29 dezembro 2011

Senhor José

A certa altura do livro Galáxias, de Haroldo de Campos, um cantador "num fim de festafeira" na capital paraibana toma o turno da palavra e, acompanhado "apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha", num martelo galopado, canta: "para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular / aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina".
As palavras do esmoler, transcriada pelo narrador de Galáxias, leva-nos a pensar sobre aquilo que faz uma canção ser definida como tal. O que e quem valida uma canção senão ela mesma em seu poder de cantar (ou não) o cantor e o ouvinte em suas unicidades?
O esmoler sabe que o que ele faz não agrada aos "burocratas da sensibilidade, que querem impingir ao povo, caritativamente, uma arte oficial, de 'boa consciência', ideologicamente retificada, dirigida", como Haroldo de Campos anota na apresentação do livro.
Recusando ser e ter um guia - "que deus te guie porque eu não posso guiar" -, o esmoler sabe e defende seu lugar no mundo: "pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila / o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso".
Ou seja, aparentemente sem serventia dentro de um sistema dominante de arte, aquele fio "esfaima circuladô de fulô" - põe em movimento (revitaliza circularmente, a cada novo/velho canto) os signos e símbolos do canto do povo de um lugar.
O esmoler de Galáxias, por outro lado, mas complementar ao anterior, faz-nos pensar nos mecanismos de guarda e preservação daquilo que é popular. No caso, a cultura e a tradição orais. Aliás, os termos "história", "tradição" e "oral" estão sempre muito próximos, como se um se validasse no outro e remetesse o indivíduo a certa essência, pureza. E nada é tão simples assim. Muito menos aqui no país encardido.
Sem me desviar do assunto, mas para trazer a questão um pouco ao espaço urbano, pergunto-me: remover um muro grafitado, pintado por um artista "de rua" para dentro de uma instituição (um museu, uma galeria) não seria destruir a obra?
Portanto, e voltando, como manter a alma de um pastoril em um disco? Como registrar (numa gravação eternizadora e, consequentemente, fixadora) a singularidade e a especificidade daquilo que em sua gênese é feito para ser do instante, do efêmero e, por isso mesmo, despertador do desejo de retorno, de circularidade da ilusão?
Sem dúvidas, como anota Paul Zumthor, no livro Introdução à poesia oral: "A passagem de um modo [oral direta, teatralizada] a outro [mediatizado] de recepção representa uma mudança cultural considerável". Porém, não há, salvo engano, uma solução definitiva para isso.
O certo é que essas questões não são novas e ainda atravessam - e não há consenso - o trabalho de muitos pesquisadores e brincantes contemporâneos: entre o desejo de "manter a coisa como estar" e a vontade de, pelo medo de perder, "registrar para a posteridade".
É do entrelugar do desejo e da vontade que sai o disco EncarnadoAzul (2011), assim, tudo junto, de Sandra Belê. Com seus coros e canções colhidas do livro Cancioneiro da Paraíba, de Idelette Muzart Fonseca, o disco de Belê presta um grande serviço à memória oral de nossa cultura justamente porque não tenta preservar o objeto.
Deslizante, cambiante e adaptável, porque atropófoga, a nossa cultura oral não precisa de salvadores. "Viemos para animar / por toda noite queremos cantar", diz a voz em "Senhor José". Aliás, o título do disco já sugere a aproximação dos cordões através da canção, das sonoridades.
Pedindo licença e atenção, o sujeito (voz coletiva) dessa canção sintetiza a própria pulsão daquilo que é uma canção: "Querer bem aos dois cordões [encarnado e azul] / queremos cantar". A defesa aqui é pelo direito de cantar e ser presença no mundo.
Unindo talento, tecnica e conhecimento de causa - "o coração daquilo" que canta -, Sandra Belê guarda, sem prender, as canções do pastoril que embala os festejos religiosos: quando ouvintes tornam-se intérpretes, cantores e mantem, enriquecem e transformam a tradição.
"Sou cigana do Egito / De tão longe a cantar / Para ver todo esse povo / Dançar, cantar e pular", versos de "A cigana", parecem querer definir a função da cantora, da canção, do disco.
Deste modo, podemos dizer que, ao trair a tradição oral, posto que a registra (fixa) em disco, Sandra Belê promove a permanência dessa mesma tradição, posto que agora poderá ser acessada noutros tempos e espaços. E as perdas na ausência da performance "por inteira" exige do ouvinte atento a sensibilização de outras áreas.
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / (...) / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela", diz o oportuno poema "Guardar", de Antonio Cícero.
Seja como for, a querela amorosa e cruel entre indústria fonográfica e cultura oral/popular (tradição, história, memória) pode não ter benefícios para os dois lados - é cada vez mais difícil encontrar um cantador-de-feira com sua capacidade intrínseca de engajar o ouvinte por inteiro na performance, os pastoris rareiam, mesmo no Nordeste do Brasil, ao mesmo tempo em que pupulam tentativas de restaurações e revitalizações passadistas (de boutique) do "passado" -, mas o fato é que a canção não morre nunca. É ela que nos salva e não o contrário.

***

Senhor José
(Domínio público)

Senhor José, posso entrar?

Senhor José, licença
Pro pastoril brincar

Viemos para animar
Por toda noite queremos cantar

É do meu gosto
É da minha opinião
Querer bem aos dois cordões
Com prazer no coração
Eu hei de amar os dois cordões
Com prazer no coração

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