Antonio Cícero insere-se na tradição dos "poetas de livro" que transitam muito bem da poesia escrita à letra de canção. Tradição que tem Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes como potências exemplares. O primeiro é um dos poetas mais musicados do século XX, tendo feito também muitas letras para canção, para a voz humana. O segundo promoveu a ruptura entre os gêneros, chegando a ser chamado de "poetinha" por quem via o flerte de Vinicius, diplomata e "poeta de livro", com a canção popular, como um trabalho menor.
No caso de Antonio Cícero o trânsito começou à sua revelia. "Os primeiros poemas meus que foram musicados não haviam sido feitos para isso. Minha irmã, Marina, subtraiu-os de uma gaveta e os musicou, sem o meu consentimento", conta o poeta-letrista no texto "Sobre as letras de canções" (In: A poesia e a crítica, 2017, pág. 84). E completa: "Além dos versos que continuei a fazer para serem lidos, comecei a compor outros expressamente para virarem canções. Ademais, passei a fazer versos para melodias previamente compostas por Marina ou por outros compositores. As melodias, nesses casos, funcionavam como espécies de formas fixas para os versos" (idem).
As considerações de Cícero vão ao encontro daquilo que Francisco Bosco, a quem Cícero dedica o texto, respondeu em entrevista ao jornal Plástico Bolha (n. 14) ao ser perguntado sobre se "Todo poema pode ser musicado?", resposta: "Sim, a princípio todo poema pode ser musicado. O problema é que um poema é uma estrutura fechada, que almeja seu próprio acabamento, enquanto que a letra de música é uma estrutura aberta, que almeja o acabamento da canção, por intermédio de uma relação que estabelece com a música. Essa diferença estrutural é o que, se por um lado garante que todo poema possa ser musicado, por outro não garante que um excelente poema seja uma excelente letra de música" (entrevista a Marilena Moraes).
Cícero e Bosco, poetas e letristas, tratam da intenção de quem faz e do destino da poética da palavra. No caso de Cícero, aparentemente, contradizendo-se, já que teve poemas que foram musicados, mas que "não haviam sido feitos para isso". Mas, qual é o limite disso? E em que medida esse trânsito não significa a restituição da poesia às suas práticas originárias, ou seja, à indistinção entre música, instrumento e voz? Os dois parecem preocupados com a forma, a estrutura da potência da palavra. "Sempre tomei as formas fixas como uma espécie de desafio", escreve Cícero. Ambos citam Paul Valéry - Cícero: "É poeta aquele a quem a dificuldade inerente ao verso dá ideias – e não o é aquele a que ela as retira"; Bosco: "A forma custa caro".
"Para ser sincero, gosto mais de fazer poemas para serem lidos do que letras de música. Há duas razões para isso. Uma delas é que, neles, me reconheço mais inteiramente. (...) A outra razão (...) é que, embora os poemas que tenho feito ultimamente possam até ser entendidos numa primeira leitura, não creio que possam ser plenamente apreciados a menos que sejam lidos e relidos", anota Antonio Cícero (pág. 88), objetivando uma "leitura lenta e cuidadosa que somente pode ser feita na voz baixa e interior que o poeta Jacques Roubaud denomina 'aural'" (idem). Prestígio, fruição, hierarquia e autoria entram, portanto, na discussão sobre se "Letra de música é poema". Questão que Cícero considera formulada de modo inadequado, afinal música e literatura sempre andaram juntas, desde a antiguidade. No Brasil, do repentista ao rapper, isso se exemplifica.
Neste ponto é importante lembrar o que Augusto de Campos escreveu para a segunda edição de Os últimos dias de paupéria: "estou pensando / no mistério das letras de música / tão frágeis quando escritas / tão fortes quando cantadas / por exemplo "nenhuma dor" (é preciso reouvir) / parece banal escrita / mas é visceral cantada / a palavra cantada / não é a palavra escrita / a altura a intensidade a duração a posição / da palavra no espaço musical / a voz e o mood mudam tudo / a palavra-canto / é outra coisa". "É preciso reouvir" para compreender, escreve Augusto. E os suportes técnicos já nos permitem isso. Portanto é possível permanecer com a letra de canção, assim como é possível permanecer com o poema escrito.
