29 dezembro 2011

Senhor José

A certa altura do livro Galáxias, de Haroldo de Campos, um cantador "num fim de festafeira" na capital paraibana toma o turno da palavra e, acompanhado "apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha", num martelo galopado, canta: "para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular / aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina".
As palavras do esmoler, transcriada pelo narrador de Galáxias, leva-nos a pensar sobre aquilo que faz uma canção ser definida como tal. O que e quem valida uma canção senão ela mesma em seu poder de cantar (ou não) o cantor e o ouvinte em suas unicidades?
O esmoler sabe que o que ele faz não agrada aos "burocratas da sensibilidade, que querem impingir ao povo, caritativamente, uma arte oficial, de 'boa consciência', ideologicamente retificada, dirigida", como Haroldo de Campos anota na apresentação do livro.
Recusando ser e ter um guia - "que deus te guie porque eu não posso guiar" -, o esmoler sabe e defende seu lugar no mundo: "pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila / o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso".
Ou seja, aparentemente sem serventia dentro de um sistema dominante de arte, aquele fio "esfaima circuladô de fulô" - põe em movimento (revitaliza circularmente, a cada novo/velho canto) os signos e símbolos do canto do povo de um lugar.
O esmoler de Galáxias, por outro lado, mas complementar ao anterior, faz-nos pensar nos mecanismos de guarda e preservação daquilo que é popular. No caso, a cultura e a tradição orais. Aliás, os termos "história", "tradição" e "oral" estão sempre muito próximos, como se um se validasse no outro e remetesse o indivíduo a certa essência, pureza. E nada é tão simples assim. Muito menos aqui no país encardido.
Sem me desviar do assunto, mas para trazer a questão um pouco ao espaço urbano, pergunto-me: remover um muro grafitado, pintado por um artista "de rua" para dentro de uma instituição (um museu, uma galeria) não seria destruir a obra?
Portanto, e voltando, como manter a alma de um pastoril em um disco? Como registrar (numa gravação eternizadora e, consequentemente, fixadora) a singularidade e a especificidade daquilo que em sua gênese é feito para ser do instante, do efêmero e, por isso mesmo, despertador do desejo de retorno, de circularidade da ilusão?
Sem dúvidas, como anota Paul Zumthor, no livro Introdução à poesia oral: "A passagem de um modo [oral direta, teatralizada] a outro [mediatizado] de recepção representa uma mudança cultural considerável". Porém, não há, salvo engano, uma solução definitiva para isso.
O certo é que essas questões não são novas e ainda atravessam - e não há consenso - o trabalho de muitos pesquisadores e brincantes contemporâneos: entre o desejo de "manter a coisa como estar" e a vontade de, pelo medo de perder, "registrar para a posteridade".
É do entrelugar do desejo e da vontade que sai o disco EncarnadoAzul (2011), assim, tudo junto, de Sandra Belê. Com seus coros e canções colhidas do livro Cancioneiro da Paraíba, de Idelette Muzart Fonseca, o disco de Belê presta um grande serviço à memória oral de nossa cultura justamente porque não tenta preservar o objeto.
Deslizante, cambiante e adaptável, porque atropófoga, a nossa cultura oral não precisa de salvadores. "Viemos para animar / por toda noite queremos cantar", diz a voz em "Senhor José". Aliás, o título do disco já sugere a aproximação dos cordões através da canção, das sonoridades.
Pedindo licença e atenção, o sujeito (voz coletiva) dessa canção sintetiza a própria pulsão daquilo que é uma canção: "Querer bem aos dois cordões [encarnado e azul] / queremos cantar". A defesa aqui é pelo direito de cantar e ser presença no mundo.
Unindo talento, tecnica e conhecimento de causa - "o coração daquilo" que canta -, Sandra Belê guarda, sem prender, as canções do pastoril que embala os festejos religiosos: quando ouvintes tornam-se intérpretes, cantores e mantem, enriquecem e transformam a tradição.
"Sou cigana do Egito / De tão longe a cantar / Para ver todo esse povo / Dançar, cantar e pular", versos de "A cigana", parecem querer definir a função da cantora, da canção, do disco.
Deste modo, podemos dizer que, ao trair a tradição oral, posto que a registra (fixa) em disco, Sandra Belê promove a permanência dessa mesma tradição, posto que agora poderá ser acessada noutros tempos e espaços. E as perdas na ausência da performance "por inteira" exige do ouvinte atento a sensibilização de outras áreas.
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / (...) / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela", diz o oportuno poema "Guardar", de Antonio Cícero.
Seja como for, a querela amorosa e cruel entre indústria fonográfica e cultura oral/popular (tradição, história, memória) pode não ter benefícios para os dois lados - é cada vez mais difícil encontrar um cantador-de-feira com sua capacidade intrínseca de engajar o ouvinte por inteiro na performance, os pastoris rareiam, mesmo no Nordeste do Brasil, ao mesmo tempo em que pupulam tentativas de restaurações e revitalizações passadistas (de boutique) do "passado" -, mas o fato é que a canção não morre nunca. É ela que nos salva e não o contrário.

