30 abril 2020

Dor elegante


Letra de canção e poema de livro são duas formas de exploração poética da palavra. Uma pede a voz, a outra pede o papel. A mudança de suporte é fundamental para receber e pensar as especificidades dessas linguagens tão convergentes. Dizer que letra de canção é (ou não é) poema, portanto, não deve servir nem de justificativa para quem ainda defende que o suporte elementar do poema seja o papel, esquecendo-se que a voz, a palavra cantada está na gênese da poesia, aliás, estes, em geral, não compreenderam (não aceitam) a revolução que as experimentações vanguardistas engendraram no poema: no Brasil, destaque-se o projeto verbivocovisual dos poetas concretos; nem de subterfúgio para "elevar" o status dos letristas ao hall dos poetas eleitos por parte da elite cultural. Os dois movimentos tendem a obliterar a incompetência teórico-crítica de quem não sabe, por preguiça, preconceito, ou idiossincrasia maior, lidar com a natureza múltipla da canção popular.
Neste elitista jogo de valor entre letra de canção e poema de livro, entre música popular e literatura, há quem diga que o poema perdeu para a canção grande parte do espaço existencial que ocupava no imaginário da sociedade, na história e no cotidiano das pessoas. E que esta transferência ocorrera por volta dos anos 1960, ou seja, durante a ascensão da censura imposta pela ditadura militar no Brasil em choque com as lutas identitárias na Europa e nos EUA.
De fato, muitos poetas que naquele momento - e nos anos 1970 e 80 - usaram a voz e o corpo como suporte do poético, até porque a publicação de poemas, este gênero subversivo por tradição, estava sob a mira dos censores, anos depois renderam-se a "legitimidade" que o livro impresso ainda exerce. Mas há que se perguntar quem eram aquelas pessoas cujo espaço existencial era ocupado por poemas, naquele tempo idílico pré-1960. "Eles não vão entender o que são riscos / E nem que nossos livros de história foram discos", diria Emicida em "Ubuntu Fristili". Como todo signo é ideológico (BAKHTIN, In: Problemas da poética em Dostoiévski, 1997), toda valoração estética reflete a ética das estruturas sociais e históricas. E a questão do privilégio do acesso aos livros de poemas também importa para pensar a distinção entre letra de canção e poema de livro.
Em Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin, o professor Carlos Alberto Faraco comenta bem o uso que Bakhtin faz do termo "ideologia": "A palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do 'espírito' humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num vocabulário de sabor mais materialista). Ideologia é o nome que o Círculo [de Bakhtin] costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar uma certa terminologia marxista)", (FARACO, 2003, p. 46).
Letra de canção e poema de livro são unidades de vários elementos simultâneos e inseparáveis, entre eles, forma/conteúdo, som/sentido, significante/significado, entoação/ideologia, no caso da canção, e papel/ideologia, no caso do poema impresso. Isso se deixarmos de lado, por enquanto, a verbivocovisualidade concretista e a verbivocoperformance tropicalista. Porque quero chamar atenção para a defesa de que a melodia, o ritmo, a performance são elementos ideológicos tanto quanto a palavra estática, impressa. Letra de canção e poema de livro são seres orgânicos e autônomos, ao mesmo tempo em que são mistos. O significado dependerá sempre de uma série de fatores intra e extrapoéticos. Dito de outro modo, o significante literário, tão importante à elite cultural, subsiste no conjunto encapsulado pela voz, em um; e pelo impresso, no outro.
Quem canta precisa encontrar a entonação eficaz, justa, adequada para dizer (voz) o que diz (texto); assim como quem escreve, distribui as palavras na página, trabalha sobre uma estrutura. A recepção desses trabalhos de arte não é passiva. Tanto o ouvinte quanto o leitor veem-se instados a agir junto com o eu poético. Ou não. E isso também depende de uma série de fatores ideológicos e de formação do ouvinte e do leitor.
Substância e expressão ideológicas estão na estrutura do dito e do modo de dizer; do escrito e do modo de escrever. Métricas, rimas, dores, alegrias são matérias formais e conteudísticas da letra de canção e do poema de livro. Mesmo quando o texto da letra de canção é criada antes da melodia, esse texto tem um ritmo que deverá ser acionado e potencializado na voz do cancionista. A expressão da entoação embrionária das palavras do textos é exatamente o trabalho do cancionista. Assim como a leitura "silenciosa" de um poema de livro aciona mentalmente a melodia das palavras, base para a compreensão do ritmo engendrado pelo poeta.
Embora esteja ancorada da entonação embrionária das palavras, a adequação entre letra e voz não é exata, o que eliminaria as várias interpretações possíveis dadas a um "mesmo" texto. Ao contrário do que comumente se pensa, a letra de canção não está aprisionada à melodia; a cada interpretação é possível violentar a sintaxe através dos usos da respiração, da quebra da correlação semântica/fonologia em busca de (uma nova) intenção, da (renovada) expressão não-vulgar, costumeira das palavras. É a interpretação singular e diversa o que torna o cancionista coautor, parceiro de quem escreveu o texto, por exemplo.
Talvez seja este medo da coautoria, o medo de deixar de ser o único eleito das Musas, o que move quem se recente do poema ter "perdido espaço" para a canção. Para estes é absolutamente impensável a parceria num poema. Como se as Musas não tiveram mudado através dos tempos; como se a relação entre musa e poeta estivesse intacta desde um tempo mítico em que o poema carregava toda a subjetividade do poeta, impondo a autoria. Ou ainda como se, por ter sido feita sob encomenda, muitas vezes após a criação da melodia instrumental, uma letra de canção não carregasse a subjetividade do letrista. "Minha amiga / indecisa / lida com coisas / semifusas // usando confusas / mesmo as exatas / medusas / se transmudam / em musas", escreveu Paulo Leminski (Caprichos & relaxos, 1983); e "já fui coisa / escrita na lousa / hoje sem musa / apenas meu nome / escrito na blusa" (idem), tematizando estas novas relações musais.
Não bastassem estes dois exemplos de que a obra de Leminski não se limita ao lirismo narcísico e à sociabilidade do universo do consumo, temos inúmeros versos, poemas, letras do autor que dão conta dos mais variados temas da humanidade. Essa maturidade seria resultado do trânsito de Leminski entre a letra de canção e o poema de livro, diriam alguns. Mas não poderia ser exatamente o contrário? A maturidade ética e estética do autor não estaria no estímulo necessário à compreensão diversa da exploração poética da palavra? Leminski estava interessado nas novas formas de escrita e escuta de poesia.
