A narradora-camareira do conto "Dona Sophia", de Marcelo Moutinho, escreve a partir (depois) do contato transformador que ela teve com Sophia de Mello Breyner Andresen. Designada para cuidar da estadia da escritora no hotel em que trabalhava em Manaus, a narradora (sujeito "comum", anônimo) primeiro conhece a mulher (o humano) e só depois, quando a hóspede vai embora, é que ela descobre a poeta. E isso tem muita importância.
"Uma senhora de cabelos cacheados e grisalhos, olhos claros, bem magra. Era dona Sophia. (...) Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala, mas com um som diferente, sei lá. Tive que me segurar para não rir", descreve a narradora.
Publicado na antologia Escritores escritos, é guardado no livro A palavra ausente que o conto "Dona Sophia" produz mais sentido: abre-se a novas possibilidades de entradas. Aqui, fechando um livro que começa com um conto intitulado "Água", "Dona Sophia" traduz o lugar onde a zona de contato entre leitor (ouvinte) e escritor (cantor) se liquefaz, precede preconceitos e instrumentos teóricos.
Sophia de Mello Breyner Andresen revela-se muito próxima da camareira-narradora. A única diferença é que enquanto uma - Sophia (poeta: "como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer") - escreve motivada pelo canto da musa (a poesia), a outra - camareira (anônima - mulher "comum") - escreve motivada pela sereia (a poeta/escritora). "Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala". Ambas irmãs na terra: ambas signos de elemento água em uníssono com a vida.
"Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho", observa a narradora. Sophia intervem na vida da camareira pela chave do lugar desta no mundo: o trabalho. "Era uma escritora famosa (...) ia receber um prêmio no Teatro Amazonas (...) o teatro é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é". A narradora não conhecia a hóspede, mas se o patrão diz que ela é importante é porque é.
O que poderia ser lido aqui como um discurso da resignação do subalterno, eu leio como uma potencialidade em movimento: "Eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele [o patrão] repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira", anota para mais adiante dizer: "Apesar de a gente ser tão diferente (...) pareço muito com a dona Sophia (...) no ritmo secreto que só nós duas conhecemos".
Uma sereia de água doce (de rio): a camareira - que escreve depois de tocar (e ser tocada por) o mar. A outra sereia de água salgada (de mar). Cada uma em mundo e tempo frequenciais únicos, singulares. Como Guimarães Rosa, anotou, e sabemos: "O mundo do rio não é o mundo da ponte". É a travessia - de ambos - o que se insinua interessante.
Salvo as proporções dos meios, observo na camareira do conto de Marcelo Moutinho um gesto semelhante ao engendrado pelo sujeito da canção "Onde eu nasci passa um rio", de Caetano Veloso. Ambos sabem que "dentro do mar tem rio, dentro da dor a canção, dentro do guerreiro flor", como canta o sujeito de outra canção.
Porém, mesmo desaguados no mar, preservam a força criadora e genésica que o rio (doce, menor, mais íntimo que a imensidão salgada marinha) serpenteia na estrutura - humana e estética - de cada um. "O que eu herdei de minha gente e nunca posso perder", parecem dizer nas entrelinhas.
Regravada pela médium das sereias - Maria Bethânia - no disco Pirata (2006), "Onde eu nasci passa um rio" registra o sujeito que canta a partir do canto: "Nasceu junto com o rio / o canto que eu canto mais", diz. Cantado, ele canta - experimenta a saída-de-si.
Sempre passando ("passa no igual sem fim"), atravessando, nunca o mesmo, o rio é o motor da luz na vida do sujeito da canção e da narradora do conto. O rio intervem na vida do sujeito da canção: "O rio da minha terra / Deságua em meu coração". Assim como intervem na vida da camareira: "No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina".
Há uma promoção concentrada de conhecimento: "Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada". Enriquecimento: "Igual, sem fim, minha terra / Passava dentro de mim". E o saldo cognitivo é digno de notas. "Hoje eu sei que o mundo é grande", diz o sujeito da canção. "Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes limpo, às vezes sujo, mas só ele mesmo, o rio".
O rio - berço e memória - do sujeito da canção deságua, "como se não desaguasse", no mar. "Já tanta coisa aprendi / Mas o que é mais meu cantar / É isso que eu canto aqui", diz. Dito de outro modo, sujeito e narradora mudam para permanecer os mesmos: eterno retorno (em diferença) íntimo.
"O tempo voa mais do que a canção", diria outro sujeito cancional. No conto e na canção arte e vida se tocam de forma complexa e delicada, apontando o que elas são e em que se diferem. "Mesma língua, mas com um som diferente". "O rio só chega no mar / depois de andar pelo chão".
"Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água", desaguasse no mar, anota a camareira depois de ler o livro deixado por Sophia. Seja como for, enquanto duram, conto (canto) e canção singularizam narradora e sujeito no mundo. Ambos querendo permanecer presença no leitor/ouvinte, mesmo depois de fechado o livro e de finda a canção.
Publicado na antologia Escritores escritos, é guardado no livro A palavra ausente que o conto "Dona Sophia" produz mais sentido: abre-se a novas possibilidades de entradas. Aqui, fechando um livro que começa com um conto intitulado "Água", "Dona Sophia" traduz o lugar onde a zona de contato entre leitor (ouvinte) e escritor (cantor) se liquefaz, precede preconceitos e instrumentos teóricos.
Sophia de Mello Breyner Andresen revela-se muito próxima da camareira-narradora. A única diferença é que enquanto uma - Sophia (poeta: "como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer") - escreve motivada pelo canto da musa (a poesia), a outra - camareira (anônima - mulher "comum") - escreve motivada pela sereia (a poeta/escritora). "Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala". Ambas irmãs na terra: ambas signos de elemento água em uníssono com a vida.
"Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho", observa a narradora. Sophia intervem na vida da camareira pela chave do lugar desta no mundo: o trabalho. "Era uma escritora famosa (...) ia receber um prêmio no Teatro Amazonas (...) o teatro é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é". A narradora não conhecia a hóspede, mas se o patrão diz que ela é importante é porque é.
O que poderia ser lido aqui como um discurso da resignação do subalterno, eu leio como uma potencialidade em movimento: "Eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele [o patrão] repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira", anota para mais adiante dizer: "Apesar de a gente ser tão diferente (...) pareço muito com a dona Sophia (...) no ritmo secreto que só nós duas conhecemos".
Uma sereia de água doce (de rio): a camareira - que escreve depois de tocar (e ser tocada por) o mar. A outra sereia de água salgada (de mar). Cada uma em mundo e tempo frequenciais únicos, singulares. Como Guimarães Rosa, anotou, e sabemos: "O mundo do rio não é o mundo da ponte". É a travessia - de ambos - o que se insinua interessante.
Salvo as proporções dos meios, observo na camareira do conto de Marcelo Moutinho um gesto semelhante ao engendrado pelo sujeito da canção "Onde eu nasci passa um rio", de Caetano Veloso. Ambos sabem que "dentro do mar tem rio, dentro da dor a canção, dentro do guerreiro flor", como canta o sujeito de outra canção.
Porém, mesmo desaguados no mar, preservam a força criadora e genésica que o rio (doce, menor, mais íntimo que a imensidão salgada marinha) serpenteia na estrutura - humana e estética - de cada um. "O que eu herdei de minha gente e nunca posso perder", parecem dizer nas entrelinhas.
Regravada pela médium das sereias - Maria Bethânia - no disco Pirata (2006), "Onde eu nasci passa um rio" registra o sujeito que canta a partir do canto: "Nasceu junto com o rio / o canto que eu canto mais", diz. Cantado, ele canta - experimenta a saída-de-si.
Sempre passando ("passa no igual sem fim"), atravessando, nunca o mesmo, o rio é o motor da luz na vida do sujeito da canção e da narradora do conto. O rio intervem na vida do sujeito da canção: "O rio da minha terra / Deságua em meu coração". Assim como intervem na vida da camareira: "No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina".
Há uma promoção concentrada de conhecimento: "Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada". Enriquecimento: "Igual, sem fim, minha terra / Passava dentro de mim". E o saldo cognitivo é digno de notas. "Hoje eu sei que o mundo é grande", diz o sujeito da canção. "Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes limpo, às vezes sujo, mas só ele mesmo, o rio".
O rio - berço e memória - do sujeito da canção deságua, "como se não desaguasse", no mar. "Já tanta coisa aprendi / Mas o que é mais meu cantar / É isso que eu canto aqui", diz. Dito de outro modo, sujeito e narradora mudam para permanecer os mesmos: eterno retorno (em diferença) íntimo.
"O tempo voa mais do que a canção", diria outro sujeito cancional. No conto e na canção arte e vida se tocam de forma complexa e delicada, apontando o que elas são e em que se diferem. "Mesma língua, mas com um som diferente". "O rio só chega no mar / depois de andar pelo chão".
"Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água", desaguasse no mar, anota a camareira depois de ler o livro deixado por Sophia. Seja como for, enquanto duram, conto (canto) e canção singularizam narradora e sujeito no mundo. Ambos querendo permanecer presença no leitor/ouvinte, mesmo depois de fechado o livro e de finda a canção.
***
Onde eu nasci passa um rio
(Caetano Veloso)
Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim
Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar
O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui
Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais
O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração
(Caetano Veloso)
Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim
Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar
O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui
Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais
O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração
Esse rio que ainda me atravessa,
ResponderExcluirSubaé, dos meus dias.