O sujeito de "Nu com minha música", de Caetano Veloso, pensa em "ficar quieto um pouquinho / lá no meio do som". Ele quer restituir uma bolha sonora protetora e paradisíaca onde ele possa ser e estar no mundo.
Semelhante ao sujeito de "Se eu quiser falar com Deus", de Gilberto Gil, o sujeito criado por Caetano engendra um ato ritualístico - "salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom" - para o contato com a sua música (interna) individual e intransferível. Deste lugar - "que vai de tom a tom" - o sujeito vislumbra o bem e a esperança, apesar da dor.
"Nu com a minha música" - com seus versos "Nu com meu violão, madrugada / Nesse quarto de hotel / Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu" - recupera outra canção de Caetano: "Noite de hotel". Em ambas há o tema da solidão do cancionista: os bastidores das angústias que antecedem e dão motor as canções - "As vezes é solitário viver", diz o sujeito, para depois concluir: "Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim / Vaca, manacá, nuvem, saudade / Cana, café, capim / Coragem grande é poder dizer sim".
Como Cláudia Fares anota no livro O arco da conversa: "O importante é observar o que o poeta faz das evocações ["vaca, manacá..."] que lhe fazem companhia e que só dele dependem". Tais evocações estreitam o estado de pertencimento ao lugar (estranho) onde o sujeito está. Ainda para a autora: "Percorrer o 'sem fim' em total ignorância torna-se o destino do saudoso-solitário" que equilibra a dificuldade da artesania poética com a necessidade de expressão cancional.
Tudo precisa ser emoldurado por uma passionalização melódica tocante e por uma dicção enfadada e triste (timbres baixos) comoventes. Como está registrado tanto na versão do próprio Caetano Veloso (1981), quanto na versão gravada por Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart, para o disco Red hot + Rio 2 (2011).
No entanto, é justamente por enfatizar na solidão que, mesmo gostando muito das interpretações, encontro um equívoco na gravação coletiva de "Nu com a minha música" feita por Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart. Salvo engano, não há aqui aquela solidão povoada (por outros sujeitos: duplos e invisíveis), que Monique Le Moing identifica na obra de Pedro Nava, por exemplo.
Ou seja, na canção não há espaço para a permuta de vozes, mesmo que seja com outros cancionistas (pares do sujeito da canção) na tradução de uma dor que é intransferível. Ou não? Parafraseando Octávio Paz, via tradução de Haroldo de Campos, podemos dizer "Me canta o que eu canto". Dividir tal acontecimento - compartilhar os vocais - é romper isso: seria a explosão da ilha sonora que o sujeito montou para si. E, portanto, ele não estaria mais sozinho como tenta expor.
O sujeito de "Nu com a minha música" é um cancionista em seu momento mágico de mergulho para dentro do espaço íntimo, daí a compressão de referências ("vaca, manacá..."), de onde sairá a canção ora executada, cantada. Ele combina e alterna irregularidade verbal, melódica e vocal com progressão homogênea a fim de figurativizar o seu estado interno.
Sempre partindo, em turnê, entre um show e outro, cantor que é, o sujeito da canção sente o peso de estar sozinho. Como anotou Octavio Paz, em O labirinto da solidão e Post-scriptum: "A dureza e a hostilidade do ambiente - e esta ameaça, oculta e indefinível, que sempre flutua no ar - obrigam a que nos fechemos para o exterior".
"Perceber é conceber" e é deste modo que a única saída possível é a canção, a arte: de onde o sujeito pode se inclinar para o lado do sim à vida - "Sempre só e a vida vai seguindo assim".
"Nu com a minha música" - com seus versos "Nu com meu violão, madrugada / Nesse quarto de hotel / Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu" - recupera outra canção de Caetano: "Noite de hotel". Em ambas há o tema da solidão do cancionista: os bastidores das angústias que antecedem e dão motor as canções - "As vezes é solitário viver", diz o sujeito, para depois concluir: "Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim / Vaca, manacá, nuvem, saudade / Cana, café, capim / Coragem grande é poder dizer sim".
