Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Poesia e pensamento abstrato”, de Paul Valéry.
O ensaio "Poesia e pensamento abstrato", de Paul Valéry, além de elencar as condições de produção do fazer poético (i.e. a conjugação harmônica de forma e conteúdo que atribui à palavra um sentido poético e verdadeiro, dimensão perene da palavra, em detrimento do significado arbitrário e instrumentalizado de seu uso corriqueiro, a dimensão finita da palavra), é uma bela proposta de discussão sobre os efeitos desse fazer, sua constituição, suas idiossincrasias e a tékhne específica ao poeta. Mais ainda, sobre a relação entre pensamento e prática poética e sobre os caminhos possíveis até o poema, que podem partir tanto da necessidade de dar sentido a uma frase, a uma palavra, a uma intuição rítmica, quanto do impulso de formar a construção poética de uma ideia, experiência ou afeto e torná-la sua expressão mais acabada.
Para Valéry poesia é trabalho que não se desfaz na clareza da prosa. Trabalho que empresta ao vulgar e comum da linguagem sua vitalidade (e, realmente, poesia é vital: a palavra não-poética morre imediatamente assim que pronunciada), por trabalhar a partir dele e com ele, por sublimar o mais acessível, (re-)utilizado e banalizado instrumento humano. Valéry considera os aspectos fônicos e entoativos da palavra, a música própria à palavra, mas sua concepção de poesia dista bastante daquilo que os principais cancionistas modernos e teóricos da vocalidade investigariam.
Escreve Valéry: “Gostaria de lhes dar uma imagem simples. Pensem em um pêndulo oscilando entre dois pontos simétricos. Suponham que uma dessas posições extremas representa a forma, as características sensíveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonações, o timbre, o movimento – em uma palavra, a Voz em ação. Associem, por outro lado, ao outro ponto, ao ponto conjugado do primeiro, todos os valores significativos, as imagens, as ideias, as excitações do sentimento e da memória, os impulsos virtuais e as formações de compreensão – em uma palavra, tudo que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso. Observem então os efeitos da poesia em vocês mesmos. Acharão que, em cada verso, o significado produzido em vocês, longe de destruir a forma musical comunicada, reclama esta forma. O pêndulo vivo que desceu do som em direção ao sentido tende a subir de novo para o seu ponto de partida sensível, como se o próprio sentido proposto não encontrasse outra saída, outra expressão, outra resposta além da própria música que o originou” (p. 205).
O trabalho do poeta não exige apenas "a presença do universo poético", mas reflexões, decisões, escolhas e combinações, sem os quais os dons da Musa ou do Acaso não teriam autores (p. 217). A voz (em ação: timbre, entonação, performance, entre outros) é abordada como a própria linguagem, e não apenas como um mecanismo desta, afirmando que apenas palavras (signo) não são suficientes para dar sentido e gerar compreensão.
A poesia, sendo encantamento, se aproveita de algo existente e os transforma para outro sentido e significação, como símbolos e alegorias. Para o autor, “reconhece-se o poeta – ou, pelo menos, cada um reconhece o seu – pelo simples fato de que ele transforma o leitor em ‘inspirado’. A inspiração é, positivamente falando, uma atribuição gratuita feita pelo leitor ao poeta” (p. 206). Valery trata do leitor como alguém que atribui ao poeta algo. Mais a frente, ao falar do universo musical, ele diz que “um som produzido evoca, por si só, o universo musical” (p. 210), isto é, o começo de um mundo. E o ouvinte mesmo se organiza inconscientemente para acolhê-lo. “O universo musical, portanto, estava em vocês” (idem). Eis o caráter performático da leitura, ainda que silenciosa, ela apresenta uma voz, evoca presença.
Além da metáfora da pureza do som musical versus o ruído da linguagem, destaque-se a analogia feita por Valéry entre a Prosa e Poesia com o Andar e a Dança. A prosa comparada ao ato de andar de uma criança tem uma finalidade e se dá por combinações singulares. Já a poesia, assim como ocorre na dança, é um sistema de atos, com finalidade em si mesma, na busca por um objeto ideal ou um extremo de vida.
"O universo poético não é tão forte e facilmente criado. Ele existe, mas o poeta é privado das imensas vantagens possuídas pelo músico. Ele não tem diante de si, pronto para o uso da beleza, um conjunto de meios feito expressamente para sua arte. Ele tem que tomar emprestada a linguagem" (p. 210) No ruído "nada puro; mas sim uma mistura de excitações auditivas e psíquicas perfeitamente incoerentes. Cada palavra é uma mistura instantânea de som e sentido, sem qualquer relação entre eles" (idem). O poeta precisa trabalhar com toda essa matéria e fixa o que no cotidiano é banal: "O poema não morre por ter vivido: ele é feito para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser" (p. 213).
A linguagem é a "criação da prática", ou seja, temos a prova de que fomos entendidos quando nossos pedidos são realizados, como o autor exemplifica, peço fogo, você me concede, logo, fui entendida. Só palavras não são suficientes para gerar sentido e compreensão, entonação e timbre de voz também complementam esse processo (p. 208), o que ele chama de Voz em ação (p. 213). Valéry denomina como poesia a arte da linguagem e como poética uma combinação de palavras que geram uma emoção que outras não o fazem (p. 205). O estado poético (quase como quando nossos sentidos são despertados) não é suficiente para fazer o poeta. Valéry afirma existir diferença entre emoção poética e criação de uma obra (p. 206) e acha muito mais interessante analisar de que forma se deu a criação da obra do que ela em si.
VALÉRY, Paul. “Poesia e pensamento abstrato”. In: Variedades. Trad. Maiza Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007.