Para Lauro Meller, autor de Poetas ou cancionistas?, "aquilo que se busca num poema da série literária (originalidade no tratamento do tema – aliás, originalidade de tema –, ocorrência de figuras de linguagem e de retórica, sugestões imagéticas e fônicas, não apelo a soluções fáceis e clichês, etc.) se verifica num percentual muito reduzido de obras do cancioneiro popular, justamente naquelas que, por definição, não são tão populares assim, pois partiram de compositores com algum conhecimento e treinamento no campo das letras eruditas" (2005, p. 48-49).
Daí que nem musicistas, nem o especialista da área de Letras têm os recursos para compreender as especificidades da canção. Para estes, "por desconhecimento do instrumental teórico que lhes permitiria analisar o suporte musical da canção, preferem ignorar esse aspecto, voltando-se exclusivamente à letra" (p. 54), por exemplo. Para o autor, "mesmo que se tenha uma letra de canção fornida dos mesmos elementos que valorizam o poema da série literária (tratamento de linguagem, sugestões imagéticas e fônicas, originalidade do tema, etc.), ainda assim estaremos diante de um gênero de natureza distinta, e que por conseguinte merece tratamento e metodologia de análise específicos" (p. 55-56).
Ainda segundo Meller, "levando em conta seus elementos estruturais, a distinção que imediatamente nos salta aos olhos é o já citado caráter híbrido da canção (letra e música), que normalmente se materializa através da performance de um artista (corpo) e do som (deslocamento do ar em ondas sonoras que nos chegam aos ouvidos, sendo então decodificadas). O poema também possui a sua dimensão material (letras impressas na folha) e psíquica (decodificação desse material e construção de imagens mentais e sugestões fonoestilísticas, que quase sempre são elaboradas em nosso ouvido interno), mas, como se vê, o itinerário do material para o psíquico é distinto, em cada caso" (p. 59).
Cada um a seu modo, Meller e Cícero citam Caetano Veloso para tratarem da canção que "perde" a música e "se sustenta em livro". Destaco isso para comentar "Quase", poema de Antônio Cícero (Guardar, 1996), musicado por Caetano e registrado por Daúde (#2, 1997). O que fica sugerido, mas não explícito, nos textos de Cícero, Bosco e Meller, é que o "mistério" está na voz. Mistério - "estranha alquimia" - experimentado pelo ouvinte no modo como Daúde canta os versos, na sua compreensão da entoação embrionária das palavras.
Daúde respeita as estrofes do soneto de Cícero, ao alongar na voz a sétima sílaba poética de cada derradeiro verso: /men/, /ven/ e /gria/. Mas altera o ritmo no último terceto, num jogo lúcido entre forma e conteúdo. Se as três primeiras estrofes precisam ser cantadas de forma passional (lenta), a fim de dar conta de contar o estado memorialista - "Lembrar é quase promessa" - experimentado pelo sujeito da canção; a última estrofe é um convite a ação - "Meu amor, vem cá, sai dessa" -, logo, precisa ser dito de modo mais acelerado, tematizando o fazer proposto no verso.
Daúde revela que o soneto de Cícero é um elogio à magia das canções. O primeiro quarteto - "Por uma estranha alquimia / (Você e outros elementos) / Quase fui feliz um dia. / Não tinha nem fundamento" - parece dialogar com o "mistério" que Augusto de Campos observa na palavra cantada por alguém. O segundo quarteto reforça essa ideia: "Havia só a magia / Dos seus aparecimentos / E a música que eu ouvia / E um perfume no vento".
O título do poema e da canção aparece três vezes no corpo do poema, figurativizando a circularidade do convite persuasivo, do tropo poemático, reforçando a ilusão (promessa à beça) enunciativa de toda canção. Daúde performatiza a "voz que fala" no âmago da "voz que canta". O jogo entre passionalização e tematização é a assinatura da "voz que fala". Daúde assina a canção, porque, além de incorporar com naturalidade o que no poema está entre parênteses, transfere para /dizia/, última palavra do segundo verso do último terceto, a gestualidade vocal até então empregada apenas aos últimos versos de cada estrofe. Esta quebra no percurso melódico guarda uma intenção clara: dar ênfase ao que era dito pelo outro: "Meu amor, vem cá, sai dessa".
