31 março 2020

Quase

Antonio Cícero insere-se na tradição dos "poetas de livro" que transitam muito bem da poesia escrita à letra de canção. Tradição que tem Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes como potências exemplares. O primeiro é um dos poetas mais musicados do século XX, tendo feito também muitas letras para canção, para a voz humana. O segundo promoveu a ruptura entre os gêneros, chegando a ser chamado de "poetinha" por quem via o flerte de Vinicius, diplomata e "poeta de livro", com a canção popular, como um trabalho menor.
No caso de Antonio Cícero o trânsito começou à sua revelia. "Os primeiros poemas meus que foram musicados não haviam sido feitos para isso. Minha irmã, Marina, subtraiu-os de uma gaveta e os musicou, sem o meu consentimento", conta o poeta-letrista no texto "Sobre as letras de canções" (In: A poesia e a crítica, 2017, pág. 84). E completa: "Além dos versos que continuei a fazer para serem lidos, comecei a compor outros expressamente para virarem canções. Ademais, passei a fazer versos para melodias previamente compostas por Marina ou por outros compositores. As melodias, nesses casos, funcionavam como espécies de formas fixas para os versos" (idem).
As considerações de Cícero vão ao encontro daquilo que Francisco Bosco, a quem Cícero dedica o texto, respondeu em entrevista ao jornal Plástico Bolha (n. 14) ao ser perguntado sobre se "Todo poema pode ser musicado?", resposta: "Sim, a princípio todo poema pode ser musicado. O problema é que um poema é uma estrutura fechada, que almeja seu próprio acabamento, enquanto que a letra de música é uma estrutura aberta, que almeja o acabamento da canção, por intermédio de uma relação que estabelece com a música. Essa diferença estrutural é o que, se por um lado garante que todo poema possa ser musicado, por outro não garante que um excelente poema seja uma excelente letra de música" (entrevista a Marilena Moraes).
Cícero e Bosco, poetas e letristas, tratam da intenção de quem faz e do destino da poética da palavra. No caso de Cícero, aparentemente, contradizendo-se, já que teve poemas que foram musicados, mas que "não haviam sido feitos para isso". Mas, qual é o limite disso? E em que medida esse trânsito não significa a restituição da poesia às suas práticas originárias, ou seja, à indistinção entre música, instrumento e voz? Os dois parecem preocupados com a forma, a estrutura da potência da palavra. "Sempre tomei as formas fixas como uma espécie de desafio", escreve Cícero. Ambos citam Paul Valéry - Cícero: "É poeta aquele a quem a dificuldade inerente ao verso dá ideias – e não o é aquele a que ela as retira"; Bosco: "A forma custa caro".
"Para ser sincero, gosto mais de fazer poemas para serem lidos do que letras de música. Há duas razões para isso. Uma delas é que, neles, me reconheço mais inteiramente. (...) A outra razão (...) é que, embora os poemas que tenho feito ultimamente possam até ser entendidos numa primeira leitura, não creio que possam ser plenamente apreciados a menos que sejam lidos e relidos", anota Antonio Cícero (pág. 88), objetivando uma "leitura lenta e cuidadosa que somente pode ser feita na voz baixa e interior que o poeta Jacques Roubaud denomina 'aural'" (idem). Prestígio, fruição, hierarquia e autoria entram, portanto, na discussão sobre se "Letra de música é poema". Questão que Cícero considera formulada de modo inadequado, afinal música e literatura sempre andaram juntas, desde a antiguidade. No Brasil, do repentista ao rapper, isso se exemplifica.
Neste ponto é importante lembrar o que Augusto de Campos escreveu para a segunda edição de Os últimos dias de paupéria: "estou pensando / no mistério das letras de música / tão frágeis quando escritas / tão fortes quando cantadas / por exemplo "nenhuma dor" (é preciso reouvir) / parece banal escrita / mas é visceral cantada / a palavra cantada / não é a palavra escrita / a altura a intensidade a duração a posição / da palavra no espaço musical / a voz e o mood mudam tudo / a palavra-canto / é outra coisa". "É preciso reouvir" para compreender, escreve Augusto. E os suportes técnicos já nos permitem isso. Portanto é possível permanecer com a letra de canção, assim como é possível permanecer com o poema escrito.
Para Lauro Meller, autor de Poetas ou cancionistas?, "aquilo que se busca num poema da série literária (originalidade no tratamento do tema – aliás, originalidade de tema –, ocorrência de figuras de linguagem e de retórica, sugestões imagéticas e fônicas, não apelo a soluções fáceis e clichês, etc.) se verifica num percentual muito reduzido de obras do cancioneiro popular, justamente naquelas que, por definição, não são tão populares assim, pois partiram de compositores com algum conhecimento e treinamento no campo das letras eruditas" (2005, p. 48-49).
Daí que nem musicistas, nem o especialista da área de Letras têm os recursos para compreender as especificidades da canção. Para estes, "por desconhecimento do instrumental teórico que lhes permitiria analisar o suporte musical da canção, preferem ignorar esse aspecto, voltando-se exclusivamente à letra" (p. 54), por exemplo. Para o autor, "mesmo que se tenha uma letra de canção fornida dos mesmos elementos que valorizam o poema da série literária (tratamento de linguagem, sugestões imagéticas e fônicas, originalidade do tema, etc.), ainda assim estaremos diante de um gênero de natureza distinta, e que por conseguinte merece tratamento e metodologia de análise específicos" (p. 55-56).