Como Cláudia Fares anota no livro O arco da conversa: "O importante é observar o que o poeta faz das evocações ["vaca, manacá..."] que lhe fazem companhia e que só dele dependem". Tais evocações estreitam o estado de pertencimento ao lugar (estranho) onde o sujeito está. Ainda para a autora: "Percorrer o 'sem fim' em total ignorância torna-se o destino do saudoso-solitário" que equilibra a dificuldade da artesania poética com a necessidade de expressão cancional.
Tudo precisa ser emoldurado por uma passionalização melódica tocante e por uma dicção enfadada e triste (timbres baixos) comoventes. Como está registrado tanto na versão do próprio Caetano Veloso (1981), quanto na versão gravada por Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart, para o disco Red hot + Rio 2 (2011).
No entanto, é justamente por enfatizar na solidão que, mesmo gostando muito das interpretações, encontro um equívoco na gravação coletiva de "Nu com a minha música" feita por Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart. Salvo engano, não há aqui aquela solidão povoada (por outros sujeitos: duplos e invisíveis), que Monique Le Moing identifica na obra de Pedro Nava, por exemplo.
Ou seja, na canção não há espaço para a permuta de vozes, mesmo que seja com outros cancionistas (pares do sujeito da canção) na tradução de uma dor que é intransferível. Ou não? Parafraseando Octávio Paz, via tradução de Haroldo de Campos, podemos dizer "Me canta o que eu canto". Dividir tal acontecimento - compartilhar os vocais - é romper isso: seria a explosão da ilha sonora que o sujeito montou para si. E, portanto, ele não estaria mais sozinho como tenta expor.
O sujeito de "Nu com a minha música" é um cancionista em seu momento mágico de mergulho para dentro do espaço íntimo, daí a compressão de referências ("vaca, manacá..."), de onde sairá a canção ora executada, cantada. Ele combina e alterna irregularidade verbal, melódica e vocal com progressão homogênea a fim de figurativizar o seu estado interno.
Sempre partindo, em turnê, entre um show e outro, cantor que é, o sujeito da canção sente o peso de estar sozinho. Como anotou Octavio Paz, em O labirinto da solidão e Post-scriptum: "A dureza e a hostilidade do ambiente - e esta ameaça, oculta e indefinível, que sempre flutua no ar - obrigam a que nos fechemos para o exterior".
"Perceber é conceber" e é deste modo que a única saída possível é a canção, a arte: de onde o sujeito pode se inclinar para o lado do sim à vida - "Sempre só e a vida vai seguindo assim".
***
Nu com a minha música
(Caetano Veloso)
Penso em ficar quieto um pouquinho
Lá no meio do som
Peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom
Passo devagarinho o caminho
Que vai de tom a tom
Posso ficar pensando no que é bom
Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música, afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou
Nu com meu violão, madrugada
Nesse quarto de hotel
Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu
O estado de São Paulo é bonito
Penso em você e eu
Cheio dessa esperança que Deus deu
Quando eu cantar pra turba de Araçatuba, verei você
Já em Barretos eu só via os operários do ABC
Quando chegar em Americana, não sei o que vai ser
Ás vezes é solitário viver
Deixo fluir tranquilo
Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
Cana, café, capim
Coragem grande é poder dizer sim
(Caetano Veloso)
Penso em ficar quieto um pouquinho
Lá no meio do som
Peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom
Passo devagarinho o caminho
Que vai de tom a tom
Posso ficar pensando no que é bom
Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música, afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou
Nu com meu violão, madrugada
Nesse quarto de hotel
Logo mais sai o ônibus pela estrada, embaixo do céu
O estado de São Paulo é bonito
Penso em você e eu
Cheio dessa esperança que Deus deu
Quando eu cantar pra turba de Araçatuba, verei você
Já em Barretos eu só via os operários do ABC
Quando chegar em Americana, não sei o que vai ser
Ás vezes é solitário viver
Deixo fluir tranquilo
Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
Cana, café, capim
Coragem grande é poder dizer sim
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