Há algo de materno no ato de cantar e ser cantado. A canção quer suprir, pela fruição estética, a falta que nos move: o suprimento sirênico do aconchego intra-uterino - o tempo/espaço que tudo cede, de graça.
Fora dali tudo é busca, troca, empenho individual cansativo e, muitas vezes, fracassado. Mas não nos enganemos: a mãe, ao cantar o filho, também se canta, vive - posiciona-se em um mundo onde a imagem quer ser tudo, mas não ultrapassa a epiderme.
É desse modo que a trilha sonora de cada existência - pessoal e incopiável, por mais que o mercado aja com a massificação: e é para isso que têm agido os melhoramentos técnicos de gravação e reprodução da voz - diz aquilo que somos, ou queremos ser.
Quanto à unicidade de cada voz, diz o sujeito-cantor da canção "Mãe", de Caetano Veloso: "Eu canto, grito, corro, rio e nunca chego a ti".
Além de apontar o empenho sem sentido restaurador, posto que a phoné antecede o semântico, o sujeito canta o desejo de volta, de recolhimento à escuridão abundante do ventre (estrela azulada) materno. "Minha mãe é minha voz", poderia dizer o sujeito.
A impossibilidade de restituição - a incompletude ontológica - parece ser o motor do humano, faz a vida valer a pena pois sublinha a dor e a alegria do indivíduo único e, portanto, solitário. A canção é suplemento, o cantor - ao dizer aquilo que precisamos ouvir - é amigo intimo, parceiro, mãe.
Guardada no disco A Dama indigna (2011), na voz que flui entre o cool e o excesso de Cida Moreira, "Mãe" ganha contornos luminosos. Assumindo a persona do sujeito que descobre em nada valer ser filho da santa, e melhor ser filho da outra, Cida constrói o sujeito que mesmo indigno, e exatamente por ser indigno - afinal todos o somos, pois nunca alcançamos a meta: a língua materna -, canta e quer ser feliz.
Voz cambiante, vinda de um trabalho preciso e lúcido com a palheta vocal, Cida realça a sofisticação da relação cantor-ouvinte (mãe-filho). Ao mesmo tempo em que dignifica toda a possibilidade relacional que vai do sujeito à mãe idealizada.
Com uma voz que se movimenta brusca, passional, rude, cruamente na tessitura melódica, Cida remelexe os signos dionisíacos da díade (fusão narcísica) mãe-filho. “Quem chora por amor é um imbecil / Quem vive de ilusão é muito mais”, dirá a cantora noutra faixa do mesmo disco.
A interpretação desmaculada - entre afagos e sopapos - da canção amplia os significantes de uma letra toda feita em dísticos (versos emparelhados, a dois) para sagrar o objeto-título.
O desejo de retorno ao uno é atravessado por uma nesga de raiva incontida contra aquela que colocou o sujeito-cantor no mundo. Bem diferente, por exemplo, da delicada versão realizada pelo grupo O tao do trio que, no disco Uns caetanos, investe em uma canção de ninar - resposta feliz aos trechos vindos dela: da voz materna.
Toda canção - significada individualmente - é colo de mãe. E seja como for, "rei sem fim", "homem tão sozinho" e "bicho triste", a mãe brilha naquilo que o sujeito é. As referências ao universo sonoro - palavras, guitarras, vento, cidades, marés, cigarras - intensificam o anseio cancional, a vontade de reparo no desamparo existencial.
Os elementos dispersos desde a separação, são recolhidos pela canção, pela voz do sujeito, de Cida Moreira, a fim de equalizar e construir o colo estético-sonoro, inalcançável na "vida real", desejado por todo indivíduo. Ao cantar a mãe ele engendra um gozo do prazer já vivido. Chora, geme e rir de dor e deleite.
É desse modo que a trilha sonora de cada existência - pessoal e incopiável, por mais que o mercado aja com a massificação: e é para isso que têm agido os melhoramentos técnicos de gravação e reprodução da voz - diz aquilo que somos, ou queremos ser.
