Cantada como símbolo da identidade nacional pelos
escritores românticos e como elemento arcaico da entidade brasileira pelos
escritores dados à antropofagia, vira-e-mexe, a Iara reaparece em nosso
imaginário para celebrar nossa “cor local”, nossa distinção e nossos contatos
em relação ao estrangeiro.
Invenção Romântica, resultado do amalgama entre a
Sereia europeia e as lendas indígenas brasileiras, cantada entre ninfeias (Olavo
Bilac), ou “da podridão” (Oswald de Andrade), a Iara retorna como ícone de
beleza e perigo na voz de Maria Bethânia. Ao cantar “Uma Iara” (Meus quintais, 2014), canção
de Adriana Calcanhotto, Bethânia – que já cantara a Iara no disco Mar de Sophia, (2006): “Espelho virado ao céu / Espelho do mar de mim / Iara índia de mel /
Dos rios que correm aqui / Rendeira da beira da terra / Com a espuma da
esperança”
– reafirma aquilo que já dissera em entrevista: “A voz não é minha. É das
sereias”.
Essa disposição a ser um instrumento do mítico, faz
com que Maria Bethânia recrie mundos e sensações para além do comezinho
cotidiano. A Iara de Calcanhotto e Bethânia “dorme na vitória régia”, planta
aquática típica da região amazônica e rainha dos lagos. Esse ambiente
tipicamente brasileiro já distingue essa Iara das outras. A vitória régia
oferece a Iara o signo necessário para torná-la definitivamente nossa.
O perigo é mantido: “Ai daquele que cai na tragédia
da nudeza da sua voz / (...) / Ai daquele que cai na tragédia da nudeza do seu
véu / É preciso manter a proa da margem que encerra”. O canto que é choro, ou o
choro que é canto é o artifício sedutor de Iara. E isso é incorporado à letra
da canção e aparece nos alongamentos vocálicos da cantora: “Ah, Ah a Iara /
(...) / Uh, Uh, Uh... Iara”. Os lamentos funcionam, portanto, como recursos
persuasivos. Ai de quem acreditar neles.
Ao canto da letra de Calcanhotto, Maria Bethânia
agrega o recital do texto “Maio – Uma perigosa Yara” (1987), de Clarice
Lispector (1920-1977). Editado por Fauzi Arap e pela própria Bethânia, o texto
de Clarice serve para ilustrar os perigos e narra o caso de um tapuia que se
deixou envolver pela beleza e elegância da Iara de “cabelos negros”, não mais
dourados ou verdes, como noutras aparições literárias. Diz o narrador: “Houve
um dia, um tapuia sonhador e arrojado / Estava pescando e esqueceu-se de que o
dia estava acabando / E as águas já se amansavam / “Acho que estou tendo uma
ilusão!”, pensou / A morena Iara de olhos pretos e faiscantes / Erguera-se das
águas / O tapuia teve medo, mas de que adiantava fugir / Se o feitiço da flor
das águas já o enovelara todo”.
Mais adiante, o narrador completa que “sempre à
tardinha aparecia a morena das águas / A se enfeitar com rosas e jasmim / Porque
um só noivo não lhe bastava”. Clarice não escolhe à toa o mês de maio para
cantar Iara. Como sabemos, maio é o “mês das noivas”, é o mês em que as noivas
encontram seus noivos em casamento. Assim como Iara: mulher insubordinada. “No
mês de Maio, ela aparece ao pôr do sol / E a medida que Iara canta, mais
atraídos ficam os moços”, lê Bethânia.
O encontro entre Clarice Lispector, Adriana
Calcanhotto e Maria Bethânia resulta no cantar dessa Iara afirmativa do
nacional sem ufanismos: interior, do Brasil profundo. Essa Iara não nega o “dom
de iludir” feminino: não mais silenciado pelo patriarcado e pelo machismo, o
feitiço é assumido como elemento de positividade. E se a criação poética é
fruto da memória, a Iara que aparece aqui recupera, reelabora e atualiza as
Iaras evidenciadas ao longo de nossa formação literária e cancional. A entidade
presente nesse momento parece iluminar o percurso que a Iara fez desde os
Românticos até agora: as perdas e os ganhos das características no processo de
ensaiar o Brasil. Artistas leitoras, as três mulheres se unem no canto de Bethânia
transmutada em Iara: Sereia e Musa.
Ao invés de negar o perigo do canto, essas mulheres
artistas afirmam esse perigo como distintivo, belo e original. Plasma-se uma
imagem pós-identitária para a Sereia, o feminino e a mulher: “confiante no seu
encanto”. Funda-se uma Iara “espelho virado ao céu” e “morena das águas” a
refletir o gesto antropófago da Guaraci oswaldiana, mas também o ímpeto trágico
da Iracema alencariana. Uma não exclui a outra. Há fusão dos significantes das
Iaras com /I/ e das Yaras com /Y/ em benefício de um feminismo feiticeiro, do cantar, do enredar poético-sedutor.
Afinal, “de que adiantava fugir / se o feitiço da flor das águas já o enovelara
todo”. Canta-se, portanto, o retorno do amalgama entre feitiço e poesia, Humano
e natureza.
***
(Adriana Calcanhotto)
Maio - A perigosa Yara
Clarice Lispector
Editado do por Fauzi Arap e Maria Bethânia
Ah, Ah a Iara... a que dorme na vitória régia
Ai daquele que cai na tragédia da nudeza da sua voz
Uh Uh Uh... Iara... a que canta, a citéria
Ai daquele que cai na tragédia da nudeza do seu véu
É preciso manter a proa da margem que encerra
Se ele é livre ou se é dela
Ah, a Iara... a que canta, a que chora...
Ao cair de todas as tardes a Iara surge de dentro
das águas, magnífica
Com flores, enfeita os cabelos negros
No mês de Maio, ela aparece ao pôr do sol
E a medida que Iara canta, mais atraídos ficam os
moços
Houve um dia, um tapuia sonhador e arrojado
Estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava
acabando
E as águas já se amansavam
"Acho que estou tendo uma ilusão!", pensou
A morena Iara de olhos pretos e faiscantes
Erguera-se das águas
O tapuia teve medo, mas de que adiantava fugir
Se o feitiço da flor das águas já o enovelara todo
O tapuia sofria de saudade e Iara, confiante no seu
encanto, esperava
Nesse mês de florido Maio, o índio entrou de canoa
no rio - o coração trêmulo
A Iara veio vindo devagar
Abriu os lábios úmidos
E cantou suave a sua vitória
Houve festa no profundo das águas
E sempre à tardinha aparecia a morena das águas
A se enfeitar com rosas e jasmim
Porque um só noivo não lhe bastava
Ah a Iara a que canta, a que chora
Uh Uh Uh Iara...
Nossa! Muito obrigada pela leitura desta canção!!
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