31 março 2011

Ela é minha cara

"Ela é minha cara", de Ronaldo Bastos e Celso Fonseca, recolhe e dá um passo além na mitologia da maria-boa, da maria-escandalosa. Da mulher que quando passa mexe ("causa rebuliço") com o juízo do homem que vai trabalhar. Ela é a poesia que balança e acende desejos interferindo na vida ordinária. Sereia, "seu palácio vai do Leme ao Pontal": não há nada igual.
A canção dá um passo além quando brinca com o mito de Narcissos: aquele que, punido por Afrodite, enamorou-se por sua própria imagem - passando a achar "feio o que não é espelho". Se Narcissos, tentando aproximar-se da imagem, morre afogado em águas tranquilas, o sujeito de "Ela é minha cara" canta a flor do desejo: da perda-de-si diante do espelho.
Embriagado - por uma cachaça que desce redondo -, o sujeito investe nas filigranas que unem a imagem dela (da "fulana de tal": o nome pouco importante) à imagem que ele próprio tem de si. A visão desta mulher leva o sujeito para dentro do espelho: para o país das delícias.
Tal mensagem encontra na voz de Mart´nália (Madrugada, 2008) a tradução exata. Menino do Rio, Mart'nália androginiza o canto. Desenha, na dicção malandra e no suingue carioca, a figura da mulher que é uma extensão de si: "há quem diga que parece um rapaz".
"Ela é minha cara", diz o sujeito. "Cara" como sinônimo de imagem e semelhança física, mas também de postura diante da vida: jeito de corpo. Ela "é gente bem", "é o colírio da moçada", "é o jazz", "é só a mina que enfeitiçou o coração", afirma o sujeito.
Sujeito e musa se aproximam de viés: depois do susto - da potência da cachaça descendo pela garganta - a afirmação da vontade - "a minha mais entre as dez mais". No final, no completo despudor, o sujeito já não tem receio de nada: "Vai que um dia pinta um clima / Ela vem parar na minha / e eu vou comer na sua mão".
A tal mulher de bem que não dá mole a ninguém, mas que quando chega pára a batucada, tenciona o desejo inconfesso - reprimido e recalcado - naquilo que não sabemos definir. O modo - entre o sim e o não - com que a mulher afirma a própria vida, condensando em si a mina e o rapaz, desestabiliza as certezas que a sociedade cria para si.
Ela coloca todos diante do espelho: indaga nossos desejos, põe mundos de pernas para o ar. A verdade é posta em questão. Mesmo (e por isso) parecendo um rapaz, "ela é o colírio da moçada" e "quem fala é louco pra encarar", entrega o sujeito.
"Ela é minha cara" articula uma rede inquietante dos nossos desejos em um labirinto de espelhos. Nudez total do sujeito e nossa: do ouvinte cheio de verdades porosas.



***

Ela é minha cara
(Ronaldo Bastos / Celso Fonseca)

Causa reboliço aonde passa
desce mais redondo que a cachaça
Ela é a fulana de tal
o seu palácio vai do Leme ao Pontal
É a minha mais entre as dez mais
Ela é gente bem
Por isso mesmo não dá mole a ninguém
Mas um dia eu faço ela sambar
Ela é o colírio da moçada
Quando chega pára a batucada
Ela é o jazz
E há quem diga que parece um rapaz
Mas quem fala é louco pra encarar
Ela é minha cara
e nem me olha quando a gente se esbarra
Mas um dia eu faço ela sambar
Tira onda de grã-fina
Mas para mim é só a mina
que enfeitiçou meu coração
Vai que um dia pinta um clima
Ela vem parar na minha
e eu vou comer na sua mão

