"Ela é minha cara", de Ronaldo Bastos e Celso Fonseca, recolhe e dá um passo além na mitologia da maria-boa, da maria-escandalosa. Da mulher que quando passa mexe ("causa rebuliço") com o juízo do homem que vai trabalhar. Ela é a poesia que balança e acende desejos interferindo na vida ordinária. Sereia, "seu palácio vai do Leme ao Pontal": não há nada igual.
A canção dá um passo além quando brinca com o mito de Narcissos: aquele que, punido por Afrodite, enamorou-se por sua própria imagem - passando a achar "feio o que não é espelho". Se Narcissos, tentando aproximar-se da imagem, morre afogado em águas tranquilas, o sujeito de "Ela é minha cara" canta a flor do desejo: da perda-de-si diante do espelho.
Embriagado - por uma cachaça que desce redondo -, o sujeito investe nas filigranas que unem a imagem dela (da "fulana de tal": o nome pouco importante) à imagem que ele próprio tem de si. A visão desta mulher leva o sujeito para dentro do espelho: para o país das delícias.
Tal mensagem encontra na voz de Mart´nália (Madrugada, 2008) a tradução exata. Menino do Rio, Mart'nália androginiza o canto. Desenha, na dicção malandra e no suingue carioca, a figura da mulher que é uma extensão de si: "há quem diga que parece um rapaz".
"Ela é minha cara", diz o sujeito. "Cara" como sinônimo de imagem e semelhança física, mas também de postura diante da vida: jeito de corpo. Ela "é gente bem", "é o colírio da moçada", "é o jazz", "é só a mina que enfeitiçou o coração", afirma o sujeito.
Sujeito e musa se aproximam de viés: depois do susto - da potência da cachaça descendo pela garganta - a afirmação da vontade - "a minha mais entre as dez mais". No final, no completo despudor, o sujeito já não tem receio de nada: "Vai que um dia pinta um clima / Ela vem parar na minha / e eu vou comer na sua mão".
A tal mulher de bem que não dá mole a ninguém, mas que quando chega pára a batucada, tenciona o desejo inconfesso - reprimido e recalcado - naquilo que não sabemos definir. O modo - entre o sim e o não - com que a mulher afirma a própria vida, condensando em si a mina e o rapaz, desestabiliza as certezas que a sociedade cria para si.
Ela coloca todos diante do espelho: indaga nossos desejos, põe mundos de pernas para o ar. A verdade é posta em questão. Mesmo (e por isso) parecendo um rapaz, "ela é o colírio da moçada" e "quem fala é louco pra encarar", entrega o sujeito.
"Ela é minha cara" articula uma rede inquietante dos nossos desejos em um labirinto de espelhos. Nudez total do sujeito e nossa: do ouvinte cheio de verdades porosas.
Embriagado - por uma cachaça que desce redondo -, o sujeito investe nas filigranas que unem a imagem dela (da "fulana de tal": o nome pouco importante) à imagem que ele próprio tem de si. A visão desta mulher leva o sujeito para dentro do espelho: para o país das delícias.
Tal mensagem encontra na voz de Mart´nália (Madrugada, 2008) a tradução exata. Menino do Rio, Mart'nália androginiza o canto. Desenha, na dicção malandra e no suingue carioca, a figura da mulher que é uma extensão de si: "há quem diga que parece um rapaz".
"Ela é minha cara", diz o sujeito. "Cara" como sinônimo de imagem e semelhança física, mas também de postura diante da vida: jeito de corpo. Ela "é gente bem", "é o colírio da moçada", "é o jazz", "é só a mina que enfeitiçou o coração", afirma o sujeito.
Sujeito e musa se aproximam de viés: depois do susto - da potência da cachaça descendo pela garganta - a afirmação da vontade - "a minha mais entre as dez mais". No final, no completo despudor, o sujeito já não tem receio de nada: "Vai que um dia pinta um clima / Ela vem parar na minha / e eu vou comer na sua mão".
A tal mulher de bem que não dá mole a ninguém, mas que quando chega pára a batucada, tenciona o desejo inconfesso - reprimido e recalcado - naquilo que não sabemos definir. O modo - entre o sim e o não - com que a mulher afirma a própria vida, condensando em si a mina e o rapaz, desestabiliza as certezas que a sociedade cria para si.
Ela coloca todos diante do espelho: indaga nossos desejos, põe mundos de pernas para o ar. A verdade é posta em questão. Mesmo (e por isso) parecendo um rapaz, "ela é o colírio da moçada" e "quem fala é louco pra encarar", entrega o sujeito.
"Ela é minha cara" articula uma rede inquietante dos nossos desejos em um labirinto de espelhos. Nudez total do sujeito e nossa: do ouvinte cheio de verdades porosas.
***
Ela é minha cara
(Ronaldo Bastos / Celso Fonseca)
Causa reboliço aonde passa
desce mais redondo que a cachaça
Ela é a fulana de tal
o seu palácio vai do Leme ao Pontal
É a minha mais entre as dez mais
Ela é gente bem
Por isso mesmo não dá mole a ninguém
Mas um dia eu faço ela sambar
Ela é o colírio da moçada
Quando chega pára a batucada
Ela é o jazz
E há quem diga que parece um rapaz
Mas quem fala é louco pra encarar
Ela é minha cara
e nem me olha quando a gente se esbarra
Mas um dia eu faço ela sambar
Tira onda de grã-fina
Mas para mim é só a mina
que enfeitiçou meu coração
Vai que um dia pinta um clima
Ela vem parar na minha
e eu vou comer na sua mão
(Ronaldo Bastos / Celso Fonseca)
Causa reboliço aonde passa
desce mais redondo que a cachaça
Ela é a fulana de tal
o seu palácio vai do Leme ao Pontal
É a minha mais entre as dez mais
Ela é gente bem
Por isso mesmo não dá mole a ninguém
Mas um dia eu faço ela sambar
Ela é o colírio da moçada
Quando chega pára a batucada
Ela é o jazz
E há quem diga que parece um rapaz
Mas quem fala é louco pra encarar
Ela é minha cara
e nem me olha quando a gente se esbarra
Mas um dia eu faço ela sambar
Tira onda de grã-fina
Mas para mim é só a mina
que enfeitiçou meu coração
Vai que um dia pinta um clima
Ela vem parar na minha
e eu vou comer na sua mão
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