No texto "Na cadeia de sons da vida: literatura e música popular na obra de Paulo Leminski", Marcelo Sandmann anota que Leminski "confirma toda uma tendência geral da época, de ruptura de limites entre a arte culta e a arte popular e de massa, entre a poesia informada e a letra de canção, entre a experimentação formal e o desejo de comunicação. Produz sua obra a partir de certas coordenadas, que delimitam um campo de boa tensão interna, coordenadas que vão da Poesia Concreta, passam pela Contracultura internacional (sobretudo na sua vertente anglo-americana: beat generation, hippies, rock) e chegam à expressão dessa mesma Contracultura em termos brasileiros, com o Tropicalismo e o Pós-tropicalismo. Nesse campo, a música popular surge como gênero da maior importância, seja como objeto de fruição e referência estéticas, seja como lugar de atuação criativa" (p. 202, In: A pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski, 2010).
Na esteira da dicção de Catulo da Paixão Cearense, Orestes Barbosa, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Wally Salomão, Arnaldo Antunes, entre outros, Paulo Leminski tensionou linguagem estandardizada, engajamento ético e vida urbano-industrial. Daí que limitar-se ao gosto concebido pela Academia grafocêntrica não faz mais sentido. Na introdução do livro Caprichos & relaxos, Leminski escrevera: "Aqui, poemas para lerem, em silêncio, / o olho, o coração e a inteligência. / Poemas para dizer, em voz alta. / Poemas, letras, lyrics, para cantar. / Quais, quais, é com você, parceiro". O projeto é claro: os modos de usar a potência da palavra não está mais dado a priori pelo poeta.
Neste jogo entre expressão e comunicação, Leminski aprofunda e embaralha o que João Cabral anotara na orelha do livro Duas águas: "de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos" (1956).
É sem dúvida um desses poemas para ser relido que Itamar Assumpção decide cantar. Assinando a coautoria da obra com Leminski, Itamar dá à canção o título de "Dor elegante" (Pretobrás, 1998). O poema está publicado sem título no livro póstumo La vie en close (1991). Ao adjetivar a dor de "elegante", e não "o homem com uma dor", como sugere o poema impresso, Itamar desloca o sentido, abre o texto à plussignificação. Tanto ao ler o poema, quanto ao ouvir a canção somos inclinados a refletir dançando com um sujeito cancional que sabe usar o "assim" - "caminha assim de lado" - para criar intimidade com quem ouve e presentificar-se no instante-já do dizer. Do mesmo modo como a dor que faz o homem ter elegância. "Não me toquem nessa dor", diz o sujeito poemático e cancional, afirmando a intimidade com a dor e com quem ouve, outro passível de dor.
À passionalização proposta pelo poema, Itamar justapõe um acompanhamento de cordas, um quase blues, um quase reggae. Depois da introdução instrumental, Itamar fala: "Leminski disse" e divide os vocais da canção, do poema cantado com Zélia Duncan. Assim, como o eu poemático que fala para outrem - "não me toquem nesta dor" -, o sujeito da canção precisa compartilhar a experiência e o aviso. Assumpção faz a ponta entre um e outro quando na segunda vez em que o poema é cantado introduz "Leminski disse e Zélia vai repetir pra vocês". Neste segundo momento da canção Duncan declama parte do texto, o acompanhamento continua o mesmo e alterna-se palavra cantada com palavra falada. Ecos e coros "por favor" soam aqui e ali para reforçar a partilha do sensível. "Leminski disse e a Zélia repete aqui pra vocês", diz Itamar presentificando a dor: o "aqui" da voz do cancionista almagama-se semanticamente ao "assim" do poema.
Os versos leminskianos "carrega o peso da dor / como se portasse medalhas / uma coroa um milhão de dólares / ou coisa que os valha" e confirmam o que Fábio Vieira (2010) anota em Oriente ocidente através - a melofanologopaica poesia de Paulo Leminski: "Através da concisão, da justaposição de imagens e da sintaxe atrativa de opostos, a poesia de Leminski faz crítica à visão linear dos fatos. O recolhimento do desprezível, através de um humor contido, revela muitas vezes uma forma de ver coisas pela ótica do sensível" (pág. 118).
Esses mesmos versos dialogam com os versos da canção "Luz do sol", de Caetano Veloso, gravada por Gal Costa em Minha voz (1982): "Marcha o homem sobre o chão / Leva no coração uma ferida acesa / Dono do sim e do não / Diante da visão da infinita beleza / Finda por ferir com a mão essa delicadeza / A coisa mais querida, a glória da vida". Eis a dor elegante compreendida por Itamar? O sofrer promotor do amadurecimento como última obra do homem? A elegância é resultado da compreensão interna e corporal da dor de um corpo calejado da existência?
Caetano e Leminski, cada um a seu modo, identificados com o desbunde, incorporam em suas obras reflexões filosóficas, épicas e trágicas. Um movimento característico de uma geração que diz "sim" à vida, apesar do sofrimento. "Existirmos, a que será que se destina?", pergunta Caetano em "Cajuína". Os dois são bons exemplos de letristas que no Brasil não se restringem à recepção fácil, ao mero entretenimento. Ambos tensionam subjetividade (eu, público específico) com cultura de massa (canção para tocar no rádio). "Um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico", dissera Oswald de Andrade. Caetano e Paulo sabem que distinguir quem deve ou não comer o "biscoito fino" é gesto classicista, repressor, cafona.
Itamar cria uma melodia que não dilui o pensamento, ao contrário. Ele compreende que o eu do poema está em trânsito, caminhando "de lado / como se chegando atrasado andasse mais adiante". Por isso o blues, o reggae para figurativizar o movimento (o fazer) do eu. Itamar incorpora a sinestesia sugerida no poema: o ritmo do caminhar, o diálogo interno, a experiência partilhada, o humano. Questões que não se esgotam na primeira leitura do poema, nem na primeira audição da canção. Itamar prova que o poema não é um texto autônomo, depende do leitor, depende das condições de leitura (mesmo silenciosa) para ter e fazer sentido. O homem do poema é um e é todos.
No texto "No corpo da voz: a poesia-música de Paulo Leminski", Ricardo Aleixo anota que "a canção popular, o processo que leva à sua criação, sobretudo quando esta envolve parceira, parece atrair Leminski pelo que contém de convite à alteridade. (...) Músico ou 'meio músico', Leminski quer que seus textos - transformados ou não em canções - transcendam a mudez da página" (pág. 290, In: A linha que nunca termina, 2004). Para Aleixo, "por mais que 'especialistas', 'letristas', literatos e bicões entreguem-se a discussões bizantinas sobre as diferenças qualitativas entre poesia e música, é fato inquestionável que no Brasil a canção popular atingiu um nível de excelência raro, mesmo quando confrontada com a de outros contextos" (pág. 292).
Depois desta versão de Itamar Assumpção e Zélia Duncan (1998), a canção "Dor elegante" já foi cantada por Edvaldo Santana (Edvaldo Santana, 2000), Zélia Duncan e Naná Vasconcellos (Pré-pós-tudo-bossa-band, 2005), Estrela Leminski (Leminskanções, 2014) e Chico César (Aos vivos agora, 2012). "Ver / é dor / ouvir / é dor / ter / é dor / perder / é dor // só doer / não é dor / delícia / de experimentar", escreveu Paulo Leminski em Caprichos & relaxos. "Viver vai ser a nossa última obra", parodiou Itamar Assumpção parceiro de Leminski.
***
Dor elegante
(Paulo Leminski)