24 março 2011

Eu sou melhor que você

Tudo é ficção. Somos máquinas de inventar. Acreditamos nas nossas invenções. Somos poetas e fingimos sentir o que deveras sentimos. Noutro plano, somos o ator que "não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no sexo imposto".
Esta máxima de Valère Novarina - em Carta aos atores e Para Louis de Funés -, lançada depois do autor se perguntar "por que se é ator?", diz muito do (mais que) humano em nós: inventores de palcos e cenários onde possamos viver nossos desejos.
Penso nisso enquanto ouço a canção "Eu sou melhor que você", de Maurício Pacheco. Gravada por Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Alexandre Kassin - no projeto + 2, Máquina de escrever música (2000) -, a canção revela um sujeito estacionado no canto da comparação adolescente e humana daquilo que vai de nós para o outro.
Aliás, a gestualidade vocal cambiante de Moreno, entre agudos e graves típicos da fase em que a voz está em processo de (in)definição, tenciona sobremaneira o que é cantado pelo sujeito da canção: o medo de ser igual, ou inferior, ao outro.
Somos máquinas de cantar. Queremos reconhecimento. Cantamo-nos para afirmar a nossa existência: "Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer", diz o sujeito da canção. Cantamos o outro para, ao diferenciar-mo-nos, promover as conexões necessárias à vida. Cantamos o outro para sermos cantados. "Que prazer mais egoísta / o de cuidar de um outro ser", diria Cazuza.
O sujeito de "Eu sou melhor que você", ao espalhar tal ideologia: de que é melhor que o outro, espelha a potência de cada indivíduo, a vontade de ser mais e melhor. O tom confessional - todo mundo se acha mas eu sou - e as imagens do corpo imposto - "Todo homem tem voz grossa e tem pau grande / e é maior do que o meu, do que o seu" - querem interferir no desenho que o sujeito engendra para si. Ele recolhe o que todo mundo diz e compõe um discurso crítico.
Diante da massa supostamente lúcida - "Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta / Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa / Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota" -, o sujeito assanha o mundo: brinca com a profusão das certezas e se sugere frágil. Ele revela a vulnerabilidade de todo mundo.
"Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos", diz o sujeito. O que poderia ser ouvido como celebração narcísica, resulta em um sujeito antinarciso, posto que assina: "Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém".
Listada as supostas qualidades de todo mundo, o sujeito da canção se apaixona, se arrisca, se expõe e sofre. Ele admite a coexistência do orgulho e do amor. Ele é todo mundo e é ele ao se distanciar para cantar que, na base, somos carentes profissionais fingindo suingue e felicidade melhores.



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Eu sou melhor que você
(Maurício Pacheco)

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta
Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa
Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota
Todo homem tem voz grossa e tem pau grande,
E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá
Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor
Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos
Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar
Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque:
Eu sou melhor que você, Boa viagem.
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém
Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque,
é charmoso não saber algo que todas as pessoas já sabem como é
Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser
Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer
Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada
Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada
Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer
Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação,
Se reprimem e começam a dizer:
Eu sou melhor que você
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém

É melhor que você,
Mais ninguém é melhor que você

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta

18 março 2011

Tá na minha hora

Ao responder a "seu" homem, a voz feminina da canção "Dom de iludir", de Caetano Veloso, decreta: "Você está / você é / você faz / você quer / você tem". A voz restitui o masculino à verdade, enquanto a ela cabe a "malícia de toda mulher".
Eis o gesto igualmente engendrado pela voz feminina da canção "Tá na minha hora", de Adriana Calcanhotto, ao dizer, na hora da despedida: "Da sua onipotência tratei com jeitinho". Aliás, os diminutivos da letra tanto apontam um dengo a mais - envolvendo o outro no dom de iludir - quanto deixa vazar certa ironia do ressentimento. Afinal, como diz o sujeito de "Mais perfumado", também de Calcanhotto: “Ele acredita que me engano / Pensa que sabe mentir o homem que eu amo”
Há em "Dom de iludir" e "Tá na minha hora" um movimento de emancipação, de inversões, de descolamentos e de deslocamentos. Há uma vontade de potência: de transvalorização os valores pré-dados. O sujeito de "Tá na minha hora" - na hora do adeus, de dar tchau - cobra os sambas da vida a dois feitos por ele.
Farta das fantasias despidas e das chegadas de madrugada, a mulher quer curtir a vida e suas não-promessas de felicidade. Ela quer sair e aproveitar aquilo que até então só o outro pode fazer: investir nas profusões de alegria.
Ela (o sujeito feminino da canção) não é mais quem o outro (o "neguinho") amou. Decotada, ela está para sair e ir a Lapa: beber todas e beijar bem. Como sugere a voz da canção "Beijo sem", também de Adriana Calcanhotto. Na sua singular valorização do dionisíaco, o sujeito quer afirmar a vida sem os compromissos afetivos que lhe faziam suportar - por amor - a onipotência do outro.
Tá na hora: é carnaval, festa da felicidade sem dia seguinte. Invertendo as instâncias, a mulher sem grilos, ao deixar a geladeira cheia - com o básico - tece seu canto de sereia: canta o que fez por si e pelo outro, rompendo a energia que mantinha o outro no ar. "Sem promessa de voltar depois do carnaval", diz, para o possível pavor de seu interlocutor, outrora senhor.
Se o disco Micróbio do samba (2011) é Adriana Calcanhotto desenvolvendo a pesquisa dos transambas que Caetano Veloso disparou em Zii e Zie, é também a mulher cantando o micróbio do samba que há nela - para além do espaço historicamente masculino. "Tá na minha hora", com sua sonoridade maracatu, é a relativização das perspectivas - sempre híbridas - de vida.
Aliás, importa apontar aqui o projeto Micróbio do frevo, de Silvério Pessoa, como possibilidade de diálogos com as sonoridades de Micróbio do samba: tudo pós, tudo trans, mas com olhos amorosos para o pré e o então.
Acompanhada por Alberto Continentino (baixo), Domenico Lancellotti (bateria e percussão) e Davi Moraes (violão), a voz da passista magueirense de "Tá na minha hora" - canção que encerra o disco de Cacanhotto - canta a canção dos afetos.
Ela recolhe em si um raio imenso do amor à canção: da voz que um dia cantou "Camisa Listada", "Abre alas", "Sonho meu"... sempre querendo botar o bloco do "amor hiperquântico" na rua. "Não chora, neguinho, não chora / Tá na minha hora, tá na minha hora", despede-se cabrocha-malandramente a estrela-mulher-cantora, enquanto deixa se perder-de-si na multidão - "uns só coração" - que enche as ruas.