***

Senhor José
(Domínio público)

Senhor José, posso entrar?

Senhor José, licença
Pro pastoril brincar

Viemos para animar
Por toda noite queremos cantar

É do meu gosto
É da minha opinião
Querer bem aos dois cordões
Com prazer no coração
Eu hei de amar os dois cordões
Com prazer no coração

22 dezembro 2011

Flor da noite

A mãe é a primeira sereia do indivíduo. A força motriz a convidá-lo à vida, ao mesmo tempo em que aperta os laços da relação [de dependência] dialógica (mãe-filho). Ou seja, ela dá a corda, mas mantém o cordão (umbilical) bem ajustado.
E são nas cantigas de ninar - e suas ambiguidades entre o consolo e a provocação do medo - que as mães vão sustentando o filho, na voz, ao mesmo tempo em que se mantem viva (com função e sentido) no mundo. Oferecendo tempos e espaços suspensos na realidade vocal, a mãe insere o filho na descoberta-de-si.
Diferente do Ulisses homérico, o indivíduo comum não tem uma Circe a lhe advertir dos encantos das sereias. Somos urdidos e maturados já imersos no paraíso sonoro do canto (ulterior) sirênico.
É por isso que tenho dito que toda canção (mesmo mediatizada, serial, produto de mercado) tem algo de maternal: ela quer [en]cantar o ouvinte, dar-lhe sentidos ao absurdo. Tudo na canção se articula a fim de criar o paraíso esperado por cada ouvinte. A vida em abundância, porque ficcional - descolada do real, mas sem deixar de roçá-lo.
Seguindo este raciocínio, o disco Liebe Paradiso (2011), de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, é uma caixa sonora onde cada palavra dita (cantada) parece querer iluminar o recanto escuro de cada sujeito cancional a dançar em cada canção.
O requinte sonoro manipulado e atingido pelos produtores Duda Mello e Leonel Pereda, produtores é algo fundador na canção popular brasileira. As ambiências geradas - quase pinturas, mas algo superior, porque canção - de tão sofisticadas soam íntimas do ouvinte e promove o efeito estético da lindeza.
E é atento a esta intimidade que destaco "Flor da noite" cantada por Nana Caymmi. Temos aqui uma jóia rara. Avesso à simplicidade, ou à simplificação, das relações afetivas entre cantor e ouvinte, o sujeito da canção - feito vivo na voz de Nana - pontua aquilo que ele é: sereia/mãe a acalentar o indivíduo/filho solto na noite escura.
Só mesmo quem cantou com imprescindível beleza os versos "Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / quero a primeira estrela que vier / para enfeitar a noite do meu bem" poderia recriar "Flor da noite", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos: uma canção de ninar adultos, de embalar afetos.
A voz de Nana Caymmi se acomoda com tamanha precisão ao desenho musical que o desejo do sujeito da canção acontece: a cama sonora e tépida está feita, basta ao ouvinte deitar e aproveitar a suave proteção (maternal) que ela oferece - o lugar onde o amor ficará em permanente estado de pausa e será acionado sempre que a canção retornar.
Aqui, a proteção maternal é travestida na fala de alguém que se despede: "Se outro alguém te lembrar de nós dois / Não diz pra esse alguém / O que passou e ficou pra depois / Seja o que for / Além de mim / Ninguém / Assim", diz o sujeito que, pela reminiscência do ouvinte, dialoga com os versos de "Detalhes", de Roberto e Erasmo Carlos: "Se um outro cabeludo aparecer na sua rua / e isso lhe trouxer saudades minhas a culpa é sua".
Tudo dorme, está em pausa. Tudo sonha, está vibrando nos amantes. É no sonho, na memória afetiva e onírica que tudo dorme, sonha e permanece. É no canto (ficção / sonho) levemente entoado de Nana Caymmi que tudo é real - "e o uni[verso] vai ao léu". E "como a lua rolando entre as estrelas", o ouvinte é puro estado estético.
Deste modo, "Flor da noite" dialoga tematicamente com "Tudo tudo tudo", de Caetano Veloso, e "Dorme", de Arnaldo Antunes. Especialmente quando estas dizem "Tudo dormir" e "Pensamento, dorme / Sensação, dorme", respectivamente, na tentativa de colocar o ouvinte em estado de repouso, de quietude.
O pronome indefinido "tudo", nas três canções, utilizando seus cancionistas do recurso de montagem cinematográfica einseiteniano e godardiano, não se refere a uma totalidade, mas ao gesto (humano) sempre fracassado e circular de busca pela completude - na repetição do pronome, do ato, do [re]canto. Tudo é uno: cantor e ouvinte, mãe e filho, amado e amante. Cada um é parte que (juntas) leva ao todo - tudo cantado.
O canto de "Flor da noite" é a "cirandas voltas de tu em mim", como diria o poema "Saudades" de Amador Ribeiro Neto. A canção circula e protege quem é cantado, no modo (passional) de cantar os significantes - carrossel em movimento, "sobre o mundo [íntimo] cai o véu", estrela - espalhados (feitos carrossel) na canção.
Destacar aqui todos os sons sutis e suas articulações dentro de Liebe Paradiso é algo impossível e soa incoerente diante da grandeza da obra. É preciso ouvir: sem pressa, ao sabor dos sons, das vozes, do simples gesto - cada vez mais raro - de ouvir para ser ouvido.