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegasse atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios édens analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser minha última obra.

29 abril 2020

RESENHA: Poesia e outras artes

Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Poesia e outras artes”, de Lúcia Santaella.

Antes de investigar a intermidialidade da poesia, além de sua relação semiótica, estética, semântica, com as outras artes, sobretudo a música, o texto de Lúcia Santaella também é um bom estudo introdutório de semiótica focalizada em questões estéticas. A autora lança mão de Peirce e Pound para confrontar a poesia (arte de signos verbais) com as outras artes e seus próprios sistemas semióticos. "No domínio da literatura, essa teoria das três matrizes da linguagem e do pensamento encontra respaldo em Ezra Pound que, no seu ABC da literatura (1970), postula três categorias fundamentais para explicar todos os processos poéticos: a melopeia, a fanopeia e a logopeia. Melopeia, de acordo com esta poética, refere-se à dimensão acústica das artes verbais, a sua dimensão auditiva, sua musicalidade e ritmo. A fanopeia responde pela dimensão visual e imagética, pela miríade de imagens que a literatura pode evocar, enquanto a logopeia dá conta do impacto verbal, lógico e linguístico da literatura. De acordo com esses três processos da poiesis literária, Pound também distingue três maneiras de alcançar a perfeição literária: (a) por saturação acústica das palavras na sua fusão com os sons, (b) pela projeção de uma imagem na retina mental e (c) por meio “da dança do intelecto entre as palavras" (p. 3). E para uma compreensão mais ampla, menos restrita aos signos verbais, temos em Charles Peirce as matrizes das artes, em graus de coisididade da coisa, de perfeição formal (primeiridade, secundidade e terceiridade).
Santaella destaca que a música é a arte mais próxima da poesia, pois ambas são artes do tempo, têm suas origens comuns na história ocidental. A poesia, sendo essa arte feita por palavras, perdeu suas qualidades sonoras de expressão, visto que passou a ser escrita, num congelamento do idioma falado. A letra é a tradução plástica dos sons da língua (idioma). "Com a convergência das artes em gêneros híbridos, tais como as artes midiáticas e digitais, com o entrelaçamento intermidiático de todas as artes, com a reme(i)diação visual e tonal das artes literárias de um lado, e os elementos de absorção da literatura pelas artes irmãs de outro lado (ver BOLTER e GRUSIN, 2000), o conceito de literatura e a relação entre a literatura e as outras artes mudaram profundamente" (p. 14). Além disso, há outros pontos de diálogo entre as duas artes: a oralidade do discurso e o canto, o substrato musical da fala e da poesia, o ritmo e a língua. Principalmente o ritmo, que parece ser o que guia a poesia desde sua libertação da métrica e formas fixas, aproximando-se da fala e da música, e o som. Mas os mesmos pontos em comum, também revelam suas distinções: "Se a música é feita de sons, a poesia é feita de palavras. As palavras são sons, mas ao mesmo tempo, algo além e aquém do som. É nesse ponto que se dá a distinção entre poesia e música" (p. 7).
A poesia seria uma arte secundária, pois lança mão de um outro sistema de signos já formado com utilidade independente (a língua), ao passo que a música é um sistema primário, já que seus elementos constitutivos têm uma função semiótica fraca ou inexistente fora do contexto de sua criação e apreciação. Isso se desdobra naquilo que Santaella chamará de quali-signo, na classificação de Peirce "aquele tipo de signo que não pode representar outra coisa senão puras formas" (p. 8).
A boca é apresentada como mecanismo de efetivar necessidades fisiológicas, mas também de prazer, como comer, beijar e cantar. A voz é única, possui um tom, uma altura, uma intensidade e duração específicas (p. 5). O canto transvalora as funções mais corriqueiras do aparelho fonador, ressalta sua natureza musical, rítmica, cônscia de uma significação além do sentido proposicional da palavra. De certo modo, o ritmo é um canal de verdadeira importância; e a implosão da métrica pelo verso livre, pode-se dizer, aproximou a autonomia rítmica da poesia àquela da música. Embora esta também tenha, claro, passado por uma libertação de sua própria escritura, notação, na modernidade.
A autora destaca a questão do tempo como essencial nível de análise para nós, enquanto humanos, e seu papel na música, levando em consideração o ritmo (se confunde com a linguagem, é "conteúdo qualitativo e concreto"), o qual também se encontra na poesia e se difere do metro (histórico, medida vazia de sentido) (p. 6-7). O ritmo não se acha apenas na música, mas na arquitetura também, como afirmou Goethe que "a arquitetura é música congelada" (p. 8). Enquanto a escrita gera a perda das qualidades sonoras, faz com que alguns elementos essenciais para a interpretação e experiência da fala, como respiração, vibração, pausa, entre outros, sejam ignorados, mortos (p. 9).
Segundo Santaella, com Mallarmé, a poesia ganhou emancipação da função de representar a linguagem falada e começou a ser percebida a ideogramação existente na escrita desde sempre, no Ocidente (p. 10). Para ela, “torna-se perceptível onde se cruzam as veias da poesia no Ocidente e no Oriente. Se, no Ocidente, a poesia nasceu da submissão ao som, a poesia levou essa submissão a tal ponto de saturação que, explorando até o extremo o potencial da linguagem para os jogos fônicos, gerou estruturas correlativas correspondentes aos processos ideogrâmicos de composição da linguagem, típicos do Oriente. Das formas musicais da poesia, passou-se, portanto, à música das formas. A poesia oriental, por seu lado, poesia inscrita na plasticidade da ideografia e, consequentemente, morfogeneticamente configurada como verdadeira música das formas, também apresenta, nos ritmos visíveis de suas cadeias quase fílmicas, profundas analogias com os modos de formar dos engendramentos melódicos e harmônicos da sonoridade musical” (p. 11).
Santaella expõe as relações intermídias e transmídias para justificar o hibridismo das artes verbais e visuais. Isso se dá por estas representarem objetos em comum, mas que em suas finalidades específicas privilegiam por diferentes modos da poesia. Santaella apresenta a literatura em diálogo com outras artes. A poesia e música, poesia e artes visuais encaradas por uma moldura semiótica, isto é, uma perspectiva que nos proporciona uma abordagem que vai além de características restritivas de cada arte. Essa confluência não se restringe apenas à análise, mas, como conclui, é marca das artes contemporâneas, que cada vez mais encaminham para um entrelaçamento intermidiático.
Santaella finaliza apontando a questão da poesia visual e a discussão entre literatura e as artes visuais clássicas da pintura, gravura, escultura e arquitetura, e ainda ressalta as diferenças que derivam do potencial semiótico específico dos signos verbais e dos visuais, pois tanto a comunicação verbal quanto as artes visuais têm o potencial semiótico da representação.