Ainda segundo Meller, "levando em conta seus elementos estruturais, a distinção que imediatamente nos salta aos olhos é o já citado caráter híbrido da canção (letra e música), que normalmente se materializa através da performance de um artista (corpo) e do som (deslocamento do ar em ondas sonoras que nos chegam aos ouvidos, sendo então decodificadas). O poema também possui a sua dimensão material (letras impressas na folha) e psíquica (decodificação desse material e construção de imagens mentais e sugestões fonoestilísticas, que quase sempre são elaboradas em nosso ouvido interno), mas, como se vê, o itinerário do material para o psíquico é distinto, em cada caso" (p. 59).
Cada um a seu modo, Meller e Cícero citam Caetano Veloso para tratarem da canção que "perde" a música e "se sustenta em livro". Destaco isso para comentar "Quase", poema de Antônio Cícero (Guardar, 1996), musicado por Caetano e registrado por Daúde (#2, 1997). O que fica sugerido, mas não explícito, nos textos de Cícero, Bosco e Meller, é que o "mistério" está na voz. Mistério - "estranha alquimia" - experimentado pelo ouvinte no modo como Daúde canta os versos, na sua compreensão da entoação embrionária das palavras.
Daúde respeita as estrofes do soneto de Cícero, ao alongar na voz a sétima sílaba poética de cada derradeiro verso: /men/, /ven/ e /gria/. Mas altera o ritmo no último terceto, num jogo lúcido entre forma e conteúdo. Se as três primeiras estrofes precisam ser cantadas de forma passional (lenta), a fim de dar conta de contar o estado memorialista - "Lembrar é quase promessa" - experimentado pelo sujeito da canção; a última estrofe é um convite a ação - "Meu amor, vem cá, sai dessa" -, logo, precisa ser dito de modo mais acelerado, tematizando o fazer proposto no verso.
Daúde revela que o soneto de Cícero é um elogio à magia das canções. O primeiro quarteto - "Por uma estranha alquimia / (Você e outros elementos) / Quase fui feliz um dia. / Não tinha nem fundamento" - parece dialogar com o "mistério" que Augusto de Campos observa na palavra cantada por alguém. O segundo quarteto reforça essa ideia: "Havia só a magia / Dos seus aparecimentos / E a música que eu ouvia / E um perfume no vento".
O título do poema e da canção aparece três vezes no corpo do poema, figurativizando a circularidade do convite persuasivo, do tropo poemático, reforçando a ilusão (promessa à beça) enunciativa de toda canção. Daúde performatiza a "voz que fala" no âmago da "voz que canta". O jogo entre passionalização e tematização é a assinatura da "voz que fala". Daúde assina a canção, porque, além de incorporar com naturalidade o que no poema está entre parênteses, transfere para /dizia/, última palavra do segundo verso do último terceto, a gestualidade vocal até então empregada apenas aos últimos versos de cada estrofe. Esta quebra no percurso melódico guarda uma intenção clara: dar ênfase ao que era dito pelo outro: "Meu amor, vem cá, sai dessa".
Para Luiz Tatit, "se o canto tem o poder de transformar o 'ele' em 'eu', uma vez que os sentimentos atribuídos à terceira pessoa são modulados na voz da primeira, a expressão direta do 'eu' na letra de uma canção, algo bastante corriqueiro, aguça a reconstituição do momento enunciativo e produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano: a personagem cancional se confunde com a personagem do mundo. Ao identificar-se com esse personagem do mundo, o ouvinte presta solidariedade aos intérpretes, acompanhando o seu sofrimento nas canções passionais ou compartilhando com eles as alegrias das canções de encontro. Sabemos que são os cantores que revelam ao público o mundo interno, extremamente sensível, das canções, mas, se considerarmos a tendência à embreagem radical dessas pequenas obras, temos que admitir que também compete a esses intérpretes criar efeitos de vida extracancional" (Estimar canções, 2016, pág. 130-131).
Bem diferente da leitura em voz alta que o poeta-letrista faz da própria obra em Antonio Cícero por Antonio Cícero (Coleção Palavra falada, 1997). Mais preocupado em marcar as rimas do seu soneto, Cícero ler o poema de "forma corrida", esquemática e sem as modulações figurativas feitas pela voz de Daúde. O poeta declama, lê; a cancionista canta, equilibra as palavras numa melodia, transmitindo a impressão de que não há modo melhor, mais eficaz de dizer/cantar aquela mensagem.
Ao musicar o poema, Caetano Veloso compreende a proposta de sequência melódica segmentada no texto. Por sua vez, Daúde traduz esse modo de dizer entoativo criando um sujeito cancional ressabiado com as promessas do outro: aparecimentos, música e perfume no vento. Essa sensibilidade cancional imprime empatia no ouvinte que, sem o texto sob os olhos, precisa prestar atenção - reouvir - às modulações da voz para entender o que é dito pela voz que agora fala por trás da voz que cantara, no tempo da memória do eu-lírico, "Meu amor, vem cá, sai dessa". 