Para Luiz Tatit, "se o canto tem o poder de transformar o 'ele' em 'eu', uma vez que os sentimentos atribuídos à terceira pessoa são modulados na voz da primeira, a expressão direta do 'eu' na letra de uma canção, algo bastante corriqueiro, aguça a reconstituição do momento enunciativo e produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano: a personagem cancional se confunde com a personagem do mundo. Ao identificar-se com esse personagem do mundo, o ouvinte presta solidariedade aos intérpretes, acompanhando o seu sofrimento nas canções passionais ou compartilhando com eles as alegrias das canções de encontro. Sabemos que são os cantores que revelam ao público o mundo interno, extremamente sensível, das canções, mas, se considerarmos a tendência à embreagem radical dessas pequenas obras, temos que admitir que também compete a esses intérpretes criar efeitos de vida extracancional" (Estimar canções, 2016, pág. 130-131).
Bem diferente da leitura em voz alta que o poeta-letrista faz da própria obra em Antonio Cícero por Antonio Cícero (Coleção Palavra falada, 1997). Mais preocupado em marcar as rimas do seu soneto, Cícero ler o poema de "forma corrida", esquemática e sem as modulações figurativas feitas pela voz de Daúde. O poeta declama, lê; a cancionista canta, equilibra as palavras numa melodia, transmitindo a impressão de que não há modo melhor, mais eficaz de dizer/cantar aquela mensagem.
Ao musicar o poema, Caetano Veloso compreende a proposta de sequência melódica segmentada no texto. Por sua vez, Daúde traduz esse modo de dizer entoativo criando um sujeito cancional ressabiado com as promessas do outro: aparecimentos, música e perfume no vento. Essa sensibilidade cancional imprime empatia no ouvinte que, sem o texto sob os olhos, precisa prestar atenção - reouvir - às modulações da voz para entender o que é dito pela voz que agora fala por trás da voz que cantara, no tempo da memória do eu-lírico, "Meu amor, vem cá, sai dessa".
No caso de Antonio Cícero o trânsito começou à sua revelia. "Os primeiros poemas meus que foram musicados não haviam sido feitos para isso. Minha irmã, Marina, subtraiu-os de uma gaveta e os musicou, sem o meu consentimento", conta o poeta-letrista no texto "Sobre as letras de canções" (In: A poesia e a crítica, 2017, pág. 84). E completa: "Além dos versos que continuei a fazer para serem lidos, comecei a compor outros expressamente para virarem canções. Ademais, passei a fazer versos para melodias previamente compostas por Marina ou por outros compositores. As melodias, nesses casos, funcionavam como espécies de formas fixas para os versos" (idem).
As considerações de Cícero vão ao encontro daquilo que Francisco Bosco, a quem Cícero dedica o texto, respondeu em entrevista ao jornal Plástico Bolha (n. 14) ao ser perguntado sobre se "Todo poema pode ser musicado?", resposta: "Sim, a princípio todo poema pode ser musicado. O problema é que um poema é uma estrutura fechada, que almeja seu próprio acabamento, enquanto que a letra de música é uma estrutura aberta, que almeja o acabamento da canção, por intermédio de uma relação que estabelece com a música. Essa diferença estrutural é o que, se por um lado garante que todo poema possa ser musicado, por outro não garante que um excelente poema seja uma excelente letra de música" (entrevista a Marilena Moraes).
Cícero e Bosco, poetas e letristas, tratam da intenção de quem faz e do destino da poética da palavra. No caso de Cícero, aparentemente, contradizendo-se, já que teve poemas que foram musicados, mas que "não haviam sido feitos para isso". Mas, qual é o limite disso? E em que medida esse trânsito não significa a restituição da poesia às suas práticas originárias, ou seja, à indistinção entre música, instrumento e voz? Os dois parecem preocupados com a forma, a estrutura da potência da palavra. "Sempre tomei as formas fixas como uma espécie de desafio", escreve Cícero. Ambos citam Paul Valéry - Cícero: "É poeta aquele a quem a dificuldade inerente ao verso dá ideias – e não o é aquele a que ela as retira"; Bosco: "A forma custa caro".
