Num país solar, tropical, o período das
chuvas é sempre sinônimo de reclusão, de recuo interior, de ficar em casa, de
amar em segredo, de cantar oitavas abaixo. É isso que o sujeito da canção “Retrato
da vida” de Dominguinhos e Djavan faz. “Esse matagal sem fim / Essa estrada,
esse rio seco / Essa dor que mora em mim / Não descansa e nem dorme cedo // O
retrato da minha vida / É amar em segredo”, diz.
A vereda de onde canta o sujeito de
“Retrato da vida” está mais próxima do sertão de Guimarães Rosa de que do
sertão de Graciliano Ramos. Justapõe “matagal sem fim” e “rio seco”, a fim de
encenar ao mesmo tempo a esperança e o atual estado de solidão, em que o outro
“não quer saber de mim / e eu vivendo da tua vida”. O sertão do sujeito da
canção é úmido, tem esperança no verde novo da “boa colheita” que ele acredita
está por vir.
Gravada por Djavan no disco Bicho solto (1998) e por Mariene de
Castro em Colheita (2014), nas duas
versões temos o uso da passionalização. Ou seja, dos tons baixos, do
prolongamento das vogais, da continuidade melódica, na intenção de modalizar o
percurso do estado da paixão presente na letra. As tensões internas do sujeito
lírico são transferidas para a voz que canta lenta e continuadamente. À exceção
da derradeira estrofe, quando o sujeito cancional é tomado pela esperança e
canta uma oitava acima: “O teu beijo em meu destino / Era tudo o que eu queria
/ Ser teu homem, teu menino / O ser amado de todo dia”. O reduto emotivo da
inter-subjetividade dá lugar à vontade de ter o outro “aqui”, oscilando a
tessitura da canção, da voz dos intérpretes.
Esse gesto do plano da letra
interferindo no plano da voz importa para pensarmos a cena apresentada pelo
sujeito da canção. A última estrofe cantada uma oitava acima é quase uma
exasperação que não chega a se configurar, já que ele não quer interferir no
ciclo que se mostra anunciando a presença futura do ser amado.
“Retrato da vida” é uma canção de maio:
“Esses campos não tardam em florir”. O ciclo da colheita que recompensará “a
dor que mora em mim” está próximo. As noites frias de junho, a festa do milho
verde, o aconchego em torno da fogueira beneficiará os amantes, em especial, o
sujeito que canta esperançoso. A voz de Mariene de Castro, por exemplo, é
acompanhada por uma sanfona melancólica, ajudando a retratar a vida do sujeito,
uma vida que depende da vida do outro: “Deus no céu e você aqui”.
No plano da intertextualidade, “Retrato
da vida” dialoga com “Deusa da minha rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj.
Enquanto aquela pergunta: “Mas e você o que faz / Que não repara no chão / Por
onde tem que passar / E pisa em meu coração?”; essa diz: “Minha rua é sem graça
/ Mas quando por ela passa / Seu vulto que me seduz / A ruazinha modesta é uma
paisagem de festa / É uma cascata de luz / Na rua uma poça d'água, espelho da
minha mágoa / Transporta o céu para o chão”. Temos nas duas canções uma
narratividade ancorada na voz de um sujeito dependente e resignado (“E tudo
parece seguir / Fazendo a vida tão direita”). Organizadora do sentido global do
texto, a narrativa tem sua função efetivada no gesto da inter-subjetividade
mimética, no modo como Mariene e Djavan registram a canção, já que “Retrato da
vida” e “Deusa da minha rua” são serestas, repletas de passagens que, cantando
a paisagem, cantam o estado interno do sujeito.
A lírica do amor romântico normatiza e
universaliza a mensagem da canção. O conteúdo afetivo da letra investe na
disjunção entre o sujeito da canção (enunciador) e o outro (objeto de desejo).
A “dor que mora em mim” une um ao outro. Tudo ocorre como se, pela narrativa
bem circunscrita, o sujeito aproximasse a colheita. E o fragmento do ciclo da
existência, o “retrato da vida” apresentado no título, é traduzido na
sensibilidade dos intérpretes da canção.
***
Retrato da Vida
(Dominguinhos / Djavan)
Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo
O retrato da minha vida
É amar em segredo
Não quer saber de mim
E eu vivendo da tua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga
Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita
Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração?
O teu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser teu homem, teu menino
O ser amado de todo dia
(Dominguinhos / Djavan)
Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo
O retrato da minha vida
É amar em segredo
Não quer saber de mim
E eu vivendo da tua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga
Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita
Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração?
O teu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser teu homem, teu menino
O ser amado de todo dia
Vejo retratado nessa música,o sertanejo de Euclides da Cunha,"... é ante de tudo um forte" de tanto amor, suporta um sofrimento de seca, fome e perdas,que nos parece eterno, mas lhe basta o campo florir, e sua vida se torna terna.
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