SANTAELLA, Lúcia. “Poesia e outras artes”. In: Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol. 9.n.2, dezembro de 2011.

24 abril 2020

RESENHA: Poesia e pensamento abstrato

Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Poesia e pensamento abstrato”, de Paul Valéry.

    O ensaio "Poesia e pensamento abstrato", de Paul Valéry, além de elencar as condições de produção do fazer poético (i.e. a conjugação harmônica de forma e conteúdo que atribui à palavra um sentido poético e verdadeiro, dimensão perene da palavra, em detrimento do significado arbitrário e instrumentalizado de seu uso corriqueiro, a dimensão finita da palavra), é uma bela proposta de discussão sobre os efeitos desse fazer, sua constituição, suas idiossincrasias e a tékhne específica ao poeta. Mais ainda, sobre a relação entre pensamento e prática poética e sobre os caminhos possíveis até o poema, que podem partir tanto da necessidade de dar sentido a uma frase, a uma palavra, a uma intuição rítmica, quanto do impulso de formar a construção poética de uma ideia, experiência ou afeto e torná-la sua expressão mais acabada.
    Para Valéry poesia é trabalho que não se desfaz na clareza da prosa. Trabalho que empresta ao vulgar e comum da linguagem sua vitalidade (e, realmente, poesia é vital: a palavra não-poética morre imediatamente assim que pronunciada), por trabalhar a partir dele e com ele, por sublimar o mais acessível, (re-)utilizado e banalizado instrumento humano. Valéry considera os aspectos fônicos e entoativos da palavra, a música própria à palavra, mas sua concepção de poesia dista bastante daquilo que os principais cancionistas modernos e teóricos da vocalidade investigariam.
    Escreve Valéry: “Gostaria de lhes dar uma imagem simples. Pensem em um pêndulo oscilando entre dois pontos simétricos. Suponham que uma dessas posições extremas representa a forma, as características sensíveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonações, o timbre, o movimento – em uma palavra, a Voz em ação. Associem, por outro lado, ao outro ponto, ao ponto conjugado do primeiro, todos os valores significativos, as imagens, as ideias, as excitações do sentimento e da memória, os impulsos virtuais e as formações de compreensão – em uma palavra, tudo que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso. Observem então os efeitos da poesia em vocês mesmos. Acharão que, em cada verso, o significado produzido em vocês, longe de destruir a forma musical comunicada, reclama esta forma. O pêndulo vivo que desceu do som em direção ao sentido tende a subir de novo para o seu ponto de partida sensível, como se o próprio sentido proposto não encontrasse outra saída, outra expressão, outra resposta além da própria música que o originou” (p. 205).
    O trabalho do poeta não exige apenas "a presença do universo poético", mas reflexões, decisões, escolhas e combinações, sem os quais os dons da Musa ou do Acaso não teriam autores (p. 217). A voz (em ação: timbre, entonação, performance, entre outros) é abordada como a própria linguagem, e não apenas como um mecanismo desta, afirmando que apenas palavras (signo) não são suficientes para dar sentido e gerar compreensão.
    A poesia, sendo encantamento, se aproveita de algo existente e os transforma para outro sentido e significação, como símbolos e alegorias. Para o autor, “reconhece-se o poeta – ou, pelo menos, cada um reconhece o seu – pelo simples fato de que ele transforma o leitor em ‘inspirado’. A inspiração é, positivamente falando, uma atribuição gratuita feita pelo leitor ao poeta” (p. 206). Valery trata do leitor como alguém que atribui ao poeta algo. Mais a frente, ao falar do universo musical, ele diz que “um som produzido evoca, por si só, o universo musical” (p. 210), isto é, o começo de um mundo. E o ouvinte mesmo se organiza inconscientemente para acolhê-lo. “O universo musical, portanto, estava em vocês” (idem). Eis o caráter performático da leitura, ainda que silenciosa, ela apresenta uma voz, evoca presença.
    Além da metáfora da pureza do som musical versus o ruído da linguagem, destaque-se a analogia feita por Valéry entre a Prosa e Poesia com o Andar e a Dança. A prosa comparada ao ato de andar de uma criança tem uma finalidade e se dá por combinações singulares. Já a poesia, assim como ocorre na dança, é um sistema de atos, com finalidade em si mesma, na busca por um objeto ideal ou um extremo de vida.
    "O universo poético não é tão forte e facilmente criado. Ele existe, mas o poeta é privado das imensas vantagens possuídas pelo músico. Ele não tem diante de si, pronto para o uso da beleza, um conjunto de meios feito expressamente para sua arte. Ele tem que tomar emprestada a linguagem" (p. 210) No ruído "nada puro; mas sim uma mistura de excitações auditivas e psíquicas perfeitamente incoerentes. Cada palavra é uma mistura instantânea de som e sentido, sem qualquer relação entre eles" (idem). O poeta precisa trabalhar com toda essa matéria e fixa o que no cotidiano é banal: "O poema não morre por ter vivido: ele é feito para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser" (p. 213).
    A linguagem é a "criação da prática", ou seja, temos a prova de que fomos entendidos quando nossos pedidos são realizados, como o autor exemplifica, peço fogo, você me concede, logo, fui entendida. Só palavras não são suficientes para gerar sentido e compreensão, entonação e timbre de voz também complementam esse processo (p. 208), o que ele chama de Voz em ação (p. 213). Valéry denomina como poesia a arte da linguagem e como poética uma combinação de palavras que geram uma emoção que outras não o fazem (p. 205). O estado poético (quase como quando nossos sentidos são despertados) não é suficiente para fazer o poeta. Valéry afirma existir diferença entre emoção poética e criação de uma obra (p. 206) e acha muito mais interessante analisar de que forma se deu a criação da obra do que ela em si.

