13 outubro 2024

A primeira pedra


Pedro Machado abre A PRIMEIRA PEDRA com epígrafes que dão o tom e o ritmo das narrativas do livro. O trecho do Evangelho de João em que Jesus diz “aquele de vocês que nunca pecou atire a primeira pedra”, o poema de Cruz e Sousa em que o eu-lírico assume a voz de Jesus e diz ao destinatário “sei que cruz infernal prendeu-te os braços” e o trecho de texto de João do Rio em que se lê sobre um pastor que “sonhava com o domínio temporal e a Câmara dos Deputados” são os motes trabalhados por Pedro ao longo de 14 narrativas. Essa consciência no uso das epígrafes é fundamental, por exemplo, para entender as pedreiras que os personagens precisam quebrar para ser e estar no mundo, pois serve de dispositivos para leituras de textos cujos títulos são “Jesus Negro”, “Vó Benedita”, “Jerusalém Desolada”, “Todos contra Sara”, “Pele Sagrada”. Se os contos podem ser lidos no modo aleatório, a sequência montada pelo autor cria uma narrativa em que uma história insemina a seguinte e faz com que a “pedra” do título do livro seja a protagonista. As personagens de Pedro Machado têm como emblema o humano cotidiano de quem faz do morro carioca o monte Sião. O ethos religioso é o tempo e o espaço por onde os personagens negros evangélicos e ex-evangélicos transitam. Do primeiro conto ao derradeiro diálogo do livro há um coro de vozes dissonantes cantando a dificuldade e a glória de estar vivo. Jeferson, Josué, Jeremias, Jonas, Davi, Josias, Salomão são homens-de-fé apresentados por Pedro Machado sem o véu do exotismo e do voyeurismo que por tanto tempo ainda encobre corpos e subjetividades negros obrigadas a “disciplinar sua alma à força”.

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