***

Tá na minha hora
(Adriana Calcanhotto)

Te fiz uns sambas, neguinho, te dei carinho
Despi as suas fantasias devagarinho
Da sua onipotência tratei com jeitinho
e das chegadas de madrugada no sapatinho

Agora tá na minha hora
Eu vou passar uns tempos em Mangueira
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é da Estaçao primeira

Te deixo a geladeira cheia e sem promessa
que findo o carnaval eu tô de volta
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é verde rosa
Não chora, neguinho, não chora
Tá na minha hora, tá na minha hora

10 março 2011

Acaso

Por vezes, o acaso ajuda o cancionista a fazer uma canção. É tropeçando nos astros que o cancionista distraído capta inspirações. Nesta perspectiva, ele é a folha que traga e traduz a luz do sol. Traduzir é burilar as ideias, as inspirações.
E é aqui que entra o trabalho - a (trans)piração - de todo bom cancionista. Afinal, como transformar um pensamento em canção? Como dar contornos de naturalidade a algo que, na essência, é uma interferência no modo natural de expressão da língua. O resultado do gesto cancional deve chegar ao ouvinte como que por acaso. Mas, como fazer a palavra falada funcionar como palavra cantada?
"Eu tenho sede de aromas e de sorrisos / Sede de cantares novos". Estes versos que a certa altura atravessam a audição do disco Religar (2010), de Leo Cavalcanti, dizem muito da artesania de toda canção. Cantar é renovar-se, reposicionar-se na vida: afirmar a existência.
O sujeito da canção "Acaso", de Leo Cavalcanti, afirma o carater descompromissado com que as canções, os aromas e o amor chegam até nós. O sujeito canta o quanto sua vida era "fácil, feliz e convencional" até que o outro - a canção? - chegou e (per)turbou.
Dialogando com o sujeito da canção "Distração", de Christiaan Oyens e Zélia Duncan, o sujeito de "Acaso" afirma: "se você não se distrai o amor não chega".
Confundido com o canto existencial e afirmativo da vida, o amor chega e molha a folha seca: que novamente fica verde novinho em folha e se reposiciona no mundo. O amor existe e é, aqui, uma canção exaltação. O sujeito descobre a beleza do acaso.
Mas tudo é intenso e frágil: "Por um triz já não sou o mesmo ser", diz o sujeito. O outro - despoletador das novas verdades - é a confirmação "que o amor não se prevê". Jogando com as instâncias do destino e do acaso, o sujeito de "Acaso" se permite viver.
O acaso lhe mostra que a vida não é "letra de canção atonal, presa no refrão, sem ter espaços a preencher com corais pra fazer o universo se surpreender". Afinal, há canções e há momentos: algumas e alguns oferecem felicidade.