VALÉRY, Paul. “Poesia e pensamento abstrato”. In: Variedades. Trad. Maiza Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007.

17 abril 2020

RESENHA: Ritmo e melodia no poema lido e musicalizado


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Ritmo e melodia no poema lido e musicalizado”, de Judson Gonçalves de Lima.

            O trabalho de Judson Gonçalves de Lima procura por pontos de convergência, ou divergência, entre o poema e a canção. Através da análise de poemas musicalizados, o autor observa por exemplo a presença da fala no canto e como o texto pode influenciar a organização da canção. O foco é a análise de acentuação, frequência e a comparação da tessitura na fala (quando recitado) e no canto (após o tratamento musical). O autor utiliza quatro exemplos de poemas musicalizados: dois de Antônio Cícero, interpretados por Adriana Calcanhotto: “Maresia” e “Água Perrier”; um de Haroldo de Campos e interpretado por Caetano Veloso: “Circuladô de fulô”; e um de Manuel Bandeira e interpretado por Ney Matogrosso: “Rondó do Capitão”. Todas canções são também comparadas com a oralização feita pelos próprios poetas.
Com o objetivo de comparar os dois usos da voz, o processo de comparação entre a voz falada e a cantada, o autor utilizará dois softwares, para tornar o sonoro menos abstrato. Para editar as partituras, foi usado o Finale, e para analisar as récitas através de um gráfico, foi usado o SFS/ Wasp que irá decompor as sílabas das récitas no programa, destacando pontos altos e baixos.
No verso de “Maresia” “O meu amor me deixou” a curva melódica da canção segue e mesma curva melodica da fala. As durações das sílabas acentuadas são maiores (duram mais) que as não acentuadas. A partitura musical e o desenho melódico do gráfico da récita seguiram a mesma lógica, mostrando, então, os detalhes sobre a musicalização do poema. Ou seja, há dois pontos importantes a serem destacados: o repouso e a pausa na passagem dos versos, sendo o repouso a redução de frequência ao fim da palavra e o silêncio, a pausa (p. 58), em que se conclui que não há um final ascendente no final dos versos, comum a música popular (p. 59). Segundo Judson, "alguns compositores alteram algumas características do poema para facilitar a musicalização" (p. 39). O verso "Era eu quem tinha partido" é apontado como uma das maiores semelhanças entre récita e canto deste poema/canção, visto que "as sílabas mais longas do verso lido (...) são as mesmas sílabas cantadas com as notas mais longas" (p. 48), por isso "essa canção é um bom exemplo de adequação do acento textual ao acento rítmico" (p. 60).
Sobre a canção “Circuladô de fulô”, Judson nota uma questão referente a estrutura do poema. A falta de recorrências no texto, ou a sua não obviedade, pode complicar a composição de esquemas para a canção. “Na música, sobretudo música popular, lida-se muito com recorrências, e quando o texto é carregado de recorrências melódicas – como rimas por exemplo –, métrica ou rítmicas (todas muito comuns em poemas), isso parece facilitar a musicalização, já que essas recorrências acabam por servir de base motívica na qual as frases musicais podem se apoiar. No caso de textos, como o Circuladô de fulô, que aparentam não possuir essa recorrência, é preciso descobri-las, no sentido mais literal da palavra. Na canção interiormente analisada, Maresia, por exemplo, os versos e estrofes são bem definidos, isso influenciou para que a música fosse composta de dois “esquemas harmônico-melódicos” que se alternam entre uma estrofe e outra; mesmo os versos da primeira estrofe sendo diferentes dos da terceira, a harmonia é a mesma e a melodia se assemelha muito, o mesmo ocorrendo com a segunda e quarta estrofes” (p. 61).
É interessante perceber isso, pois enquanto “Maresia” apresenta uma estrutura que poderíamos dizer “ideal” para a canção popular, o texto original de “Circuladô de fulô” apresenta uma estrutura mais “estranha” para a musicalização, demandando um trabalho diferente do cancionista. “Circulado de fulô” não é um poema, mas uma prosa poética (p. 63). Então, o desafio para o cancionista Caetano Veloso foi tentar trazer para a canção o que Haroldo de Campos propõe no livro Galáxias. Caetano seleciona fragmentos do texto que remetem a um canto de cantador nordestino (p. 66), preocupando-se com a frequência e a acentuação, que mantém o lastro com a palavra falada, deixando-a transparecer no canto.
Judson reflete sobre essa questão baseado em Massini-Cagliari, para quem a própria divisão rítmica da língua — em sílabas e acentos —, já se baseia em recorrências: na produção de sílabas e na produção de acentos. Sendo assim, mesmo a ausência explícita de rimas, métrica e outros usos de estrutura que tenha como efeito produzir recorrências dentro do texto, a própria língua já terá intrínseca as recorrências. O "que nos leva a crer que, podendo ser mais ou ser menos, a recorrência existe em qualquer texto ou mesmo na fala cotidiana. Para uma canção, pode ser desnudado esse padrão de recorrência para a própria facilidade de o compositor organizá-la ritmicamente" (p. 62).
A canção inicia-se pelo refrão, criado por Caetano, constituído por notas longas e definidas. Outra questão pontuada é a diferença existente entre a acentuação utilizada por Campos e a utilizada pelo cancionista, como pode ser verificada no segundo verso, em que "deus" não é acentuado na voz de Caetano, mas é acentuada na récita de Campos. Embora haja essa diferença quanto a acentuação, há algumas semelhanças de acentos também, como se nota nas quartas sílabas e nas últimas sílabas finais. Há na canção, um trecho em que as sílabas são cantadas de maneira mais ligeira e então somos levados a refletir sobre o cuidado que é preciso ter para que não se "comprometa a identidade (inteligibilidade) da palavra" (p.74).
"Água Perrier" é mais um poema de Antônio Cícero interpretado por Adriana Calcanhotto. O poema não tem uma estrutura de métrica regular entre os versos. Portanto, assim como ocorre na canção "Circuladô de fulô", em que Caetano precisou "descobrir" uma maneira de estabilizar a melodia, Adriana estabelece na canção uma forma de escansão do tipo A-A'-B-A'' (p. 97). A tessitura da fala (do poeta) é maior que a do canto (da cancionista). Para Judson, "mesmo que no processo de composição não tenha sido racionalizada a ritmicidade do poema, ela parece ter sido determinante nas escolhas da cantora/compositora. Embora o poema não apresente regularidade de recorrências imediatas, um padrão métrico fixo e claro entre os versos, elas foram encontradas na composição estrófica" (p. 106).
"Rondó do capitão" é um poema de Manuel Bandeira, que foi musicalizado por João Ricardo, integrante do grupo Secos & Molhados. Vocalista do grupo, Ney Matogrosso foi o responsável por cantar o poema. Judson aponta os acentos do metro como sendo uma característica forte do poema de Bandeira e que é bem marcada na récita, o que não é percebido na canção, que segundo o autor, nem sempre são sentidos. Em "Rondó do Capitão" a tessitura da fala é maior que na melodia da canção. Judson anota que na canção há erros prosódicos que impossibilitam que "sentimentos e sentidos" da entoação do texto sejam passados em sua construção rítmica e melódica. Segundo o autor: “Do ponto de vista da presença da oralidade no canto, podemos sugerir que a canção explora pouco, e é pouco fiel, às possibilidades do texto. Não que a melodia devesse ser complexa, mas no sentido em que a música é tão econômica em sua construção rítmica e melódica que beira, durante muitos momentos da canção, a erros prosódicos. E as frases musicais muito semelhantes não representem a entoação do texto, o que parece impedir que os ‘sentimentos e sentidos’, impressos pelos poetas (através da cuidadosa seleção das palavras) na 'música do texto', se realizem” (p. 93).
Um entendimento fixado desde o princípio do texto de Judson é o de que não devemos subtrair a melodia da fala, como bem já ensinaram Fiorin e Tatit. Muito menos a entoação da canção. Melodia e entoação coexistem, marcando suas dessemelhanças mais por um maior enfoque em determinados aspectos em detrimento de outros, sem limá-los completamente. Destaque-se um lugar fronteiriço que faz parte da poética de alguns artistas contemporâneos e que não conseguimos precisar se do canto ou da declamação. O ocasional acompanhamento de instrumentos (ou de objetos imprevisíveis tornados instrumentos; ou de ruídos indistintos na composição do ritmo) dificulta essa delimitação mais ainda: o que por vezes percebemos, ao contrário, é um valor dissonante, (propositalmente?) desarmônico, uma voz desvinculada como a de um declamador perdido, apartada dos seus arredores. Uma tensão/insubordinação do ritmo da fala ao ritmo da música em contraponto à adequação/subordinação mais comum na música popular? Para ele é a existência de uma interpenetração da ritmicidade própria do poema original com os ritmos/as melodias da récita e da canção, mas sempre com uma especificidade de metro e melodia, pelo menos no caso da récita e da canção, que as diferenciam.
Judson ressalta que o nosso conhecimento nativo da língua portuguesa nos permite corrigir certos desvios de acentuação com a ajuda da semântica, o que nos leva a não perceber certos problemas de acentuação.