***

Flor da noite
(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)

Dorme, tudo dorme
Sobre o mundo cai o véu
Veste o infinito
Véu da noite, cai do céu

Se outro alguém te lembrar de nós dois
Não diz pra esse alguém
O que passou e ficou pra depois
Seja o que for
Além de mim
Ninguém
Assim

Sonha, tudo sonha
O universo vai ao léu
Verso do meu sonho

Flor da noite, carrossel

15 dezembro 2011

Cantar

"Há na alegria um mecanismo aprovador que tende a ir além do objeto particular que a suscitou, para afetar indiretamente qualquer objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubiloso da existência em geral", anota Clément Rosset em Alegria a força maior.
Toda alegria é alegria de viver. Prenhe de alegria, o indivíduo alegre só quer saber - involuntariamente - de espalhar aquilo que lhe move, lhe toma por dentro. Particular que se insinua no geral, assim como a tristeza, a alegria não tem motivo de ser, mas está.
No entanto, enquanto a alegria parece não desejar o impossível, aquilo que a realidade não é capaz de oferecer, a tristeza se debate em esperar o irreal, a incessante aprovação do outro.
Obviamente, ninguém é tão mono ou bicromático. Porém, como diz o sujeito de "Neguinho", de Caetano Veloso: "Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz", esquecendo-se que "belezas são coisas acesas por dentro" e "tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento".
"Haverá um dia em que você não haverá de ser feliz / (...) / Você vai rir sem perceber / Felicidade é só questão de ser / Se chorar chorar é vão porque os dias vão pra nunca mais", diz o sujeito de "Felicidade", canção de Marcelo Jeneci e Chico César. É mais ou menos isso.
As fronteiras que distinguem e delimitam a alegria (aqui, propositadamente confundida com a felicidade) e a tristeza são constantemente borradas na ação do indivíduo no mundo. Tanto os risos sem razão quanto o choro sem motivo aparente são emblemas de um corpo existindo.
Salvo engano, penso ser desse modo que o sujeito da canção "Cantar", de Teresa Cristina (Delicada, 2007) se coloca no mundo: sem "ter que explicar pra ninguém / A razão desta tal melodia / Encharcada de sorriso e pranto".
"Cantar é vestir-se com a voz que se tem", diz o sujeito indicando que, para além do que é cantado, há um indivíduo nu sangrando e sagrando a própria existência ao cantar: ao criar e envelhecer (solta no ar) a lembrança de uma alegria perdida.
No canto, o sujeito existe: se plasma, posto que, pela voz, ele sai para fora de si - "No canto / Vou jogando a minha vida pra você / Por isso, fecho os olhos pra não ver", diz o sujeito de "Cantar".
