01 setembro 2024

Jardim botânico


Nuno Ramos é artista polivalente. Em tese de doutorado recém defendida, Carlos Gomes de Oliveira Filho observou que na obra de Nuno Ramos encontramos "a presença de uma matéria-canção enquanto dispositivo crítico que distende as fronteiras presentes nos diversos campos artísticos e nos consequentes sistemas culturais em que essa matéria circula". Isso diz bastante do livro de poema JARDIM BOTÂNICO. Aqui vozes que muitas das vezes aparecem em itálico (sendo ou não citação direta de algum outro texto de terceiros) se infiltram e compõem a voz do sujeito poemático que dramatiza a própria partilha da escrita: "Minha incapacidade de morrer / povoa o tempo com palavras", lemos. E são palavras (o nome de) o que, na ausência das plantas, povoam as página do livro. "Aqui os nomes das plantas / crescem no lugar das plantas", dizem os dois primeiros versos de JARDIM BOTÂNICO. A imagem de uma onça queimada atravessa o livro em que cada poema parece desdobrar, redobrar o poema anterior. Ao ponto de, ao final, o escritor recolher muitos dos fragmentos de imagens proliferadas (semeadas) ao longo do texto, do jardim (selvagem, do mal). "O que temos então diante de nós é um solilóquio corajoso em que o poeta se embrenha a questionar-se sobre o valor e o sentido de suas próprias vivências", escreve Leonardo Fróes na orelha do livro. Qual é o papel do artista num mundo em que a jangada salva-vidas é de garrafas pet, esse elemento da natureza moderna? "De que fala este poema? / Essa é a pergunta, Nuno", escreve o poeta inscrito na escrita. Quem é leitor da obra de Nuno Ramos vai identificar algumas recorrências temáticas, como a referência ao "pau", ao sexo físico. A reflexão sobre o homo sapiens macho e "seu medo medonho de não ter uma voz" se mantem como uma questão da poética do escritor. "A vida que te deram era grátis, Nuno, nenhum preço a pagar", lemos aqui; "à palavra excitada / ereta, lubrificada / pronta pra enfiar / a mensagem na orelha da vítima", lemos ali. JARDIM BOTÂNICO é aquilo que numa "folha pousa / na prosa medrosa dos meus versos"; é a matéria-canção excrítica e escrítica do agora expandido, "onde letra e matéria dão match". E onde "eu era a onça queimada".

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