária
Só pisando em falso
Se pressente o chão
A música ilusória
Quase te atravessa
Sem você dar conta
E tanta antimatéria
Sem querer se apossa
Do seu coração
Esqueça o tempo então
E valse um sentimento
Por dentro a valsa esquece o som
Extemporânea
Imaginária
Etérea como o amor
Até quem sabe o Grande Amor
Amor que vem na valsa
Mas que só se confessa
Quando a valsa cessa
Amor
Abrace o precipício
E valse a valsa imersa
Num silêncio insano
É valsa involuntária
mansa em seu ofício
de soar em vão
Canção desnecessária
Quase sempre acessa
Seu fundo oceano
Se você perde o senso
Nasce na memória
Súbito salão
Esqueça o tempo então
(...)
A sorte está lançada
A valsa está cansada
Logo vai cessar
No próximo compasso
Vai sumir no espaço
Vai se dissipar
Enlace o universo
E valse a valsa imensa
Que te fiz sonhando
Por mais que não pareça
nessa valsa avessa
Pulsa um coração
Leonardo, passo apenas para dar os parabéns pelo blog e pelo trabalho de interpretação, numa época em que há tão pouco além de louvação irrefletida e repetição de releases, e mais ainda fechando o círculo e especificando o alvo como você fez. O repertório do blog é excepcional, e o das análises ídem. Botei o link do Lendo Canção no Sobre a Canção (o meu). Abraços.
ResponderExcluirAlém de ser fã de mestre Caetano, sou também fã do Guinga, parabéns pela análise, Davino, essa música é sensacional!
ResponderExcluir.
William Rogério