O timbre vocal de Teresa Cristina - tons baixos, voz descompromissada, andamento lento e cadenciado - figurativiza o sujeito que canta e se acomoda à vida: está impregnado de dor e prazer, pois ele/ela sabe que tristeza sem ressentimento é alegria.
Os versos "canto para amenizar / Grande dor que me traz / O sorriso de alguém / Se a minha escola querida / Cruzar a avenida" parecem sintetizar aquilo que aqui sugiro: cantar é equilibrar na voz a alegria e a tristeza, a lembrança e o gesto de existir no instante-já da canção. E isso só é possível porque há um indivíduo (humano) por trás de tudo: procurando no inferno o que não é inferno, como diria Calvino.
Penso a alegria de modo muito próximo a Clément Rosset, ou seja, a alegria não nega a tristeza, ao contrário, incorpora. Equilibrando-se dentro de nós, são elas que nos mantem em estado febril diante da vida, sem tempo de temer a morte. Cantar, alegrar-se é arriscar, é entregar-se ao que virá, lúcido pela lembrança dos acúmulos do tempo que não pára.
Nós brasileiros temos um movimento nato ao encontro da alegria. E somos cobrados por isso o tempo todo. E claro que há uma indústria do entretenimento tirando proveito disso. Mas ser alegre, e nisso o brasileiro, na prática (sempre pensando com o corpo todo), faz muito bem, é ter lucidez de sua posição (individual) e nem por isso deixar de cantar. Daí a nossa melancolia (melosa melodia) tropical.
Talvez o jeito de corpo do malandro seja a melhor metáfora para ilustrar isso. Ser alegre não é ser alienado e raso. Nem tão pouco, ser triste é sinônimo de ser casmurro e profundo. Para além das patologias que tais sintomas podem indiciar, é preciso atentar-se à unicidade de cada voz e sua legitimitidade de ser.
Claro, isso é um viver por um fio: ter lucidez diante do absurdo da existência, tanto pode levar à tristeza profunda, quanto a alegria romântica e boba. Além das subcategorias, talvez mais nefastas ao indivíduo, como a má interpretação do que é ser cool.
A voz de Teresa Cristina - meio Nelson Cavaquinho, meio Paulinho da Viola, meio canto falado, meio samba-canção - cantando "Cantar" é mirada no espelho da memória de alguém que vivencia, experimenta o sabor do gesto de viver. E isso dói, mas não de tristeza, no sentido negativo, mas da sensação de estar vivo, arranhando o real: uma dor gostosa, mansa, alegre.

***

Cantar
(Teresa Cristina)

Cantar
Desnudar-se diante da vida
Cantar é vestir-se com a voz que se tem
Achar o tom da alegria perdida
E não ter que explicar pra ninguém
A razão desta tal melodia
Encharcada de sorriso e pranto
No cantar a lembrança se cria
E envelhece de repente
Vai solta no ar
Por isso eu canto

Canto para amenizar
Grande dor que me traz
O sorriso de alguém
Se a minha escola querida
Cruzar a avenida
Eu canto também
No canto
Vou jogando a minha vida pra você
Por isso, fecho os olhos pra não ver

