Ao responder a "seu" homem, a voz feminina da canção "Dom de iludir", de Caetano Veloso, decreta: "Você está / você é / você faz / você quer / você tem". A voz restitui o masculino à verdade, enquanto a ela cabe a "malícia de toda mulher".
Eis o gesto igualmente engendrado pela voz feminina da canção "Tá na minha hora", de Adriana Calcanhotto, ao dizer, na hora da despedida: "Da sua onipotência tratei com jeitinho". Aliás, os diminutivos da letra tanto apontam um dengo a mais - envolvendo o outro no dom de iludir - quanto deixa vazar certa ironia do ressentimento. Afinal, como diz o sujeito de "Mais perfumado", também de Calcanhotto: “Ele acredita que me engano / Pensa que sabe mentir o homem que eu amo”
Há em "Dom de iludir" e "Tá na minha hora" um movimento de emancipação, de inversões, de descolamentos e de deslocamentos. Há uma vontade de potência: de transvalorização os valores pré-dados. O sujeito de "Tá na minha hora" - na hora do adeus, de dar tchau - cobra os sambas da vida a dois feitos por ele.
Farta das fantasias despidas e das chegadas de madrugada, a mulher quer curtir a vida e suas não-promessas de felicidade. Ela quer sair e aproveitar aquilo que até então só o outro pode fazer: investir nas profusões de alegria.
Ela (o sujeito feminino da canção) não é mais quem o outro (o "neguinho") amou. Decotada, ela está para sair e ir a Lapa: beber todas e beijar bem. Como sugere a voz da canção "Beijo sem", também de Adriana Calcanhotto. Na sua singular valorização do dionisíaco, o sujeito quer afirmar a vida sem os compromissos afetivos que lhe faziam suportar - por amor - a onipotência do outro.
Tá na hora: é carnaval, festa da felicidade sem dia seguinte. Invertendo as instâncias, a mulher sem grilos, ao deixar a geladeira cheia - com o básico - tece seu canto de sereia: canta o que fez por si e pelo outro, rompendo a energia que mantinha o outro no ar. "Sem promessa de voltar depois do carnaval", diz, para o possível pavor de seu interlocutor, outrora senhor.
Se o disco Micróbio do samba (2011) é Adriana Calcanhotto desenvolvendo a pesquisa dos transambas que Caetano Veloso disparou em Zii e Zie, é também a mulher cantando o micróbio do samba que há nela - para além do espaço historicamente masculino. "Tá na minha hora", com sua sonoridade maracatu, é a relativização das perspectivas - sempre híbridas - de vida.
Aliás, importa apontar aqui o projeto Micróbio do frevo, de Silvério Pessoa, como possibilidade de diálogos com as sonoridades de Micróbio do samba: tudo pós, tudo trans, mas com olhos amorosos para o pré e o então.
Acompanhada por Alberto Continentino (baixo), Domenico Lancellotti (bateria e percussão) e Davi Moraes (violão), a voz da passista magueirense de "Tá na minha hora" - canção que encerra o disco de Cacanhotto - canta a canção dos afetos.
Ela recolhe em si um raio imenso do amor à canção: da voz que um dia cantou "Camisa Listada", "Abre alas", "Sonho meu"... sempre querendo botar o bloco do "amor hiperquântico" na rua. "Não chora, neguinho, não chora / Tá na minha hora, tá na minha hora", despede-se cabrocha-malandramente a estrela-mulher-cantora, enquanto deixa se perder-de-si na multidão - "uns só coração" - que enche as ruas.
Há em "Dom de iludir" e "Tá na minha hora" um movimento de emancipação, de inversões, de descolamentos e de deslocamentos. Há uma vontade de potência: de transvalorização os valores pré-dados. O sujeito de "Tá na minha hora" - na hora do adeus, de dar tchau - cobra os sambas da vida a dois feitos por ele.
Farta das fantasias despidas e das chegadas de madrugada, a mulher quer curtir a vida e suas não-promessas de felicidade. Ela quer sair e aproveitar aquilo que até então só o outro pode fazer: investir nas profusões de alegria.
Ela (o sujeito feminino da canção) não é mais quem o outro (o "neguinho") amou. Decotada, ela está para sair e ir a Lapa: beber todas e beijar bem. Como sugere a voz da canção "Beijo sem", também de Adriana Calcanhotto. Na sua singular valorização do dionisíaco, o sujeito quer afirmar a vida sem os compromissos afetivos que lhe faziam suportar - por amor - a onipotência do outro.
Tá na hora: é carnaval, festa da felicidade sem dia seguinte. Invertendo as instâncias, a mulher sem grilos, ao deixar a geladeira cheia - com o básico - tece seu canto de sereia: canta o que fez por si e pelo outro, rompendo a energia que mantinha o outro no ar. "Sem promessa de voltar depois do carnaval", diz, para o possível pavor de seu interlocutor, outrora senhor.
Se o disco Micróbio do samba (2011) é Adriana Calcanhotto desenvolvendo a pesquisa dos transambas que Caetano Veloso disparou em Zii e Zie, é também a mulher cantando o micróbio do samba que há nela - para além do espaço historicamente masculino. "Tá na minha hora", com sua sonoridade maracatu, é a relativização das perspectivas - sempre híbridas - de vida.
Aliás, importa apontar aqui o projeto Micróbio do frevo, de Silvério Pessoa, como possibilidade de diálogos com as sonoridades de Micróbio do samba: tudo pós, tudo trans, mas com olhos amorosos para o pré e o então.
Acompanhada por Alberto Continentino (baixo), Domenico Lancellotti (bateria e percussão) e Davi Moraes (violão), a voz da passista magueirense de "Tá na minha hora" - canção que encerra o disco de Cacanhotto - canta a canção dos afetos.
Ela recolhe em si um raio imenso do amor à canção: da voz que um dia cantou "Camisa Listada", "Abre alas", "Sonho meu"... sempre querendo botar o bloco do "amor hiperquântico" na rua. "Não chora, neguinho, não chora / Tá na minha hora, tá na minha hora", despede-se cabrocha-malandramente a estrela-mulher-cantora, enquanto deixa se perder-de-si na multidão - "uns só coração" - que enche as ruas.
***
Tá na minha hora
(Adriana Calcanhotto)
Te fiz uns sambas, neguinho, te dei carinho
Despi as suas fantasias devagarinho
Da sua onipotência tratei com jeitinho
e das chegadas de madrugada no sapatinho
Agora tá na minha hora
Eu vou passar uns tempos em Mangueira
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é da Estaçao primeira
Te deixo a geladeira cheia e sem promessa
que findo o carnaval eu tô de volta
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é verde rosa
Não chora, neguinho, não chora
Tá na minha hora, tá na minha hora
(Adriana Calcanhotto)
Te fiz uns sambas, neguinho, te dei carinho
Despi as suas fantasias devagarinho
Da sua onipotência tratei com jeitinho
e das chegadas de madrugada no sapatinho
Agora tá na minha hora
Eu vou passar uns tempos em Mangueira
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é da Estaçao primeira
Te deixo a geladeira cheia e sem promessa
que findo o carnaval eu tô de volta
Não chora, neguinho, não chora
O meu coração é verde rosa
Não chora, neguinho, não chora
Tá na minha hora, tá na minha hora
Leonardo,
ResponderExcluirGostei do trabalho, do texto e das ideias!! Parabéns!
Sugiro a vc acompanhar meu blog: osomdacoisa.blogspot.com.
Faço comentários sobre música popular a cada 15 dias.
Abs
Herom