O ensaio "Poesia e pensamento abstrato", de Paul Valéry, além de elencar as condições de produção do fazer poético (i.e. a conjugação harmônica de forma e conteúdo que atribui à palavra um sentido poético e verdadeiro, dimensão perene da palavra, em detrimento do significado arbitrário e instrumentalizado de seu uso corriqueiro, a dimensão finita da palavra), é uma bela proposta de discussão sobre os efeitos desse fazer, sua constituição, suas idiossincrasias e a tékhne específica ao poeta. Mais ainda, sobre a relação entre pensamento e prática poética e sobre os caminhos possíveis até o poema, que podem partir tanto da necessidade de dar sentido a uma frase, a uma palavra, a uma intuição rítmica, quanto do impulso de formar a construção poética de uma ideia, experiência ou afeto e torná-la sua expressão mais acabada.
Para Valéry poesia é trabalho que não se desfaz na clareza da prosa. Trabalho que empresta ao vulgar e comum da linguagem sua vitalidade (e, realmente, poesia é vital: a palavra não-poética morre imediatamente assim que pronunciada), por trabalhar a partir dele e com ele, por sublimar o mais acessível, (re-)utilizado e banalizado instrumento humano. Valéry considera os aspectos fônicos e entoativos da palavra, a música própria à palavra, mas sua concepção de poesia dista bastante daquilo que os principais cancionistas modernos e teóricos da vocalidade investigariam.
Escreve Valéry: “Gostaria de lhes dar uma imagem simples. Pensem em um pêndulo oscilando entre dois pontos simétricos. Suponham que uma dessas posições extremas representa a forma, as características sensíveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonações, o timbre, o movimento – em uma palavra, a Voz em ação. Associem, por outro lado, ao outro ponto, ao ponto conjugado do primeiro, todos os valores significativos, as imagens, as ideias, as excitações do sentimento e da memória, os impulsos virtuais e as formações de compreensão – em uma palavra, tudo que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso. Observem então os efeitos da poesia em vocês mesmos. Acharão que, em cada verso, o significado produzido em vocês, longe de destruir a forma musical comunicada, reclama esta forma. O pêndulo vivo que desceu do som em direção ao sentido tende a subir de novo para o seu ponto de partida sensível, como se o próprio sentido proposto não encontrasse outra saída, outra expressão, outra resposta além da própria música que o originou” (p. 205).
O trabalho do poeta não exige apenas "a presença do universo poético", mas reflexões, decisões, escolhas e combinações, sem os quais os dons da Musa ou do Acaso não teriam autores (p. 217). A voz (em ação: timbre, entonação, performance, entre outros) é abordada como a própria linguagem, e não apenas como um mecanismo desta, afirmando que apenas palavras (signo) não são suficientes para dar sentido e gerar compreensão.
A poesia, sendo encantamento, se aproveita de algo existente e os transforma para outro sentido e significação, como símbolos e alegorias. Para o autor, “reconhece-se o poeta – ou, pelo menos, cada um reconhece o seu – pelo simples fato de que ele transforma o leitor em ‘inspirado’. A inspiração é, positivamente falando, uma atribuição gratuita feita pelo leitor ao poeta” (p. 206). Valery trata do leitor como alguém que atribui ao poeta algo. Mais a frente, ao falar do universo musical, ele diz que “um som produzido evoca, por si só, o universo musical” (p. 210), isto é, o começo de um mundo. E o ouvinte mesmo se organiza inconscientemente para acolhê-lo. “O universo musical, portanto, estava em vocês” (idem). Eis o caráter performático da leitura, ainda que silenciosa, ela apresenta uma voz, evoca presença.
Além da metáfora da pureza do som musical versus o ruído da linguagem, destaque-se a analogia feita por Valéry entre a Prosa e Poesia com o Andar e a Dança. A prosa comparada ao ato de andar de uma criança tem uma finalidade e se dá por combinações singulares. Já a poesia, assim como ocorre na dança, é um sistema de atos, com finalidade em si mesma, na busca por um objeto ideal ou um extremo de vida.
"O universo poético não é tão forte e facilmente criado. Ele existe, mas o poeta é privado das imensas vantagens possuídas pelo músico. Ele não tem diante de si, pronto para o uso da beleza, um conjunto de meios feito expressamente para sua arte. Ele tem que tomar emprestada a linguagem" (p. 210) No ruído "nada puro; mas sim uma mistura de excitações auditivas e psíquicas perfeitamente incoerentes. Cada palavra é uma mistura instantânea de som e sentido, sem qualquer relação entre eles" (idem). O poeta precisa trabalhar com toda essa matéria e fixa o que no cotidiano é banal: "O poema não morre por ter vivido: ele é feito para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser" (p. 213).
A linguagem é a "criação da prática", ou seja, temos a prova de que fomos entendidos quando nossos pedidos são realizados, como o autor exemplifica, peço fogo, você me concede, logo, fui entendida. Só palavras não são suficientes para gerar sentido e compreensão, entonação e timbre de voz também complementam esse processo (p. 208), o que ele chama de Voz em ação (p. 213). Valéry denomina como poesia a arte da linguagem e como poética uma combinação de palavras que geram uma emoção que outras não o fazem (p. 205). O estado poético (quase como quando nossos sentidos são despertados) não é suficiente para fazer o poeta. Valéry afirma existir diferença entre emoção poética e criação de uma obra (p. 206) e acha muito mais interessante analisar de que forma se deu a criação da obra do que ela em si.
VALÉRY, Paul. “Poesia e pensamento abstrato”. In: Variedades. Trad. Maiza Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007.
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