Quanto à unicidade de cada voz, diz o sujeito-cantor da canção "Mãe", de Caetano Veloso: "Eu canto, grito, corro, rio e nunca chego a ti".
Além de apontar o empenho sem sentido restaurador, posto que a phoné antecede o semântico, o sujeito canta o desejo de volta, de recolhimento à escuridão abundante do ventre (estrela azulada) materno. "Minha mãe é minha voz", poderia dizer o sujeito.
A impossibilidade de restituição - a incompletude ontológica - parece ser o motor do humano, faz a vida valer a pena pois sublinha a dor e a alegria do indivíduo único e, portanto, solitário. A canção é suplemento, o cantor - ao dizer aquilo que precisamos ouvir - é amigo intimo, parceiro, mãe.
Guardada no disco A Dama indigna (2011), na voz que flui entre o cool e o excesso de Cida Moreira, "Mãe" ganha contornos luminosos. Assumindo a persona do sujeito que descobre em nada valer ser filho da santa, e melhor ser filho da outra, Cida constrói o sujeito que mesmo indigno, e exatamente por ser indigno - afinal todos o somos, pois nunca alcançamos a meta: a língua materna -, canta e quer ser feliz.
Voz cambiante, vinda de um trabalho preciso e lúcido com a palheta vocal, Cida realça a sofisticação da relação cantor-ouvinte (mãe-filho). Ao mesmo tempo em que dignifica toda a possibilidade relacional que vai do sujeito à mãe idealizada.
Com uma voz que se movimenta brusca, passional, rude, cruamente na tessitura melódica, Cida remelexe os signos dionisíacos da díade (fusão narcísica) mãe-filho. “Quem chora por amor é um imbecil / Quem vive de ilusão é muito mais”, dirá a cantora noutra faixa do mesmo disco.
A interpretação desmaculada - entre afagos e sopapos - da canção amplia os significantes de uma letra toda feita em dísticos (versos emparelhados, a dois) para sagrar o objeto-título.
O desejo de retorno ao uno é atravessado por uma nesga de raiva incontida contra aquela que colocou o sujeito-cantor no mundo. Bem diferente, por exemplo, da delicada versão realizada pelo grupo O tao do trio que, no disco Uns caetanos, investe em uma canção de ninar - resposta feliz aos trechos vindos dela: da voz materna.
Toda canção - significada individualmente - é colo de mãe. E seja como for, "rei sem fim", "homem tão sozinho" e "bicho triste", a mãe brilha naquilo que o sujeito é. As referências ao universo sonoro - palavras, guitarras, vento, cidades, marés, cigarras - intensificam o anseio cancional, a vontade de reparo no desamparo existencial.
Os elementos dispersos desde a separação, são recolhidos pela canção, pela voz do sujeito, de Cida Moreira, a fim de equalizar e construir o colo estético-sonoro, inalcançável na "vida real", desejado por todo indivíduo. Ao cantar a mãe ele engendra um gozo do prazer já vivido. Chora, geme e rir de dor e deleite.
***
Mãe
(Caetano Veloso)
Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visses não
Imensa solidão
Eu sou um rei que não tem fim
E brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração
Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tem amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor
Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o meu caminho e o teu caminho
É um nem vais nem vou
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs
Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
e nunca chego a ti
(Caetano Veloso)
Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visses não
Imensa solidão
Eu sou um rei que não tem fim
E brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração
Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tem amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor
Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o meu caminho e o teu caminho
É um nem vais nem vou
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs
Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
e nunca chego a ti
Quase 11 anos após sua publicação, encontro esse texto, na procura pela história da música Mãe de Caetano. Gostei muito.
ResponderExcluirIdem, minha trajetória até aqui 🧡
ExcluirEu exatamente nesse momento kkkk. Aliás, foi uma aula
ExcluirMúsica maravilhosa, letra magnífica, interpretação inesquecível... O que mais dizer?
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