17 janeiro 2013

Rainha das cabeças



No discurso 'Ler e escrever' do livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreve: "E quanto a mim, que amo a vida, parece-me que os que melhor entendem a felicidade, são as borboletas e as bolas de sabão, e todos os que se lhes assemelham. / Ao ver voejar essas pequenas almas leves e prazenteiras, graciosas e volúveis, Zaratustra sente tomá-lo uma vontade de chorar e de cantar. / Só posso acreditar num Deus que soubesse dançar. / (...) / Aprendi a andar; deste então corro sem esforço. Aprendi a voar; desde então já não espero que em empurrem para mudar de sítio. / Vede como me sinto leve; vede, vôo; vede, sobrevôo-me; vede, há em mim um Deus que dança". Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras.
Poderíamos divagar sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas quero me ater à bola de sabão, metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente estou pensando na teoria das esferas de Peter Sloterdijk, que dedica grande parte de sua obra à interpretação nietzschiana de esferas leves e delicadas.
Entre outras questões, Sloterdijk escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas: as tais causas e razões das ilhas desertas de Deleuze, como queiram. É por viver - sentir-se - "ameaçado" pelo mundo de mobilidade ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual, objetivando a abundância perdida desde a saída do útero.
E é aqui que ajusto meu foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (reconhecimento). A arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas (o indivíduo fica sendo parte do mundo), muito embora exploda outras: as canções de fora levam o indivíduo a sair ao mundo.
O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d'água (abundância) materno está solto, leve. Ele é bola de sabão: irrelevante, sem estabilidade, privado de objetividade ela precisa de um ar propício ao vôo, ao não estouro. E são muitos os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade - com a permissão de experimentações de modos de vida -, e o fato do homem não estar pronto para não ser o centro do universo, são alguns deles.
Poderíamos também entrar aqui na paranóia por segurança intrínseca ao indivíduo de hoje, posto que esferas (família, escola, religião...) são sempre tentativas de solidariedade imunológica, mas não é o objetivo principal aqui. Quero avançar na leitura da citação de Nietzsche para chegar ao "Deus que soubesse dançar". E onde entrar em contato com este Deus (ou Deusa? ou deuses?) senão através das religiões de origens africanas? Brasileiro, não posso deixar de observar nessas religiões o tal Deus que dança "no" indivíduo.
Guardadas dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. "Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: - apenas é diferente a sua função" (...) "A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim", anota Nietzsche em A gaia ciência (respectivamente p. 57 e p. 151).
Além do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Yorubá são os orixás. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição cultural desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então cultuados "apenas" como forças da natureza.
Metal Metal (2012), disco do trio Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões.
Um ótimo exemplo do modo como o trio bebe o sangue (a poética) de uma língua-mãe do Brasil - Yorubá - está disposta em "Rainha das cabeças", de Douglas Germano e Kiko Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo, mas estranho, porque imbricado de forma inovadora.
A letra da canção em si já detona o incômodo estético. Cheia de palavras e/ou expressões, repito, íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano, a letra presentifica no imaginário do ouvinte Awoió, tida como a Iemanjá - sim, há deuses e semi-deuses no panteão - que mais concentra feminilidade: familiar, fiel companheira, materna.  
"Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar". A primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não estamos - nós, ouvintes comuns, não iniciados - em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada às palavras da letra, por vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo, precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos arrebatados pela potência ali dançante. "O ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso" (Nietzsche, idem, p. 112).
Há que se atentar sobre isso, aliás: várias canções apresentam textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada e promover o mergulho do ouvinte? Diferente da canção-para-ser-ouvida.
Seja como for, o Ori sagrado em "Rainha das cabeças" promove a dança da intuição do ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em estado-de-poesia: não importa muito decodificar as palavras, mas entra no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem - com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bola de sabão e seu alfinete altamente explosivo.
Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (No horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: "tupi or not tupi", é a pergunta. "Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê ", diz o refrão. Olodumaré vagava pelo mundo quando por aqui havia apenas pedras e fogo. Devido ao vapor produzido, grande quantidade de nuvens precipitou sob a forma de chuva. Eis a origem dos grandes oceanos e do nascimento de todas as Yemanjás do mar. Já Olokun é, como o próprio nome revela, o proprietário do Oceano.
Se, como Nietzsche anotou: "O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado" (idem, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta Gilberto Gil: "Quando, hoje, alguns preferem condenar / O sincretismo e a miscigenação / Parece que o fazem por ignorar / Os modos caprichosos da paixão // Paixão, que habita o coração da natureza-mãe / E que desloca a história em suas mutações / Que explica o fato da Branca de Neve amar / Não a um, mas a todos os sete anões". 

***

(Douglas Germano / Kiko Dinucci)

Awoió ori dori re
Iyemanjá cuidou
Ade, ala, beijou
E encheu o ori de mar

Iya olori
Mojuba Olodumaré

Ela é filha de Olokun
É iya kekerê

Iya olori
Mojuba Olodumaré

Carregou uma cabeça
Sobre o adirê
Iya olori
Mojuba Olodumaré
Iya olori

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