Texto de Camila Novaes Maia, graduanda em Letras (ILE/UERJ), voluntária PIBIC no Projeto de Pesquisa Poesia e Transdisciplinaridade: a vocoperformance, de responsabilidade do professor Leonardo Davino de Oliveira (CULT/ILE/UERJ).
Em 2015,
o cantor, compositor e poeta Tibério Azul participou do projeto Mil Tom,
uma coletânea de artistas brasileiros interpretando canções de Milton
Nascimento. A “Canção amiga” foi escolhida exatamente por ser um poema de
Carlos Drummond de Andrade musicado por Milton, inserindo-se na pesquisa
desenvolvida por Tibério da relação entre música e poesia
Na versão
de Tibério, destacam-se os elementos de frevo na melodia. Um frevo – maracatu atômico
– mais lento, remetendo-se a sua terra natal Pernambuco. Pode-se notar pelos
instrumentos utilizados uma grande diferença da versão de Milton Nascimento: enquanto
na versão deste a combinação do violão, flauta e violoncelo tornaram o canto
mais melodioso, o uso de bateria, baixo, teclado e violão da versão de Tibério
tornam o canto mais falado e com muitos ataques consonantais, tematizando a
canção do título. Ainda assim, há a passionalização na interpretação de
Tibério, mesmo que ela surja aos poucos, à medida que as estrofes vão sendo vocalizadas,
até sua quase predominância no final.
Os
ataques consonantais durante a canção tematizam o preparo da canção, o seu
fazer poético, materializando a própria ideia da “Canção amiga”, o próprio
fazer cancional. Enquanto na interpretação de Milton o destaque é o sujeito
cancional poeta-cantor, cantando sobre o preparo íntimo e lírico de sua canção
e sua meta, na interpretação de Tibério o destaque é a própria canção, o seu
preparo, o embate entre cantor e meta, a “canção amiga” em si dizendo seu
objetivo.
Na
primeira estrofe podemos sentir os ataques das consoantes p, c, ç (com
som de s), q, m e r tematizando o trabalho da construção da “Canção
amiga”. Enquanto na interpretação de Milton, a ênfase na primeira estrofe era
na palavra “minha” – no verso “em que minha mãe se reconheça”, na interpretação
de Tibério, a ênfase está na expressão “como dois olhos” – no verso “e que fale
como dois olhos”.
Ou seja,
a ênfase aqui é na meta da canção, uma canção que traga identificação
universal, e para isso ela deve ser tão expressiva a ponto de dispensar
palavras, com a imagem sinestésica auditivo-visual – “fale como dois olhos”. Destaca-se
a passionalização nesse verso, podendo se sentir a vogal o na frase
“fale como dois olhos”, enfatizando ainda mais sua meta: trazer a mensagem de
amizade e união.
Na
terceira estrofe, Tibério Azul canta Eu distribuo segredos em vez de Eu
distribuo um segredo, não sendo a única mudança que ele faz nessa estrofe.
Ele canta De um jeito mais natural em vez de No jeito mais natural;
e dois caminhos se procuram em vez de dois carinhos se procuram. Como a
ênfase não está no sujeito cancional (“Eu preparo”) e sim o processo (“Uma canção”),
aqui temos a ideia de generosidade da própria canção, que distribui palavras,
seus segredos mais íntimos, com a meta de unir os povos (ouvintes). Não à toa o
desejo de união é mais uma vez presente nessa estrofe com a troca de
carinhos por caminhos.
A
construção da poesia e a ideia de união persistem na quarta estrofe: com a
primeira pessoa do singular (minha) dando lugar a primeira pessoa do
plural (nossas) e ambas “formam um só diamante”. As palavras se tornaram
mais belas, depois de sua construção durante toda a canção; a fala foi se tornando
mais melodiosa no decorrer de cada estrofe, com os ataques consonantais se
tornando menos frequentes sendo sobrepostas pelo alongamento das vogais.
Noutras
palavras, ao longo da interpretação, temos um jogo entre tematização (ataques
consonantais) e passionalização (prolongamento das vogais). Essas oscilações de
tessitura estruturam a ideia de união sendo confirmada na construção da própria
canção, onde aos poucos a construção das palavras se une com a melodia,
construindo assim a poesia em si.
A canção
cumpre sua meta: “acordar os homens” para a possibilidade de inseri-los nesse
mundo solidário e cheio de comunhão entre todos; e “adormecer as crianças”
permitindo que a próxima geração nunca deixe de sonhar, de ter esperança.
***
(Carlos Drummond de Andrade)
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Que análise fantástica! Acho bem interessante como o Tibério fez uma leitura bem distinta do CDA e do próprio Milton... Parabéns, belo trabalho!!!
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