 ***

 Quase
(Caetano Veloso / Antonio Cícero)

Por uma estranha alquimia
(Você e outros elementos)
Quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.

Havia só a magia
Dos seus aparecimentos
E a música que eu ouvia
E um perfume no vento.

Quase fui feliz um dia
Lembrar é quase promessa
É quase quase alegria.

Quase fui feliz à beça
Mas você só me dizia:
"Meu amor vem cá sai dessa"
 

27 março 2020

RESENHA: Poetas ou cancionistas?


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o livro “Poetas ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária”, de Lauro Meller.

No livro “Poeta ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária”, Lauro Meller analisa vários modelos de análise da canção, cotejando-os e demonstrando sua complementaridade, sublinhando a singularidade da linguagem da canção. Se por um lado as letras de canção não precisam "fazer sentido", entendendo-se como fazedor de sentido o ato comunicativo bem-sucedido, conformado aos parâmetros de uma língua corrente, elas de todo jeito "fazem sentido", só que de uma maneira bastante particular, subordinada/ligada a outros aspectos, alguns deles nem remotamente linguísticos. Assim, um juízo valorativo da canção não pode se basear somente no conteúdo de sua letra: se o fizermos, não estamos efetivamente lendo canções, mas elevando/reduzindo letras de canção ao estatuto de poemas, uma outra forma de expressão. Neste caso, a letra seria forçada a se subordinar aos paradigmas e às regras de análise de poesia: são poucas as canções populares que escapariam ilesas, carregando legitimidade poética, a esse crivo injusto. E as convergências e diferenças entre a poesia na/da palavra escrita e na/da palavra cantada são os motes da tese de Meller. Em sua avaliação, na “letra da canção [que] oferece uma qualidade literária, há que se analisar essa letra não em silêncio”. (p. 84). Ou seja, a canção deve ser analisada como um todo: letra (mensagem) e o modo como essa mensagem é dita (cantada) em seus contornos melódicos e rítmicos.
Meller comenta a proposta de Simon Frith, para quem, ao ouvirmos uma canção, ouvimos, ao mesmo tempo, palavras, que são uma fonte semântico-interpretativa; retórica, que são essas palavras sendo usadas de uma maneira especialmente elaborada (neste caso, musical); e vozes, que por si sós já carregam implicações de sentido. Em suma, afirma que "a análise da letra de canção não envolve apenas palavras, mas palavras em performance" (FRITH, 1996, p. 166). Se retiramos a letra desse ambiente de performance e a colocamos no papel, sacrificamos toda sua riqueza e potencialidade. "(…) mesmo que se queira compensar essa perda com a abertura interpretativa que a palavra 'nua' nos oferece, ela já está por demais atrelada ao componente musical, de modo que essa liberdade não funcionará como funcionaria em um poema", anota Lauro Meller (p. 94).
Para o autor, que analisa as propostas de Luiz Tatit, de quem toma emprestado o termo “cancionista”, e Philip Tagg, entre outros, o estudo da canção popular vai muito além da letra, envolve um conjunto: voz (modos de dizer), melodia e ritmo. Tagg exige conhecimentos propriamente musicais: sua análise requer conhecimentos de melodia, arranjo, orquestração, tonalidade, acústica, etc. O exemplo dado das várias versões de “A hard day’s night” é mais uma excelente demonstração das especificidades da execução performática da canção, que as diferenciam e singularizam malgrado a manutenção da letra. O autor apresenta ainda uma revisão dos estudos de Gabrielsson e Lindström que investigaram repostas emocionais de ouvintes não profissionais a “determinadas características na música” (p.85). E conclui: “ao alinhavarmos as propostas de Frith, Tagg, Tatit, Gabrielsson & Lindström e Friedlander, aplicando esses modelos de análise da canção popular ao nosso objeto pretendemos franquear o acesso de estudiosos não-especialistas em música ao universo dos estudos de música popular, evitando, ao mesmo tempo, o reducionismo de se prescindir por completo do estrato musical para privilegiar as letras” (MELLER, 2015, p. 139-140).
