06 novembro 2014

Banca de jornal



Uma das aprendizagens mais definitivas que os estudos de poesia me proporcionaram é, através das figuras de linguagens, em especial, da metáfora, poder circular o objeto sem nomeá-lo. Isso me instiga. Poder dizer sem dizer. Mostrar sem mostrar. Os modos como o escritor, o artista trabalha a linguagem a fim de não “entregar o ouro”, de exigir a atenção do leitor. Tento levar isso para a vida. Por isso uma de minhas questões centrais atualmente é: como denunciar o absurdo da existência sem nomear os tiranos e, consequentemente, sem dar visibilidade a eles?
Creio que a arte, a poesia pode contribuir muito à política nesse sentido. É por aí que entendo quando Baudelaire diz algo como: “para ser poeta preciso falhar como homem”. É quando ele se desloca – coloca-se na travessia rosiana – do sujeito civil em direção ao sujeito poeta que ele consegue fazer a linguagem ordinária e cotidiana falhar (pane no ordenamento) e se autoquestionar através da arte.
O presente, portanto, será sempre vivido por esse afastamento doloroso do poeta em inquieta relação com a vida. Tencionar as potências e as fragilidades do desejo (vontade e impossibilidade), desse desejo direcionado ao saber, o que já é em si uma ação política, me parece, é o que define o artista moderno, no caso, Baudelaire, para ficarmos no mesmo exemplo. Mas isso pode ser expandido ao nosso tempo.
É por aí também que leio a contundente beleza terrível de um capítulo como o “Um mundo de gente”, do livro Há mundo por vir?, de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Estar na travessia entre a irreversibilidade do feito e o desejo de fazer parece nos constituir.
Concluí o livro com a sensação de que urge falharmos mais como homem para podermos onçar, como no conto rosiano “Meu tio o Iauaretê”. Querer ser homem, diferenciando-nos ao máximo dos outros animais, parece, tem nos levado ao colapso. Antes tivéssemos querido ser onça. Ou jabuti.
Voltando às metáforas, ou seja, à contribuição da arte para a política, penso ainda em Platão, no uso que o filósofo faz da poesia. Platão julga Homero como um veneno, identifica o nefasto na obra homérica, mas não deixa de valorar essa obra em benefício da construção da cidade ideal, ordenada.
Ora, se toda ação política é teórica, ou seja, busca a estabilidade, cabe à arte exercitar o estar sempre no devir, naquilo que escapa; transvalorar o erro em acerto-mais-erro deleziano. Apropriar-se dos signos tiranos e fazer deles reflexão social, penso, é a difícil tarefa que se apresenta para todos nós hoje.
Um exemplo contemporâneo disso está no fato de que não à toa as mesmas mídias que criminalizam os movimentos sociais fingem surpresa diante do conservadorismo que se anuncia na política e na sociedade. Usaram os movimentos, cooptaram suas pautas. Ou pensam que cooptaram. Cabe à arte dar o troco. Desviar-se dessa ordem é tarefa do artista, do louco – esses que estão mais na travessia do que nos polos.
Penso nisso tudo enquanto ouço o novo disco de Tom Zé – Vira lata na via láctea (2014). Tom Zé é talvez o nosso maior exemplo do não envelhecimento do artista. Isso não se deve apenas ao constante contato com jovens, e sim à sua mentalidade desejante e desejada. “Não há quem cure a curiosidade da humanidade”, canta Tom.
Atento aos sinais, “antena da raça”, se em “Povo novo” Tom Zé cantou “Olha menino, / que a direita já se azeita, / querendo entrar na receita”, na canção intitulada sintomaticamente “Esquerda, grana e direita” ele cita o educador Paulo Freire: “Quando o trabalhador cresce na sociedade e tem oportunidade de ser protagonista da História – ele pratica o método do opressor porque foi o único método que aprendeu; então, ele só sabe agir como o opressor”. Denunciando o lugar de travessia conferido à grana na contemporaneidade. “Dinheiro vem tiranizar / Dinheiro quer ditadurar”, canta em “Mamon”.
Já em “Papa perdoa Tom Zé”, ironiza: “Meu coração fundamentalista / Pede socorro aos intelectuais / Pois a diferença entre esquerda e direita / Já foi muito clara, hoje não é mais”. E completa, como “a garotinha ex-tropicalista agora militando em um movimento”: “Quero civilizar o capitalismo selvagem / Quero trazer a luz pra toda ignorância / Como bem-feitora – não desejo o mal / Assim como não quis o velho amigo Cabral”.
Sobre o império das grandes corporações da mídia, Tom Zé joga com os nomes de revistas e jornais ditadores de opinião: “Veja, isto é pouca / Lenha no grande bate-boca / E ainda escrevo uma carta capital / Para os caros amigos desta banca de jornal”. A enunciação de “é pouca”, referindo-se à revista Época, é sagaz, já que logo a seguir, em verso único, temos a referência à revista Carta Capital, que estaria no lado oposto às outras três gravadas num mesmo verso.
Mas a ironia não cessa: “A formiga carrega a folha / Do estado de são paulo ao Piauí / Enquanto isso a cigarra quer ser vip / Pra sair contigo na capa da ti-ti-ti / Caras, quem pra matar”. Ou seja, tudo se resume no desejo de hiperexposição individualista. “Quem lê tanta notícia?”, perguntaria o tropicalista Caetano Veloso.
Articulando, deglutindo, ruminando signos de poder capitalista, Tom Zé tece um disco repleto de críticas costuradas pela alegria, essa “prova dos nove”, como diria o também antropófago Oswald de Andrade. Alegria transvalorada em ironia machadiana e humor tomzeniano.

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Banca de Jornal
(Tom Zé)

Veja, isto é pouca
Lenha no grande bate-boca
E ainda escrevo uma carta capital
Para os caros amigos desta banca de jornal

A formiga carrega a folha
Do estado de São Paulo ao Piauí
Enquanto isso a cigarra quer ser vip
Pra sair contigo na capa da ti-ti-ti
Caras, quem pra matar

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