LIMA, Judson Gonçalves de. Ritmo e melodia no texto lido e musicalizado. Curitiba: UFPR, 2007.

10 abril 2020

RESENHA: Língua, ritmo e vida


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Língua, ritmo e vida”, de Henri Meschonnic. Extratos traduzidos por Cristiano Florentino. Revisão de Sônia Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.

            O texto de Henri Meschonnic trabalha com vários conceitos e faz um apanhado de diferentes perspectivas acerca da díade voz-escrita, opondo-se veementemente a este binarismo, pois o autor tem um olhar bastante crítico tanto para a forma como a voz vem sendo instrumentalizada e significada (a própria investidura do signo é posta em cheque) quanto para recortes específicos e limitantes do oral (como a linguagem falada). Ele destaca a combinação, a complementaridade entre oral, falado (“registro popular”, sem interferência de editor) e o escrito. Dá o exemplo de um poema, que escrito, acaba não sendo escrito nem falado, mas pode estar nos dois (escrita e fala), ressaltando que literatura não tem que ser oralidade e escrita (bipartição da literatura), mas fala (tripartição) também (p. 25). O autor cita alguns teóricos e estudiosos que contribuíram para a afirmação deste modelo binário, dentre eles, Céline e Bakhtin (p.26-28).
Por exemplo, para Meschonnic, a análise de Paul Zumthor é incapaz de demonstrar a existência da dicotomia oralidade/escritura e da especificidade da poética oral. Contradições como a que ele observa aqui: “Se a voz é ‘o instrumento da performance’, não é somente como fonia e performance, mas prosódia e sintaxe, visão da voz, as palavras tornando-se visão”. Meschonnic também não é muito afeito aos critérios qualitativos de Zumthor, com sua valorização do ritmo (que Meschonnic chama de “supervalorização”) e da gestualidade performática: nesse sentido, Meschonnic, que já havia se demonstrado crítico em relação à conveniente categorização dos gêneros, aponta para uma confusão entre modalidades de voz, que existem independentes do juízo estético, com especificidades genuínas de uma poeticidade oral. “Toda biologização da linguagem reforça o instrumentalismo do signo” (p. 45), ou seja, focar na voz enquanto um mecanismo para a linguagem ou a palavra é tirar seu real valor, já que ferramentas podem ser substituídas, por exemplo. Ela não é um instrumento para que algo aconteça, ela é a coisa em si, a linguagem, não seu instrumento para ela.
Desde o império da escrita, o poema tornou-se o lugar da crítica para a oralidade, a literatura e a escrita, já que “revela uma solidariedade entre a oralidade e o sujeito, o que leva a colocar de outra maneira a relação estabelecida entre o escrito e o oral” (p. 16). O sujeito foi, durante algum tempo, escondido nos estudos sobre oralidade e escrita, o que deu força para, segundo o autor, o fracasso desse estudo. O intuito do estudo passou a ser a revalorização da análise do discurso com base no discurso, não nos conceitos da língua para o discurso. A crítica começou na linguística, na qual teve o ritmo como o regente do discurso, em que boca e orelha eram os principais órgãos para a análise da oralidade (p.17).
Henri se utiliza de dois campos para falar de oralidade: a tradução, na qual a oralidade altera a forma com que ela é feita; e textos literários antigos (com foco para o estudo e o ensino), que, pela filologia mostra que somos “analfabetos na oralidade” (p.19). Ele exemplifica a questão da pontuação numa edição para tradução ou um texto teatral, considerando o editor como juiz, não o leitor ou o autor, a pontuação pode alterar o sentido do texto, a história de um poema, por exemplo.
A pontuação, na poética de um texto, equivaleria a um gestual, na visão de Meschonnic, pois todos os elementos gráficos atuariam como elementos de ritmo. O autor atribui extrema importância à relação do ritmo e da escritura, mas o ritmo do texto poético é distinto do ritmo que encontramos na música, por conta dos intervalos regulares da poesia. Nesse sentido, Meschonnic dificilmente seria receptivo à ideia de equivaler uma canção a um poema, já que seus juízos de valor ainda são muitíssimo dependentes de paradigmas tradicionais, canônicos, ainda que critique justamente o tradicionalismo (no caso, linguístico) que lhe parece turvar uma realidade que de outro modo seria mais evidente: o falado e a escrita como contrapartes discursivamente organizadas pela oralidade. Sob o jugo do signo, o autor aponta que a oralidade, pelo menos quando entendida em seu sentido estrito, não se resume a esse registro popular, que pode se separar ou virar uma subcategoria do oral: o falado. É nessa esteira que ele cita autores como Joyce, que subtraem do oral e trabalham sua escritura de forma inventiva e singular, cujas contribuições disruptivas enriquecem a língua como um todo ao mesmo tempo em que a subjetivizam com códigos específicos, novos, do mesmo modo que Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas ou, em proporção e relevância muito menores, Paulo Leminski em Catatau.
            No capítulo "A oralidade, poética da voz", ao aproximar o conceito de oralidade a voz do corpo, Meschonnic aponta para a importância da escuta como parte da voz (p. 44). Porém, vale ressaltar que a voz, sendo "ferramenta de expressão de si" (p. 45), é parte indispensável se comparada aos demais instrumentos, pois ela não se refaz (p. 45). A voz também é a expressão íntima que exterioriza estado emotivo, o que não acontece, por exemplo, com as palavras (p. 46). E isso, no texto, será abordado de uma forma interessante quando o autor explícita a relação de independência da voz em relação a linguagem, como ocorre na música. Sendo assim, é importante frisar que a voz antecede o sentido. Para isso, Henri Meschonnic ilustra a prática de ensinar as crianças a se expressarem por palavras e frases, o que anteriormente, elas produziam pela voz (p. 47), ou seja, o som sem o logos.
            Enfim, o texto aborda a diferença e/ou complementaridade entre língua falada e escrita. Henry usa a definição e método de explicação de alguns autores, que apresentam a bipartição ou tripartição da literatura (oral, fala e escrita; fala, escrito e escritura) para definir a oralidade e melhor compreendê-la. O autor ressalta que deve-se levar em consideração a maneira que o oral é ensinado nas escolas e cita o estruturalismo e a semiótica que contribuem mais para a confusão entre língua falada e língua escrita. A discutível conclusão do autor é que a oralidade é da ordem do discurso, da enunciação: ela é uma espécie de liga rítmica entre o falado e o escrito, sendo estes solidários. Na contramão da especificidade, Meschonnic parece acolher uma generalidade. Daí vem a reflexão sobre a “espacialização” ou “essencialização” do oral enquanto “dessubjetivação” da voz.