Meller afina-se ao método de análise multiciplinar proposto por Tagg, por evitar desequilíbrios, que uma abordagem mais limitada poderia ter. Por exemplo, uma crítica apenas formalista pecaria por uma descrição estéril do objeto de análise. Da mesma maneira, uma crítica que privilegie apenas a intuição ou a sensibilidade correria risco de ser muito impressionista. Tagg oferece então seu "método hermenêutico-semiológico", uma lista de parâmetros de expressão musical, que visa analisar os diferentes aspectos – “musemas” – da canção.
Assim, Lauro Meller denuncia a insuficiência técnica na análise cancional efetuada na Academia; e defende a necessidade de reconhecimento da especificidade da canção em relação à poesia, e do cancionista em relação ao poeta. Ele cita Arnold Hauser, que aproxima alguns critérios entre aquilo que valorizamos em uma estética literária e parte para a pergunta: "em que compositores encontramos essas características que valorizamos na série literária tradicional?" (p. 73). O autor percebe o movimento de críticos e pesquisadores em tentar legitimar grandes cancionistas nacionais dentro dos parâmetros da literatura tradicional, o que, segundo ele, resulta num erro. E cita Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil como alguns dos cancionistas mais tratados nas dissertações e teses dos cursos de Letras. Cursos que têm deixado de fora "compositores populares 'autênticos' como Cartola, ou 'semi-eruditos', como Catulo da Paixão Cearense", por exemplo. Ao mesmo tempo em que cita o livro "Noel Rosa – língua e estilo" e acusam os autores Castelar de Carvalho e Antonio Martins de Araujo por atropelarem a linha de fã/crítico e chamarem Noel de "poeta" e não de "cancionista". E conclui que "os autores insistem em levantar qualidades 'sérias' nas canções de um compositor cuja principal arma era o deboche; parecem questionar o fato de Noel não ter ainda sido agraciado com uma edição de suas obras completas pela Editora Nova Aguilar, quando o maior desejo do autor de 'Três apitos', segundo seus principais biógrafos, Máximo e Didier, era o de ouvir suas canções entoadas e assoviadas nas ruas, isto é, absorvidas e postas em circulação pelo público, e não silenciadas em estantes" (p. 76). 
Dependendo do contexto ou efeito que se espera da obra, o texto (da canção ou obra literária) desempenhará melhor ou pior a sua função. Os diferentes gêneros e subgêneros geram efeitos variados em públicos diferenciados. O autor defende que a canção popular tem sido utilizada como uma espécie de caminho entre a poesia de série literária e a música. Ele parte da diferença entre música popular e poesia literária: a primeira sendo desfrutada coletivamente, letra e música se materializam na voz e no corpo, na performance; já a segunda, se dando individualmente, ainda que tenha sua dimensão material e psíquica, o caminho entre o material e o psíquico é diferente em cada um. Fica a certeza de que, de natureza híbrida, não podemos analisar a canção sob conceitos puramente literários ou puramente musicais eruditos. O autor reafirma a ideia de que, embora, a letra de canção tenha "qualidade literária", é preciso que a análise valore todos os constituintes do gênero.