08 dezembro 2011

Autotune autoerótico

A voz é a certeza de que uma pessoa de carne e osso a emite e existe. É uma assinatura. "Fui apresentado a Gal porque ela cantava bem. Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto", disse Caetano Veloso em entrevista ao jornal O Globo (29/11/2011).
Para além daquilo que viria a ser a sua presença redefinidora do corpo feminino em cena, Gal Costa é uma voz - do cóccix à boca - singular e única. Viva e corpórea, a voz nos distrai da obsessiva vigilância platônica, alertando-nos para a unicidade de cada indivíduo.
Como anota Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais: "Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes".
Salvo engano, a canção "Autotune autoerótico", de Caetano Veloso, é síntese (e antítese) do disco Recanto (2011). O verso que abre a canção - "Roço a minha voz no meu cabelo" - dá visualidade sonora à capa do disco: o rosto de Gal Costa em close-up e sua voz (assim, meio de lado) "fotografada" no instante exato em que roça o cabelo da cantora. Notas (vocais) e fios (de cabelo) elétricos a serviço do cantar.
Aliás, com Recanto, Gal Costa se recoloca no posto da cantora que corre riscos, experimenta, cria - faz da técnica vocal ruminada pela experiência um aparelho à disposição do cantar. Gal mostra que não basta incorporar ruídos artificiais à canção para fazê-la ter ar contemporâneo. Para andar, o canto necessita das vivências e das lembranças do dono da voz. Como os arranhados (reminiscências de um tempo vivido) - ajustados eletronicamente - da agulha no vinil acompanhando a canção "Recanto escuro", por exemplo.
E é aqui que Gal Costa se redimensiona como intérprete cuja voz tépida (tons mais baixos dos que emitidos nos anos de 1970 e 1980) agora não luta mais (não precisa mais lutar, pois já sabemos que seu nome é Gal) eroticamente contra a estridência de uma guitarra elétrica, mas com a frieza de um equipamento eletrônico que ameaça distorcer (e distorce) sua voz.
São os versos "Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar / pelos caminhos que levam à grande beleza" que melhor representam a tese sustentada pelo disco. E estimulam a análise do processo de descarte da voz perpetrado tanto pela filosofia - de Platão a Derrida -, quanto, supostamente, pelo autotune.
Processador que corrige as performances vocais e instrumentais, o autotune tem servido para disfarçar erros e limitações. No entanto, como "belezas são coisas acesas por dentro" (Mautner), o autotune, de viés, revela que só o cantor - e seus botões de carne e osso - é capaz de pensar que nada "dá socorro no caminho inevitável para a morte" (Gil).
Obviamente, a intenção do sujeito de "Autotune autoerótico" não é execrar o equipamento. Pelo contrário, dizendo quem é o dono de quem, o sujeito faz da máquina um cúmplice na tentativa de significar (dar sentido a) o absurdo da vida. Sem a voz o autotune não se basta para satisfazer a urgência humana de belezas. Por sua vez, sem o autotune a voz (humana, orgânica) não chegaria aos resultados estéticos esperados.
Em "Autotune autoerótico" temos o perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo. Tudo aquilo que é cantado por Gal Costa é mostrado sonoramente pela sua voz distorcida, através do uso do equipamento eletrônico.
É deste modo que um verso como "desço a nota até o sol do plexo" pode ser percebido em sua materialidade pelo ouvinte, já que a voz de Gal desce até o ponto mais grave das notas, localizando-se na altura da região do plexo solar, onde está o diafragma: equipamento (autotune) orgânico de sustentação e motor dos ajustes vocais.
O efeito autotune e o efeito orgânico se misturam fundando o efeito especial do ato de cantar. O cantar é maior do seus instrumentos, fura bloqueios e "coisas sagradas permanecem / nem o Demo as pode abalar". Manipulada, ou não, é a voz quem indicia a existência de um indivíduo-cantor.
Borrando fronteiras, ficção e realidade se misturam posto que, como é sabido, a jovem Maria da Graça exercitava a voz nas panelas da mãe, dona Mariah. Autoeroticamente (alter inclusive), o sujeito da canção diz: "Americana global, minha voz na panela lá / Uma lembrança secreta de plena certeza". Só lembra quem pensa. E vice-versa. O sujeito é Gal, é eu, sou eu, é nós.
É na voz vinda de um recanto (eternos relance e renasce) escuro que se alimenta o gesto vocal de Gal Costa: o humano acima (ou junto) dos artificialismos. Ou seja, a voz orgânica (quente) e a voz fria (eletrônica) levam à mesma plural Gal Costa - "instintos e sentidos" - frente ao infindo.
Não sabemos onde termina a voz do sujeito da canção e onde começa a voz (biográfica) de Gal: "O menino é eu, o menino sou eu". Elas se misturam, se autoerotizam e, respondendo à pergunta feita pela voz autotunizada da cantora Cher - "Do you believe in life after love?" -, Gal Costa, com voz também modificada e acompanhada por uma base eletrônica grave e áspera, parece querer dizer que sim, que "as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão" (Drummond), sempre que houver alguém cantando, trazendo a vida na voz e não permitindo que o amor (à vida) se perca.
A voz - "esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim" - de Gal Costa joga/luta eroticamente - atrás, na frente, em cima, em baixo, entre vozes - com as intervenções do autotune a fim de afirmar que "a lembrança secreta de plena beleza" só é possível porque há Gal Costa sustentando tudo, na voz. É nela que tudo dói e canta: e é gozo vital.