MESCHONNIC, Henri. Língua, ritmo e vida. Extratos traduzidos por Cristiano Florentino. Revisão de Sônia Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.

03 abril 2020

RESENHA: Vocalidade em Guimarães Rosa


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o livro “Vocalidade em Guimarães Rosa”, de Erich Soares Nogueira.

            A partir da leitura dos textos de Paul Zumthor, Erich Soares Nogueira defende que, além de suporte, a voz é manifestação de sentido. As narrativas de João Guimarães Rosa "Meu tio o Iauaretê", "Buriti" e "O recado do morro" são analisadas à luz desta premissa em Vocalidade em Guimarães Rosa, tese defendida por Nogueira na UNICAMP (2014). O autor defende a necessidade de desatrelar a ideia de sentido à gramaticalidade e à transparência da oralidade e da escrita, abarcando a dimensão da vocalidade/voz, com seu modo próprio de fazer sentido. Isto é, segmentos agramaticais em uma performance não são necessariamente assemânticos, nem seguem uma lógica estranha à linguagem. O que eles fazem é desvelar o significante total da voz, que é presença, positividade, conjuração do corpo que, para Zumthor, também despeja o signo de sua arbitrariedade. Assim como o autor de Introdução à poesia oral e A Letra e a voz, Erich investiga a aproximação dos elementos de uma performance predominantemente oral que estão presentes no ato de leitura (p. 35).
A distinção entre oralidade e vocalidade, sendo esta não necessariamente constituída do logos, é importante, assim como as diferenças entre estas duas categorias fônicas e a estanque escritura. Aliás, é a partir desta, de uma análise dos modos como o grafismo, mais ligado normalmente à oralidade, aparece nas narrativas de Rosa, que a tese de Nogueira se desenvolve: o jogo entre o intangível da vocalidade e a notação linguística. Nogueira considera a oralidade como uma abertura para a vocalidade em Guimarães (p. 53).
 Guimarães Rosa sublinha a materialidade do discurso através da assimilação e do uso de diversos gêneros orais, lançando mão de onomatopeias, quebras de sentido lógico, adjetiviza ou pessoaliza a própria voz, conferindo-lhe características singulares etc. Rosa pratica uma polifonia que conjura um mosaico de vozes em um sentido mais próximo daquele significante total representado pela dimensão da vocalidade, uma polifonia mais próxima, portanto, da música ou da phoné aristotélica. A questão do letramento e do preconceito com os “iletrados” foram abordadas como contribuintes para a supervalorização da escrita e a decorrente desvalorização da oralidade (p. 26).
Erich aponta casos do protagonismo da voz e sua materialização como “ação sonora que cria sentido, mundos, seres, que se alia à busca do divino; ou ainda, como forte elo rítmico que agrega e sustenta toda uma cultura” (NOGUEIRA, 2014, p.18). Nessa direção, Erich elenca "Tarantão, meu patrão", em que a voz tem uma força encantatória que suplanta a correção gramatical, a estruturação linguística, os limites do léxico, a coerência discursiva, abrindo mão do significado literal em função de uma potência entoativa própria.
A existência da voz é anterior a da escrita, pois “toda voz é corpo; toda voz é presença de uma singularidade encarnada; toda voz é relacional e pressupõe uma escuta” (p. 21). Aquilo de que era realizada no silêncio, leitura de poemas, recebe corporificação na voz, sendo um "acontecimento vinculado à presença irredutível de um corpo que se expande por meio da voz e dos gestos, dirigindo-se a um público cuja presença corpórea também entra no jogo de significação" (p.35).
O ato da leitura de obras literárias produz o efeito da voz no momento que o leitor ouvi as vozes dos personagens juntamente com a dele próprio. Fazendo uma analogia entre poema vocalizado e o texto literário, o autor escreve que "o canto é a expressão máxima desse excesso, e seu correspondente, na escrita, é a literatura" (p.42). Vale lembrar que: "Essa vocalidade é constitutiva da escrita literária, mas ela tende a ganhar maior consistência na leitura em voz alta" (idem). Em Guimarães Rosa, cria-se de fato um novo vocabulário para dizer a voz. Alguns trechos, na verdade, são mais do que descrições, são elaborações de forte caráter poético que nos ensinam uma escuta mais aguçada da voz, em todas as suas nuances, sutilezas e sugestões. Note-se, também, que há a clara preocupação de marcar a singularidade de cada voz, as suas qualidades únicas, em consonância com as características que particularizam cada personagem. Além disso, essas vozes, em vários momentos, também incorporam e expressam o contexto narrativo, marcado pela tensão, pelo erotismo, pela violência, etc. (p. 54). O autor observa que "é por efeito de um trabalho literário que nos chegam essas vozes, inclusive trazendo dimensões de sentido que só ganham força no interior da ficção" (p. 61). Ele ressalta ainda, que isso ocorre devido também a "cantigas, ditados, poemas orais, causos, rezas e diálogos" no conjunto composicional da obra de Guimarães.