MELLER, Lauro. Poeta ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária. Curitiba: Appris, 2015.

20 março 2020

RESENHA: O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE (UERJ) para o texto “O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, de Ruth Finnegan.



No texto “o que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan sugere diferenças e aproximações entre canto, declamação e recitativos, três modos da palavra cantada. A partir de um conceito amplo de canção, a autora, para quem “Quando você procura ‘canção’ no catálogo de uma biblioteca, encontra listas intermináveis de textos predominantemente verbais. É neles que se crê poder encontrar a verdadeira realidade – e não certamente na efêmera e incapturável performance” (p. 20-21), ajuda-nos a compreender a substância complexa e fugidia da performance. “A performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes. Como bem formulou Peggy Phelan, ‘a única vida da performance é no presente’” (p. 24), anota. Gravada, registrada, ela deixa de ser performance, passa a ser fotografia, filme, registro fonográfico, pois a mesma tem esse átimo de vida que ocorre apenas no momento em que está sendo realizada. Ou seja, a canção não existe apenas no texto escrito, nas palavras, mas ela se dá nas especificidades da sua materialização em performance (p. 24).

Se “a literatura oral só existe no aqui e agora”, como acessar, experimentar a performance fora do instante-já performático? Para alguns é impossível. As técnicas de reprodução não dão conta de registrar o que é incapturável. Mas estas mesmas técnicas tem ajudado bastante a compreender o conceito de canção, pois entende-se que resulta incompleta qualquer interpretação da canção, da palavra cantada que não equilibre texto, música e voz indissociavelmente em ação (soando no ar): gestualidades vocais, leituras comparativas com experiências anteriores, indumentária, memória. Sendo a performance o momento em que todos os elementos se aglutinam, “é irrelevante perguntar se texto ou música vem primeiro. É sua performance, integrada, o primordial” (p. 24). Entretanto, há algumas questões sobre como os elementos verbais e musicais se originam (e qual deles vem primeiro).A performance será trabalhada pela pesquisadora não apenas restrita à audição, mas envolve também “o visual, o somático, o gestual, o teatral, o material” (p. 35). O leitor-ouvinte pesquisador dos estudos da palavra cantada trabalha sob os modos como o cancionista lê a voz do poeta por meio da “entonação embrionária”, expressão cunhada por Luiz Tatit.

O provérbio em latim é direto “as palavras voam e os escritos permanecem”. Imersos no mundo videocêntrico, para usar um termo caro a Adriana Cavarero, e também por não sermos tecnicamente preparados para tratar a palavra cantada de outro modo nas Letras, temos dado mais importância ao texto, sem compreender que este só funciona, só é eficaz porque animado por alguém cantando. Finnegan se posiciona sobre o que chama de “textualidade” (p. 30-31), relativizando o conceito de semântica para o contexto da performance. Esta pode abdicar de um sentido lógico, linguístico (de significado “cognitivo” ou “proposicional”), para dar vez à preponderância melódica, sonora, que às vezes retoma o sentido ritualístico e sacro do impresso. Na página 34, ela questiona: “o elemento verbal não seria na prática mais periférico do que supomos?”, questionando o privilégio do texto impresso. Admite-se a transcrição de performances, pois assim o texto mantém mais prestígio que a oralidade. Mais adiante ela comenta que a performance ressona com evocações multimidiáticas para além do evento singular, exigindo outras competências do leitor “comum”, tradicionalmente educado para apenas “ler com os olhos”. “São os textos verbais que aparentemente contêm ‘a coisa de verdade’. Não é de surpreender que a palavra escrita ou passível de ser escrita tenha com tanta frequência tido o lugar central no estudo das canções – é ela que pode ser isolada para análise e transmissão” (p. 19). E justamente por ser tratar de uma prática tradicional (a supervalorização do texto), a ideia de refletir texto, música e performance como um conjunto, e não alguma dessas dimensões com uma prioridade maior sobre a outra (p. 16), será um grande desafio. Tencionando a hierarquia, a autora observa que “as letras de canções podem ser facilmente esquecidas, mesmo pelos próprios cantores, enquanto a música é lembrada” (p. 33). E quem nunca se viu cantarolando uma música, enquanto tentava se lembrar da letra?