"Para ser sincero, gosto mais de fazer poemas para serem lidos do que letras de música. Há duas razões para isso. Uma delas é que, neles, me reconheço mais inteiramente. (...) A outra razão (...) é que, embora os poemas que tenho feito ultimamente possam até ser entendidos numa primeira leitura, não creio que possam ser plenamente apreciados a menos que sejam lidos e relidos", anota Antonio Cícero (pág. 88), objetivando uma "leitura lenta e cuidadosa que somente pode ser feita na voz baixa e interior que o poeta Jacques Roubaud denomina 'aural'" (idem). Prestígio, fruição, hierarquia e autoria entram, portanto, na discussão sobre se "Letra de música é poema". Questão que Cícero considera formulada de modo inadequado, afinal música e literatura sempre andaram juntas, desde a antiguidade. No Brasil, do repentista ao rapper, isso se exemplifica.
Neste ponto é importante lembrar o que Augusto de Campos escreveu para a segunda edição de Os últimos dias de paupéria: "estou pensando / no mistério das letras de música / tão frágeis quando escritas / tão fortes quando cantadas / por exemplo "nenhuma dor" (é preciso reouvir) / parece banal escrita / mas é visceral cantada / a palavra cantada / não é a palavra escrita / a altura a intensidade a duração a posição / da palavra no espaço musical / a voz e o mood mudam tudo / a palavra-canto / é outra coisa". "É preciso reouvir" para compreender, escreve Augusto. E os suportes técnicos já nos permitem isso. Portanto é possível permanecer com a letra de canção, assim como é possível permanecer com o poema escrito.
Para Lauro Meller, autor de Poetas ou cancionistas?, "aquilo que se busca num poema da série literária (originalidade no tratamento do tema – aliás, originalidade de tema –, ocorrência de figuras de linguagem e de retórica, sugestões imagéticas e fônicas, não apelo a soluções fáceis e clichês, etc.) se verifica num percentual muito reduzido de obras do cancioneiro popular, justamente naquelas que, por definição, não são tão populares assim, pois partiram de compositores com algum conhecimento e treinamento no campo das letras eruditas" (2005, p. 48-49).
Daí que nem musicistas, nem o especialista da área de Letras têm os recursos para compreender as especificidades da canção. Para estes, "por desconhecimento do instrumental teórico que lhes permitiria analisar o suporte musical da canção, preferem ignorar esse aspecto, voltando-se exclusivamente à letra" (p. 54), por exemplo. Para o autor, "mesmo que se tenha uma letra de canção fornida dos mesmos elementos que valorizam o poema da série literária (tratamento de linguagem, sugestões imagéticas e fônicas, originalidade do tema, etc.), ainda assim estaremos diante de um gênero de natureza distinta, e que por conseguinte merece tratamento e metodologia de análise específicos" (p. 55-56).
Ainda segundo Meller, "levando em conta seus elementos estruturais, a distinção que imediatamente nos salta aos olhos é o já citado caráter híbrido da canção (letra e música), que normalmente se materializa através da performance de um artista (corpo) e do som (deslocamento do ar em ondas sonoras que nos chegam aos ouvidos, sendo então decodificadas). O poema também possui a sua dimensão material (letras impressas na folha) e psíquica (decodificação desse material e construção de imagens mentais e sugestões fonoestilísticas, que quase sempre são elaboradas em nosso ouvido interno), mas, como se vê, o itinerário do material para o psíquico é distinto, em cada caso" (p. 59).
Cada um a seu modo, Meller e Cícero citam Caetano Veloso para tratarem da canção que "perde" a música e "se sustenta em livro". Destaco isso para comentar "Quase", poema de Antônio Cícero (Guardar, 1996), musicado por Caetano e registrado por Daúde (#2, 1997). O que fica sugerido, mas não explícito, nos textos de Cícero, Bosco e Meller, é que o "mistério" está na voz. Mistério - "estranha alquimia" - experimentado pelo ouvinte no modo como Daúde canta os versos, na sua compreensão da entoação embrionária das palavras.
Daúde respeita as estrofes do soneto de Cícero, ao alongar na voz a sétima sílaba poética de cada derradeiro verso: /men/, /ven/ e /gria/. Mas altera o ritmo no último terceto, num jogo lúcido entre forma e conteúdo. Se as três primeiras estrofes precisam ser cantadas de forma passional (lenta), a fim de dar conta de contar o estado memorialista - "Lembrar é quase promessa" - experimentado pelo sujeito da canção; a última estrofe é um convite a ação - "Meu amor, vem cá, sai dessa" -, logo, precisa ser dito de modo mais acelerado, tematizando o fazer proposto no verso.
Daúde revela que o soneto de Cícero é um elogio à magia das canções. O primeiro quarteto - "Por uma estranha alquimia / (Você e outros elementos) / Quase fui feliz um dia. / Não tinha nem fundamento" - parece dialogar com o "mistério" que Augusto de Campos observa na palavra cantada por alguém. O segundo quarteto reforça essa ideia: "Havia só a magia / Dos seus aparecimentos / E a música que eu ouvia / E um perfume no vento".
O título do poema e da canção aparece três vezes no corpo do poema, figurativizando a circularidade do convite persuasivo, do tropo poemático, reforçando a ilusão (promessa à beça) enunciativa de toda canção. Daúde performatiza a "voz que fala" no âmago da "voz que canta". O jogo entre passionalização e tematização é a assinatura da "voz que fala". Daúde assina a canção, porque, além de incorporar com naturalidade o que no poema está entre parênteses, transfere para /dizia/, última palavra do segundo verso do último terceto, a gestualidade vocal até então empregada apenas aos últimos versos de cada estrofe. Esta quebra no percurso melódico guarda uma intenção clara: dar ênfase ao que era dito pelo outro: "Meu amor, vem cá, sai dessa".
Para Luiz Tatit, "se o canto tem o poder de transformar o 'ele' em 'eu', uma vez que os sentimentos atribuídos à terceira pessoa são modulados na voz da primeira, a expressão direta do 'eu' na letra de uma canção, algo bastante corriqueiro, aguça a reconstituição do momento enunciativo e produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano: a personagem cancional se confunde com a personagem do mundo. Ao identificar-se com esse personagem do mundo, o ouvinte presta solidariedade aos intérpretes, acompanhando o seu sofrimento nas canções passionais ou compartilhando com eles as alegrias das canções de encontro. Sabemos que são os cantores que revelam ao público o mundo interno, extremamente sensível, das canções, mas, se considerarmos a tendência à embreagem radical dessas pequenas obras, temos que admitir que também compete a esses intérpretes criar efeitos de vida extracancional" (Estimar canções, 2016, pág. 130-131).
Bem diferente da leitura em voz alta que o poeta-letrista faz da própria obra em Antonio Cícero por Antonio Cícero (Coleção Palavra falada, 1997). Mais preocupado em marcar as rimas do seu soneto, Cícero ler o poema de "forma corrida", esquemática e sem as modulações figurativas feitas pela voz de Daúde. O poeta declama, lê; a cancionista canta, equilibra as palavras numa melodia, transmitindo a impressão de que não há modo melhor, mais eficaz de dizer/cantar aquela mensagem.
Ao musicar o poema, Caetano Veloso compreende a proposta de sequência melódica segmentada no texto. Por sua vez, Daúde traduz esse modo de dizer entoativo criando um sujeito cancional ressabiado com as promessas do outro: aparecimentos, música e perfume no vento. Essa sensibilidade cancional imprime empatia no ouvinte que, sem o texto sob os olhos, precisa prestar atenção - reouvir - às modulações da voz para entender o que é dito pela voz que agora fala por trás da voz que cantara, no tempo da memória do eu-lírico, "Meu amor, vem cá, sai dessa".
***
Quase
(Caetano Veloso / Antonio Cícero)
Por uma estranha alquimia
(Você e outros elementos)
Quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
Dos seus aparecimentos
E a música que eu ouvia
E um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia
Lembrar é quase promessa
É quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
Mas você só me dizia:
"Meu amor vem cá sai dessa"
(Caetano Veloso / Antonio Cícero)
Por uma estranha alquimia
(Você e outros elementos)
Quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
Dos seus aparecimentos
E a música que eu ouvia
E um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia
Lembrar é quase promessa
É quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
Mas você só me dizia:
"Meu amor vem cá sai dessa"
Análise de mestre, de doutor em poesia!
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