            Erich cita Adriana Cavarero e a definição que a filósofa dá à voz: "unicidade encarnada", ou seja, a singularidade (reconhecimento) de seu emissor. Mais adiante, Cavarero também é citada para a conceituação, dada pela mesma, de que "voz é presença" (p.18), e o que surge na cultura moderna é ausência da presença dessa voz, como por exemplo, quando a voz é gravada e midiatizada, impossibilitando a participação (resposta no mesmo tempo e espaço) de seu ouvinte. Essa mesma ausência vai ser tratada por Paul Zumthor no que diz respeito a escrita, que é "ausência quase absoluta do corpo e da voz". Por sua vez, Cavarero utiliza-se da expressão "unicidade encarnada" para falar da singularidade do corpo de um sujeito; e "ontologia vocálica" pretende apreender a singularidade do ser que se desdobra através da voz que enlaça uma pluralidade de vozes. Desse modo, a voz articula corpo vivo e discurso como propõe Roland Barthes em "O rumor da língua". Toda voz implica uma escuta, pois é um chamamento, uma invocação.
            O autor da tese investiga a animalidade encontrada no conto "Meu Tio o Iauaretê" e também menciona essa marca indígena com várias expressões de tribos bem desconhecidas até então. A figura da Iara marca o folclore e as lendas que circundam esse povo. Em "Buriti" trata da voz do miolo insondável da noite ouvido por Chefe Zequiel. Em "Recado do Morro" conta sobre as diversas vezes que reverberam. Falando sobre essa "ciência da voz", ele trata de uma ciência global que compreende a física, a linguística e outras áreas também. Se a voz se equipara a emissão sonora de um texto por meio de um corpo a voz está mais para o corpo do que necessariamente para um discurso. Logo, essa voz emitida não necessariamente está vinculada à palavra.
No texto escrito há a presença do corpo da voz, que revela um ser e implica uma escuta. Essa presença, essa revelação e essa escuta se dão pelo ato da leitura.  “Se bem entendido, o leitor toca a palavra com a sua voz e, reversivelmente, sua voz é tocada pela palavra. O leitor dá sua voz à palavra e ao mesmo tempo deixa sua voz ser atravessada pelas vozes do texto, fazendo da leitura uma “operação vocal” que, não contraditoriamente, será também uma operação de escuta, isto é, a escuta de uma voz da linguagem” (p. 40), escrever Erich. O uso da linguagem oral presente na obra rosiana vai além da mera reprodução de regionalismos e arcaísmos, por exemplo. Esse trabalho revela mais do que uma tentativa de documentação da fala e de sua variedade oral, mas também a prevalência da escrita literária e renovação de um mundo. "A simples reprodução de um arcaísmo ou de um vocábulo regional já conhecido em um novo contexto de linguagem pode promover um deslocamento de sentido igualmente renovador da percepção desse mesmo vocábulo e, por extensão, da realidade a que fazia referência", diz Nogueira (p. 47), que ainda nos cita Antonio Candido ao afirmar que “Sagarana” apresenta "menos uma região do Brasil do que uma região da arte".
Essa inegável qualidade hipersensorial da linguagem é importante para a dimensão da vocalidade, na medida em que, entre as várias faculdades perceptivas revigoradas pela invenção de Guimarães Rosa, está a que julgo central ― a percepção de uma voz ― porque dela depende o próprio ato de leitura, conforme se argumentou, teoricamente, no capítulo anterior. Ao darmos o corpo de nossa voz ao corpo de sua palavra, passamos a escutar a voz de uma linguagem cujo objetivo é quase sempre exceder as fronteiras de sentido, lançando o leitor num mundo sonoro com significações muito mais abertas e moventes do que se poderia supor em uma “fala sertaneja” (NOGUEIRA, 2014, p. 70).
A leitura, mesmo silenciosa ‘interiorizada”, para Spire, “não é só mental”. A performance, para Zumthor, não é só corpórea, mas abrange elementos situacionais e mais complexos que os existentes na poética. O que marca a vocalidade em Grande sertão: veredas é, não só, a tendência do leitor a acompanhar um diálogo, mas uma ideia de enunciação ao longo de todo o texto, de que uma voz se destina a alteridade, exigindo a “presença da voz e escuta do leitor” (p. 66). A leitura manifesta a presença de um outro (outra voz), que demanda uma escuta, decorrendo disso uma resposta corporal de quem lê. Assim, a voz está presente na leitura, como defende Paul Válery, “a ‘forma’ do poema (...) é a voz em ação” (p. 36). Ou seja, para Erich Nogueira, "todo o livro se lança e se sustenta como instância de enunciação, portanto como endereçamento de uma voz a uma alteridade, exigindo, como condição dessa estrutura, a presença da voz e da escuta do leitor" (p. 66). Toda voz implica escuta, ela faz sentido quando gera algo no outro, gerando mais um critério para sua existência: a alteridade. Assim, a voz, mesmo fora da linguagem ou em suas fronteiras, gera um sentido, já que convoca um outro (p. 20).

NOGUEIRA, Erich Soares. Vocalidade em Guimarães Rosa. Campinas, SP: UNICAMP, 2014.