***

Acaso
(Leo Cavalcanti)

Foi mesmo assim, sem querer
Que em você tropecei
E que esse tombo
me desarrumou de vez
Tudo era fácil e feliz
De forma quase infantil
E a vida seguia tão convencional,
Sempre igual, sem motivação
Você apareceu pra molhar meu sertão
E mostrar que nem tudo tem previsão

Mas agora eu sei, o acaso faz a lei
Por um triz já não sou o mesmo ser
Tudo o que sei é que o acaso é meu rei
Foi você quem mostrou, me fez saber
Que o amor não se prevê

Dizem também por aí
Que o acaso é algo menor
Que o destino é escrito e o tempo
o sabe bem de cor
Como um roteiro a seguir
Sem dedos de improvisação
E a vida seria letra de canção
Atonal, presa no refrão
Sem ter espaços a preencher com
corais pra fazer
o universo se surpreender

Mas agora eu sei, o acaso faz a lei
Por um triz já não sou o mesmo ser
Tudo o que sei é que o acaso é meu rei
Foi você que mostrou, me fez saber
Que o amor não se prevê

Foi mesmo assim, sem querer
Que em você tropecei
E que a felicidade teve a sua vez

03 março 2011

Assinado eu

"Assinado eu", de Tiê (Sweet jardim, 2009), desenha o drama de todo sujeito-compositor: a motivação e a feitura da composição em si.
Afinal, o que querem as canções? Por que e por quem cantar? O sujeito de "Assinado eu" revela não apenas o processo, mas também sugere os resultados.
Cantada em primeira pessoa, justificando o "eu" do título, o sujeito de "Assinado eu" não precisa dizer qual é seu nome, o destinatário da mensagem já lhe conhece. Para que a mensagem seja entregue à pessoa certa, o anonimato - a perda do "eu" nos vários eus indefinidos - auxilia o gesto cancional.
Cantar aqui é falar de alguém específico porque oculto. Denominar é perder o objeto. Ao manter o anonimato, ao assinar "eu", o sujeito se mantem só (apenas) do outro, do destinatário cantado e amado na canção. Assim, ambos se preservam: um do outro e vice-versa. "Tanta afinidade assim, eu sei que só pode ser bom", diz o sujeito.
"Assinado eu" é o canto do sujeito que correu para o violão (num lamento) e a manhã nasce azul. O sujeito declara como é bom poder tocar um instrumento e escrever um som de um tom já esquecido, mas ainda ressonante. O passado agora está no seu lugar - no passado -, portanto a canção que agora é composta pelo sujeito tem o distanciamento lúcido dos fatos.
Tendo sido ele - o sujeito fingidor - o despoletador do amor, "Assinado eu" é um canto de desculpas, um ritual de adeus de um sujeito que se arrasta - passo a passo - pelos tempos da finada relação.
Por fim, a sempre um lado que pesa e outro lado que flutua: é como diz o poema de Fernando Pessoa: "Quanto a mim o amor passou / Eu só lhe peço que não faça como gente vulgar / E não me volte a cara quando passa por si / Nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor / Fiquemos um perante o outro / Como dois conhecidos desde a infância / Que se amaram um pouco quando meninos / Embora na vida adulta sigam outras afeições / Conserva-nos, escaninho da alma, a memória de seu amor antigo e inútil".

***

Assinado eu
(Tiê)

Já faz um tempo
Que eu queria te escrever um som
Passado o passado,
Acho que eu mesma esqueci o tom
Mas sinto que
Eu te devo sempre alguma explicação
Parece inaceitável a minha decisão
Eu sei
Da primeira vez,
Quem sugeriu,
Eu sei, eu sei, fui eu

Da segunda
Quem fingiu que não estava ali,
Também fui eu
Mas em toda a história,
É nossa obrigação saber seguir em frente,
Seja lá qual direção
Eu sei

Tanta afinidade assim, eu sei que só pode ser bom
Mas se é contrário,
É ruim, pesado
E eu não acho bom
Eu fico esperando o dia que você
Me aceite como amiga,
Ainda vou te convencer

Eu sei

E te peço,
Me perdoa,
Me desculpa que eu não fui sua namorada,
Pois fiquei atordoada,
Faltou o ar,
Faltou o ar

Me despeço dessa história
E concluo: a gente segue a direção
Que o nosso próprio coração mandar,
E foi pra lá, e foi pra lá