Em “Átimo” Gal Costa canta que “Um átimo de som num átomo de ar / Pode ser capaz de disparar / O que pensa cada poro / O que sente o pensamento / Num mecanismo tão claro como ponteiro no tempo”. Ruth Finnegan compreende isso ao anotar que “tudo de que precisamos é de um ouvido que escute e de uma voz que soe” (p. 15). Para Ruth, a canção é tomada de modo arcaico, como uma combinação de música e poesia (literatura), a primeira destacada pelo som, emite a emoção; a segunda, podendo ser destacada pelo texto (p. 18), emitindo sentido na voz de alguém cantando. Se para a Academia textos geram verdades, por sua vez, quem estuda a palavra cantada defende que a verdade (ou a sugestão desta) é e está na voz de alguém cantando, este “funcionamento, entre estar e ser no vento / Como a pele que invento sobre a velha pele dentro”, canta Gal Costa.

A canção continua: “Um átimo de som num átomo de ar / Pode ser capaz de disparar / O que sente o pensamento / O que pensa a sensação / Antes mesmo de virar canção”. Fica evidente que para a autora, a canção não se refere a texto, mas a performance, daí, destaca-se a diferença entre letra de canção e texto. Uma das grandes querelas, sempre em voga, nas Letras. Finnegan questiona porque a notação musical (a partitura) incomoda menos, ou não incomoda, do que as letras de canção e a literatura oral. O fato é que o avanço da tecnologia também contribuiu para que as pessoas tivessem acesso à performance, como o rádio e aparelhos de gravação. E estudar a performance vem ganhando cada vez mais reconhecimento para análise das criações humanas. Mas, para além do crescente movimento transdisciplinar que marca o contemporâneo, como temos nos instrumentalizado para isso? Para o tratamento do efêmero, da voz em performance?

A experiência dos ouvintes também baliza a questão de quem vem primeiro. Na África Central, a autora percebeu que textos poéticos são acompanhados por instrumentos; no Zimbábue, não era o registro escrito que importava, mas o som vindo do rádio, que permanecia na memória e na consciência das pessoas. Ela dá exemplos de como nós não prestarmos atenção ao que está sendo “falado” em uma canção, o elemento verbal sendo periférico na canção. Já no heavy metal, o significado da letra é parte de algo que envolve os músicos e fãs e os faça gostarem dele. No samba, a dança e a música podem ser consideradas tão importantes quanto a letra (p.33). O que os participantes trazem consigo moldam o significado da performance (p.36). Destaca-se, assim, a questão da memória, tanto para quem faz a performance como para quem assiste.

Em resposta à pergunta do título desse texto, Finnegan parece determinar que é a performance que vem primeiro. E parece ancorada na origem da poesia. Embora a resposta não seja tão simples. Por exemplo, a mesma letra e melodia podem ter diferentes performances, emergem da criação momentânea de cada participante: quem canta e quem ouve, “a experiência dos ouvintes” (p. 34). A voz não apenas conduz, ela é parte da substância, ela produz presença: “substância encarnada”. “Canção e poesia oral são a voz humana ativada pelo corpo” (p. 24). Mesmo quando a letra é feita antes, como um poema impresso que anos mais depois de sua publicação tenha sido cantado, por exemplo, a canção-em-si só se efetiva na performance, explorando complexos conjuntos auditivos, assim como seus diferentes modos de emissão (p. 30). Alguns dirão que o texto vem primeiro, em uma leitura apressada, de um analista acadêmico. Mas existe o exemplo de não se precisar saber a letra da música ou entender o que se canta, e, mesmo assim, é possível se emocionar, se sentir tocado por um conjunto de palavras cantadas. Como exemplo, a autora trata da poesia de louvação iorubá (p. 31).

Destaque-se que “Por vezes, texto e música são, pelo menos em algum sentido, criados em conjunto. Mas esse 'em conjunto' também tem variações (...). Aqui, pelo menos em certo sentido, pode-se dizer que 'performance' vem primeiro, já que nem aquele texto específico nem aquela interpretação musical específica tinham existência autônoma antes da performance. Outros casos de composição conjunta de letra e música acontecem antes do evento da performance (...) O ponto aqui, entretanto, é que nesses casos nem letra nem música são criadas como entidades separadas e independentes” (p. 25).

            Em suma, o discurso de Ruth Finnegan propõe que o levantamento ou estudo das modalidades que envolvem canção (texto, música e performance) precisam ser analisadas não desmerecendo nenhuma delas, a intenção não é tentar diminuir, no caso, a escrita, mas trazer à luz a importância da performance  na canção.



FINNEGAN, Ruth. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”. MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira. Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.