O
que caracteriza uma "canção de protesto" é a mirada politizada em
atenção aos apelos contextuais externos: políticos, sociais, culturais. Nela a experiência
individual do sujeito da canção se identifica de forma potencializada a mais
não poder com o que a sociedade quer no momento. E assim a especificação do
indivíduo adquire participação no/com o universal. E vice-versa.
Dito
isso, penso que a "canção de protesto" serve para mobilizar as
multidões e não as massas. Para distinguir uma categoria da outra
("multidão" versus "massa"), evoco aqui a diferenciação
básica apontada por Michael Hardt e Antonio Negri já nas primeiras páginas do
livro Multidão (2005): "A essência das massas é a indiferença: todas as
diferenças são submersas e afogadas nas massas. Todas as cores da população
reduzem-se ao cinza. Essas massas só são capazes de mover-se em uníssono porque
constituem um conglomerado indistinto e uniforme. Na multidão, as diferenças
sociais mantêm-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio
apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma
multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo
tempo em que se mantém internamente diferença" (p. 13).
A
"canção de protesto" vista por essa perspectiva, já que ela pode ser
analisada a partir de outros aspectos, daí porque uso a expressão "canção de
protesto" entre aspas, ou seja, para marcar um modo de uso, entre outros,
é fundamental em momentos de "crise da representação". Ao preservar
as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a "canção de
protesto" dá vigor à diversidade macro-coletiva.
Dito
de outro modo, o imediatismo contextual – que parece ser a gênese e a tônica da
"canção de protesto" – não pode nivelar, reduzir, "tornar
cinza" a multiplicidade, a polifonia dos apelos contextuais. O sujeito da
"canção de protesto", ao ser cúmplice dos ouvintes múltiplos,
plurais, diversos, precisa não se opor às vibrações da palheta de cores que lhe
orienta, mas autenticar a unimultiplicidade. Por isso, nesse tipo de
"canção de protesto", em que a canção é crítica política, não cabem
palavras-de-ordem generalizantes, tais como: "o gigante acordou",
"vem pra rua", "chega", "viva a revolução".
Vejamos
o exemplo de "Povo novo", de Tom Zé e Marcelo Segreto, canção feita
ao calor das manifestações que tomam as ruas das cidades do Brasil neste junho de
2013. Atento ao que grita a menina e o menino, o querer do sujeito da canção
está em "gritar na rua / próxima esquina". "A minha dor está na
rua / Ainda crua / Em ato um tanto beato, mas / Calar a boca, nunca mais! / O
povo novo quer muito mais / Do que desfile pela paz / Mas / Quer muito
mais", canta Tom Zé acompanhado de seu "violão de guerra".
O
sujeito da canção sabe que sua voz representa a maximização dos protestos de
lutas sociais que atravessam o país desde sempre. Portanto, para ele, "o
gigante não acordou", pois sempre esteve vigilante: "A minha dor está
na rua / Ainda crua", diz. O sujeito criado por Tom Zé sabe que as ruas estão
franqueadas, e alerta: "Olha menino, que a direita / Já se azeita, /
Querendo entrar na receita, mas / De gororoba, nunca mais".
Com
a mesma verve de quem escreveu: "O ar que cada geração respira, em certa
idade, é a REBELDIA"; questionando: "Ditadura, democracia, parlamentarismo,
que nome daremos à nossa escravidão comum?" (O Estado de São Paulo,
07/11/1987); Tom Zé canta: "Já me deu azia, me deu gastura / Essa
politicaradura / Dura, / Que rapadura!".
Tom
Zé capta o "lixo lógico" armazenado no córtex das vozes das ruas,
enquanto os jornalões investem na fetichização e encaminhamento conservador
como seus "kits manifestações". “Quem não estiver confuso não está
bem informado”, anotou o poeta Carlito Azevedo. É a este sujeito confuso,
olhando os gritos da menina e do menino, a quem Tom Zé dá voz.
Confessadamente
orientado pelo pensamento da socióloga Marília Moscou (Marília Moschkovich),
Tom Zé reflete sobre os acontecimentos. E é nos versos "A minha dor está
na rua / ainda crua" que Tom Zé condensa a crítica ao caráter
perigosamente difuso das manifestações: "ato um tanto beato" versus
"calar a boca, nunca mais".
Com
"Povo novo", Tom Zé insurge como bússola e confirmação da
desorientação do momento. Ele vai além da superficialidade das canções de circunstância,
tal como "Chega" (2013), de Seu Jorge, Gabriel Moura e Pretinho da
Serrinha – em que, tirando o clipe cujas imagens foram captadas nas ruas
durante os protestos, nada, ou quase nada, resta além das palavras de
"basta" cotidianas feitas para embalar festas: "Brasil, pinta a
sua cara / Brasil, é uma chance rara (...) Brasil, tá na tua hora / Brasil, tem
que ser agora".
Ou
ainda "O Gigante" (2013), de Latino – em que, frases pseudo ufanistas
tiradas dos cartazes dos manifestantes se aglutinam ao som do que parece ser uma
batucada em estádio de futebol a servirem de pretenso convite ao levante
público: "O gigante acordou / Está disposto a lutar (...) Salve o hino da
vitória / Salve o povo lutador".
Sem
contar os versos sedutores de "Viva a revolução" (2013), de Capital
inicial: "Vai ser uma comoção internacional / Faça a sua parte / Nesses
dias de gloria / Atravesse o espelho / Desligue a televisão / Então, vamos
todos para a rua / Onde todos cantarão / Viva a revolução".
Entre
outros, estes três exemplos mostram claramente suas diferenças tanto no campo
das intenções (interesses), quanto no campo da crítica, em relação à
"canção de protesto" que quer estar em frequência simultânea com os
movimentos de resistência política e cultural, sobrevivente à massificação
ideológica. Obviamente, tudo depende do "modo de usar", do uso feito
de cada canção por cada ouvinte-cidadão, mas não podemos deixar de apontar tais
distinções semânticas, semiológicas e intelectuais.
O
conteúdo lírico da canção de Tom Zé encapsula a pele social: o sujeito se
concilia com o ar da multidão na clave do político, da politização de seu olhar:
"Olha menino, que a direita / Já se azeita, / Querendo entrar na
receita". O sujeito de "Povo novo", ao saber que "o novo
sempre vem" se preocupa e participa. Deste modo, ao apontar as
especificidades internas (preocupações individuais), o sujeito da canção de Tom
Zé dá vigor à diversidade macro-coletiva que caracteriza os movimentos de
agora. Elege uma "outra cosmovisão: pensar é pão".
***
Povo novo
(Tom Zé / Marcelo Segreto)
Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh
A minha dor está na rua
Ainda crua
Em ato um tanto beato, mas
Calar a boca, nunca mais! (bis)
O povo novo quer muito mais
Do que desfile pela paz
Mas
Quer muito mais
Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh
Olha menino, que a direita
Já se azeita,
Querendo entrar na receita, mas
De gororoba, nunca mais (bis)
Já me deu azia, me deu gastura
Essa politicaradura
Dura,
Que rapadura!
(Tom Zé / Marcelo Segreto)
Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh
A minha dor está na rua
Ainda crua
Em ato um tanto beato, mas
Calar a boca, nunca mais! (bis)
O povo novo quer muito mais
Do que desfile pela paz
Mas
Quer muito mais
Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh
Olha menino, que a direita
Já se azeita,
Querendo entrar na receita, mas
De gororoba, nunca mais (bis)
Já me deu azia, me deu gastura
Essa politicaradura
Dura,
Que rapadura!