O primeiro texto declamado por Maria Bethânia, logo
após apresentar a segunda canção (“Dona do dom”, de Chico Cesar), e os
derradeiros acordes do espetáculo com a vinheta de “Carcará” dão algumas chaves
de leituras possíveis ao entendimento da extraordinária juventude presente em Abraçar e agradecer.
“Chegar para agradecer e louvar (...)”, começa o
texto condensador daquilo está proliferado ao longo do roteiro: o cantar – “O
eterno em mim”, de Caetano Veloso, e “Dona do dom”; as reminiscências – “Gita”,
de Raul Seixas e Paulo Coelho, “A tua presença” e “Nossos momentos”, de Caetano
Veloso, “Começaria tudo outra vez”, de Gonzaguinha, “Gostoso demais”, de
Dominguinhos e Nando Cordel, e “Bela mocidade”, de Donato Alves; o sim à vida –
“Alegria”, de Arnaldo Antunes, “Voz de mágoa”, de Dori Caymmi e Paulo Cesar
Pinheiro, “Dindi”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, “Você não sabe”, de
Erasmo Carlos e Roberto Carlos, “Tatuagem”, de Chico Buarque, “Meu amor é
marinheiro”, de Manuel Alegre e Alain Oulman, “Todos os lugares”, de Suely
Costa e Tite de Lemos. Fechando o ato 1 com a afirmativa “Rosa dos ventos”, de
Chico Buarque.
No ato 2 temos: “a mão de água (...) a água de minha
terra” – “Tudo de novo”, de Caetano
Veloso”, “Doce”, de Roque Ferreira, “Oração à Mão Menininha”, de Dorival
Caymmi, “Eu e água”, de Caetano Veloso, “Abraçar e agradecer”, de Gerônimo e
Vevê Calazans; “as vozes que soam de cordas tênues” – “Vento de lá - Imbelezô”
e “Folia de Reis”, de Roque Ferreira, “Mãe Maria”, de David Nasser e Custódio
Mesquita, “Eu a viola e Deus”, de Rolando Boldrin, “Criação”, de Chico Lobo,
“Casa de Caboclo”, de Paulo Dafilin e Roque Ferreira; “tudo que canta livre no
ar, no mato, sobre o mar” – “Alguma voz”, de Dori Caymmi e Paulo Cesar
Pinheiro, “Maracanandé” (canto Tupi na voz de Márcia Siqueira), “Xavante”, de
Chico Cesar, “Povos do Brasil”, de Leandro Fregonesi, e “Motriz”, de Caetano
Veloso; as marés do tempo – “Viver na fazenda”, de Dori Caymmi e Paulo Cesar
Pinheiro, “Eu te desejo amor”, de Charles Trenet, “Non je ne regrette rien”, de
Michel Vancair e Charles Dumont, e “Silêncio”, de Flávia Wenceslau.
Esses blocos de canções se contaminam,
além de serem costurados por textos de Clarice Lispector, Waly Salomão, Carmen
de Oliveira e Fernando Pessoa. Aliás, as declamações dos textos funcionam para
a platéia como momentos de expiração, já que por vezes os bonitos arranjos
engatilham tão rápido uma canção à outra que a respiração chega a ficar
suspensa. Outrossim, sendo mais espetáculo e menos show, Abraçar e agradecer
não dá espaço para que a cantora se dirija à plateia. Isso poderia soar como
indelicadeza, mas tudo está dito nas letras das canções, na gestualidade vocal
de Bethânia e na movimentação corporal da artista: “flor mestiça que não tem
receio em ser brasiliana quando aflora” no palco. Afinal, “viver é a própria
cantiga”.
O roteiro criado por Bethânia para Abraçar e
agradecer não é previsível, ao contrário, foge daquilo que se esperaria de um
típico show em comemoração aos 50 anos de carreira. Sem olhar retrospectivo
saudoso, o espetáculo traz reminiscências, releituras, inéditas, afirma o
presente, é o livro dos prazeres daquilo que passou e marcou a voz da cantora a
frio, a ferro e fogo em carne viva. O elegante figurino assinado por Gilda
Midani beija Oxum e Iansã. Na cenografia de Bia Lessa, o telão de LED não está
no fundo do palco, está sob os pés nus de Bethânia, para que a cantora clareie
tudo e a todos. Ela é o centro. E, com belos movimentos, a cenográfica
iluminação criada por Binho Schaefer foge da repetida luz que desde Brasileirinho víamos nos espetáculos da artista.
Em cena, menos um musical sobre a carreira e mais,
muito mais, uma artista-autora que pega, mata e come o caminho percorrido, as
tristezas, dúvidas e alegrias, vira mundos de pernas pro ar e sabe que tem o
que agradecer, louvar e abraçar, pois é uma carregadeira de amor. E como se
cada verso, cada palavra fosse para si, de si, a voz de Maria Bethânia está
acesa como sempre. Ela não canta o esperado, canta o sonho impossível. Luz, voz
e sensualidade, Bethânia é sereia que há 50 anos rabisca corpos e ensina a
brincar de viver.
Lindo,emocionante e bem construído texto! Reflete, com precisão, todo o espetáculo arrebatador. O texto revela nuances cheias de simbolismos do show. Propõe um roteiro para entendê-lo melhor. Valeu!
ResponderExcluirMaravilhoso texto, que desnuda e veste esse espetáculo que é Maria Bethânia.
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