Demorei a escrever sobre Praia, disco que
Mariano Marovatto lançou em 2013, por pura incapacidade de verbalizar o que
sinto e penso a cada audição. Digo isso para afirmar a caoticidade desse texto
constipado, mas urgente para sair.
Desde o primeiro contato, percebi que o disco precisava de
muitas escutas. Como sempre faço, seja com um livro (um poema), seja com um disco
(uma canção), tentei ouvir Praia em vários momentos, em diferentes
situações - também de frente para o mar - e todas as vezes o disco me diz ter
vindo do fundo escuro de um coração tropical. De outra margem possível e mais real,
entre o solar e o lunar, entre a tristeza e a felicidade, porque o rigor formal
e o experimento sonoro de Praia ao mesmo tempo nega e expõe algo
profundo do Brasil, de nossa genética e contemporaneidade.
Marovatto decalca experimentos sonoros, a fim de compor um
cântico íntimo e internacionalizante, roçando outras línguas. Para os sujeitos
cancionais criados por Marovatto, a praia é um lugar entre o mar (aberto, sem
cais) e o asfalto (opressor, sem salvação). A praia é ilha, como bem observou
Ismar Tirelli Neto: "A Praia, aqui, é claustrofóbica. Mesmo que fosse
imensa, mesmo que fosse a perder de vista – estaria toda ela contida em seus
“botões”. Praia de ilha, praia de náufrago – uma solidão populosa de vozes espectrais,
chiados fantasmáticos, dissonâncias, sons cuja procedência não conseguimos
muito bem situar".
É bonito perceber como que sujeitos estranhos, que tinham tudo
para "nadar e morrer na beira da praia" pairam a milímetros da areia (cama
sonora), sem que isso indique redenção e/ou finitude. Tal resultado é obtido,
tanto no procedimento de decalque sonoro já mencionado, quanto no apagamento da
voz do cancionista. Assim, como um gesto de contra-selfie, ou um selfie por
dentro do olho da câmera (sempre lenta), Mariano está e não está nos sujeitos
das canções.
Cada espectro vocal que aparece em Praia está
movido por uma paixão que reapropria os sujeitos cancionais com um vigor
abstrato pouco habitual em canção. Abstrato e geométrico, naquilo que esse
conceito tem de rigor, de exatidão, de movimento em direção à certeza.
Ouça-se o exemplo de "Vidraça", de Mariano
Marovatto e Romulo Fróes. Aqui, a canção é pedra. Pedra é palavra escrita na
palma da mão, essa "epiderme da alma", como Arnaldo Antunes cantou.
Há um convite à audição da rua, das tais "vozes das ruas". "Pega
essa pedra, leva pro colchão", diz o sujeito. A pedra-canção é eco
e silêncio dessas vozes. Mas a rua é preciso ser escutada no cotovelo, ou seja,
na espera, no devir, assim como o ciúme que "dói nos cotovelos, na raiz
dos cabelos, gela a sola dos pés", como canta Elza Soares.
O sujeito de "Vidraça" tem ciúme da rua? Ele
sugere que se "não tem vidraça no cemitério", esse campo santo
povoado de vozes, só resta levar a pedra pro colchão. A pedra atravessa a voz e
a melodia. E intimida: "Me conta agora / o teu segredo / sai dessa banda /
derruba o prédio / desliga o rádio / me dá remédio / deságua logo essa
constipação".
Que banda é essa mencionada pelo sujeito da canção? Banda
musical, constipada e urgente de soltar o som? Outra banda da terra, oposta à
banda em que ele vive? Essas questões são intensificadas na estrutura formal da
canção. Tudo é dito/cantado numa quase-vinheta em câmera lenta. "E nunca o
ato mero de compor uma canção / Pra mim foi tão desesperadamente
necessário", cantaria Caetano Veloso.
A antena parabólica de Praia capta videoclips
que testemunham e interrogam a melancolia tropical dos sujeitos das canções,
sujeitos presos na praia-ilha à espera de vozes marinhas, sirênicas. Marovatto dilui esse
aglomerado na água poluída do sangue poético-cancional. E o segredo dói pra fora
na paisagem, arde ao sol do fim do dia. E mais não ouso dizer.
***
Vidraça
(Mariano Marovatto / Romulo Fróes)
É bem mais fácil
não tem mistério
palavra escrita na palma da mão
Escuta a rua
no cotovelo
deserto, asfalto, latido de cão
Não tem vidraça
no cemitério
pega essa pedra, leva pro colchão
Me conta agora
o teu segredo
sai dessa banda
derruba o prédio
desliga o rádio
me dá remédio
deságua logo essa constipação
(Mariano Marovatto / Romulo Fróes)
É bem mais fácil
não tem mistério
palavra escrita na palma da mão
Escuta a rua
no cotovelo
deserto, asfalto, latido de cão
Não tem vidraça
no cemitério
pega essa pedra, leva pro colchão
Me conta agora
o teu segredo
sai dessa banda
derruba o prédio
desliga o rádio
me dá remédio
deságua logo essa constipação
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