***

Autotune autoerótico
(Caetano Veloso)

Roço a minha voz no meu cabelo
Desço a nota até o sol do plexo
Ai, meu amor, me dá, que calor, me beija
Ah, por favor, não vá, por favor, me deixa

Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar
Pelos caminhos que levam à grande beleza
Americana global, minha voz na panela lá
Uma lembrança secreta de plena certeza

01 dezembro 2011

Fotografia

"Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa", anota o eu-lírico do poema "Motivo", de Cecília Meireles. Assim, cantar é a tentativa de capturar o instante infotografável; é dá-lo à existência.
Mais do que viver e do que sonhar, cantar é ter o coração daquilo que se canta; é sentir - e fazer vibrar - o que não tem governo; é localizar-se no pré-pós sentido; é deixar a vida brilhar. Cantar é roçar o real e arranhar o sonho, inseparavelmente.
Cantar é alimentar o relicário dos significantes daquilo que somos, podemos e/ou queremos ser. E cada verso, no gesto vocal, é flashe sobre a pele luminosa de nossa humanidade se insinuando no sentido.
Quando Leo Tomassini dá voz ao sujeito de "Fotografia", de Tom Jobim (Amor e Cordas, 2003), com sua voz tranquila e passional na medida exata, ele dispara as lembranças amorosas de um encontro (de um desejo) que se sustenta na própria canção.
Metacanção, canção que fala das canções que contam sobre aquele beijo de todo apaixonado, "Fotografia", sob o arranjo de Felipe Trotta, soa nostálgica e alegre. Afinal a canção existe - entre violões, bandolim e cavaquinho - indiciando que há amor e desejo alimentando a voz do cantor.
Amor e cordas, passado e canção se misturam na voz compromissada de Tomassini em cantar o instante-já tranquilo e terno de um sujeito que lembra e vive, sente e rir: existe porque tem e terá o que recordar: a intimidade intransferível entre ele e o outro.
O recado-canção sai de um (eu) ao outro (você) no instante em que o sujeito-cantor se vê no lugar exato daquele beijo tatuado na tela de sua memória. Estar ali em companhia do outro - na presença-ausência do outro - dispara o flashe fotográfico, move as cordas vocais, imprime a canção, a fotografia sonora.
"Há sempre há sempre uma canção para contar aquela velha história de um desejo que todas as canções têm pra contar", diz o sujeito. A vida "real" - particular, finita - se completa no canto, na eternização de instantes mágicos como esses em que o acontecimento se faz canção.
O sujeito de "Fotografia" faz da canção um beijo destinado ao outro (você) que com ele viveu/vive o instante agora relembrado e cantado. Sujeito que ganha figura na capa do disco de Leo Tomassini com o close nas mãos que seguram sobre o peito do cantor o que se sugere ser um coração feito de um emaranhado de cordas de aço.
Você sabe o que é ter um amor? O sujeito de "Fotografia" - luzes brandas e cores invisíveis - sabe. "E a canção é tudo - tem sangue eterno a asa ritmada".

***

Fotografia
(Tom Jobim)

Eu, você, nós dois
Aqui neste terraço à beira-mar
O sol já vai caindo e o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar
Você tem que ir embora
A tarde cai
Em cores se desfaz,
Escureceu
O sol caiu no mar
E aquela luz
Lá em baixo se acendeu

Você e eu

Eu, você, nós dois
Sozinhos neste bar à meia-luz
E uma grande lua saiu do mar
Parece que este bar já vai fechar
E há sempre uma canção
Para contar
Aquela velha história
De um desejo
Que todas as canções
Têm pra contar
E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo