13 junho 2013

Mais um samba popular



Entre outros objetivos, o que mais me interessa aqui é (re)conhecer os "modos de pensar" (voz e escuta) embutidos na canção brasileira. E iluminar o instante em que o cancionista se torna neo-sereia por apontar/cantar a "gaia ciência", como José Miguel Wisnik intuiu e chamou atenção no texto seminal "A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil" (2001).
A eficácia do cancionista brasileiro se verifica na competência demonstrada no amalgamar "alta cultura", "folclore" e informação massificada e no disseminar do resultado através dos meios de mediação. Mas sempre volta a pergunta: como diferenciar canção "popular" e canção "folclórica" para além da relação preconceituosa e reducionista que as distingue ao defender que esta é "pura" (do interior) e aquela é menor porque industrial (urbana)?
Recordo aqui as palavras de Antonio Cícero e Marina Lima para o texto de apresentação do disco Fullgas (1984): "Somos brasileiros e estrangeiros. Somos estrangeiros porque a nossa verdadeira casa e a casa da nossa música não têm paredes, nem teto, nem cerca, nem fronteiras. Não vegetamos nem precisamos de raízes. / Mas nascemos aqui, aqui trabalhamos e escolhemos ser brasileiros. Por quê? Porque este país é a nossa casa. A força dele, como a nossa, não pode vir de nenhuma fonte pura. Fontes puras não existem. O Brasil vem da fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais, da miscigenação. Por isso ele realmente mete medo em todos que sofrem de agorafobia. (...) Melhor para nós são a descoberta e a liberação dos desejos e gostos autênticos de cada um. / Nossa música é simples, deliberadamente simples e direta. Por isso mesmo ela é mais difícil para aqueles que se viciaram às velhas fórmulas. Sabemos que somos profundos demais e superficiais demais para essa gente. / Não há CAMINHO REAL para fazer algo que enriqueça o mundo. Por mais que certos setores da “vanguarda” sugiram uma evolução linear da Música, a verdade é que às vezes é do mais “vulgar” que vem o toque mais sutil."
Entende-se, embora não se justifique, haja vista o engenho transcriativo de Macunaíma, de Mário de Andrade, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Galáxias, de Haroldo de Campos, por exemplos, que, diante da supremacia da escrita, o argumento de que o registro escritural daquilo que é (em origem) oral promove inúmeras perdas para este. Mas e o registro sonoro-visual?
O fato de os cantos sagrados do ritual feminino do Jamurikumalu (Alto Xingu, MT) serem registrados por Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro para o filme As hiper mulheres (2013) tornam os cantos das índias menos "puros" e desprovidos de força ilocucionária sui generis? Ou esta "traição" à tradição oral torna esta mais sacralizada pela expansão de acesso ao conhecimento de sua existência?
"Conhecemos o longo e continuado esforço dos folcloristas (no Brasil como na Europa) de demarcação da fronteira entra música 'folclórica' e 'popular'. O campo do folclore musical instituiu um objeto em risco permanente de desaparecimento: 'poesia popular' e 'canção popular' definiram-se por uma dupla oposição às congêneres eruditas e aos produtos da nascente indústria cultural. A música popular nasce como objeto de estudo dentro do arco da pesquisa folclórica e foi o vínculo com os campos inter-relacionados dos estudos de folclore e da música erudita nacionalista que a tornou digna de atenção. Portanto, é impossível sondar os discursos sobre a música popular no Brasil sem recuar ao campo dos estudos de folclore", anota com precisão a professora Elizabeth Travassos, em "Pontos de escuta da música popular no Brasil" (in: ULHÔA, Martha. Música popular na América Latina. 2005, p. 96-97).
Se a partitura fortaleceu a ideia de autoria e revolucionou a fixação do fato musical, não resolveu a questão que sugere ser a voz de alguém cantando o signo da unicidade e da autenticação da existência deste alguém. Ou seja, mediatização e mercado, borrando os limites entre folclórico e massivo, também contribuem para o pensamento do tema.
Neste ponto, como não se lembrar do conto "Um Homem Célebre", de Machado de Assis, tão bem comentado por José Miguel Wisnik em Machado maxixe: o caso Pestana (2008)? "À primeira leitura, "Um Homem Célebre" expõe o suplício do músico popular que busca atingir a sublimidade da obra-prima clássica, e com ela a galeria dos imortais, mas que é traído por uma disposição interior incontrolável que o empurra implacavelmente na direção oposta" (p. 7).
A crise de ser/estar no cruzamento entre a polca (folclórico e popular) e "a grande música europeia" parece estar no cerne da formação da cultura nacional brasileira. O "complexo de Pestana" nos constitui, embora não queiramos admitir. "Como sabemos, o maxixe recalcado, virado samba, torna-se o paradigma musical de um Brasil mulato, nas primeiras décadas do século 20, num vasto processo de desrecalque, agora apologético, que constitui a imagem do país moderno sobre os escombros da escravidão, e que tem em Casa-Grande & Senzala um marco" (idem, p.92). Caetano Veloso joga com a questão ao encartar na contracapa do disco Circuladô (1991) a frase nuclear do conto de Machado: "Mas as polcas não quiseram ir tão longe".
"Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém sambe / Vive dizendo que samba é vexame", canta João Gilberto. "E quem se julga a nata cuidado pra não quaiar (...) Pois o mundo real não é o Rancho da Pamonha", canta Criolo. "Eu bem sei que tu condenas / O estilo popular / Sendo as notas sete apenas / Mais eu não posso inventar // Por motivos bem diversos / Escrevi meu samba assim / Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim", cantou Noel Rosa no Coliseu dos Recreios (Lisboa).
Tendo sido cantado também por ninguém menos que Grande Otelo, o samba "Mais um samba popular" (1934), de Noel Rosa e Vadico, registrado por Ivan Lins no CD 3 do Tributo a Noel Rosa (1997), Ana de Hollanda, em Um filme (2001) e Arto Lindsay, em Noel Poeta da Vila (2009), entre outros, com suas torções temporais - "Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim" -, guarda também os gestos significantes da montagem da triangulação "amorosa, política e musical" (WISNIK, idem, p. 74) que ronda o Brasil.
A sala de cinema não é o contato com os índios Kuikuro, embora, sendo arte, queira mimetizar a experiência. Nem o registro sonoro da performance de um grupo folclórico, nem o CD, essa superpartitura, da performance vocal de um cantor em estúdio, ou "ao vivo", são o "momento sagrado" da emissão vocal. Mas, sim, signos da existência de seres viventes/presentes emissores/destinadores daquelas vozes. "A voz amada vem de trás do monte / Etérea ponte, cruza o oceano e o mar // Estrela Dalva surge no horizonte / tão perto e longe em mim o seu cantar", canta Caetano Veloso em "A voz amada".
Deste modo, "cantométrica, fonética, fisiologia e acústica musical, etnografias da fala e da música estão entre os passos na direção de uma abordagem que tome a voz como fenômeno biopsicossocial e integre som e sentido, interno e externo, nature e nurture", como também anota Elizabeth Travassos agora em "Um objeto fugidio: voz e 'musicologias'" (2008).

***

(Noel Rosa / Vadico)

Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular

Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar

Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação

Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim

Um comentário:

  1. Léo, seu texto me fez lembrar do pobre Major Quaresma metido na "malandragem" de aprender violão, um "escândalo". O que não faltava era censura, como a gente vê logo no primeiro capítulo do livro do Lima: "Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio, não é bonito!" O violão, protagonista da cultura popular brasileira foi levado 'na marra' pelo Villa para os salões de música erudita e as reações não foram brandas. O negócio é que os brasileiros se apropriaram das tradições europeias e fizeram a mistura que deu nessa nossa grande música. E o mais interessante é que essa música popular, apreciada pela sua sofisticação e originalidade, traz cada vez mais ao país gente dos quatro cantos do mundo interessadas em aprender os seus 'segredos'. E por falar em Noel Rosa, convém não esquecer de "Filosofia", sempre emblemática e representativa. Abraços. Carlos (Uerj).

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