22 setembro 2011

Yemanjá rainha do mar

Para uma certa linha de pensamento, metade mulheres, metade animais, as sereias - desde os latinos até hoje - guardam o canto puro, absoluto, primordial, assemântico, inarticulado: o canto sem palavras.
Parece ser assim, por exemplo, que O Agente, personagem do livro O natimorto, de Lourenço Mutarelli, percebe a cantora de ópera com quem desenvolve uma relação obsessiva. Ela é toda voz - pureza e beleza - para ele. Não à toa ela é denominada como A Voz. Narrador, só O Agente consegue ouvir A Voz - logo não sabemos se há palavra cantada ali - fazendo a cantora ser um misto de sereia e musa, pois com sua voz inaudível às outras pessoas, A Voz é o impulso necessário à descoberta de Si de O Agente, a fuga do mundo. Mas também promove o ato narrativo dos acontecimentos.
"Desde que ele a ouviu cantar, não fala em outra coisa", diz A Esposa. "É a Voz da Pureza pra lá, é a Voz da Pureza pra cá". "Por que que eu não posso ouvi-la cantar? Por acaso ela é assim tão sofisticada?". Ou seja, ele ouve e fala. Fala porque sente encanto: um encanto intransferível. Só ao ouvido dele cabe a captação da singularidade da voz. O que, por sua vez, também distingue O Agente das outras personagens. Mais adiante é A Voz quem dirá: "Eu não sou tão delicada assim, dá pra aguentar o tranco".
Leitores de Homero, onde o mito ganha seu registro, filósofos como Adorno e Horkheimer parecem, talvez por terem outros objetivos intelectuais, não atentar para o fato de que além de cantar, as sereias contam Ulisses. O caráter narrativo do canto é emudecido. Além disso, como bem observa Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal: "As vestes do sujeito burguês ficam bastante apertadas no herói de Ítaca".
Está lá na Odisseia: "Não passou nosso barco ligeiro despercebido às Sereias, de perto, que entoam sonoras: 'Vem para perto, famoso Odisseu, dos Aquivos orgulho, traz para cá teu navio, que possas o canto escutar-vos.(...) Todas as coisas sabemos'", diz Ulisses.
Ou seja, mais do que som, o canto das sereias entoa palavras, narra cantando: algo audível aos ouvidos humanos. O canto das sereias homéricas contem o passado, o presente e o futuro de Ulisses. Assim são as canções (certas e erradas) que, ao longo de um dia, promovem as alterações de nossos humores.
Deste modo, podemos pensar que as sereias carregam um canto que mata o homem velho e desperta o homem novo: lúcido da cabeça aos pés de sua condição errante. Herói da razão, Ulisses provou que era possível ouvir as sereias (pensar/sentir com outras partes do corpo) sem que isso levasse à morte (ao fim).
Ao contrário daqueles que percebem a racionalidade desvocalizada, ou o encanto absoluto, as sereias sabem o que dizem. Elas contam ao homem comum aquilo que a Musa conta apenas ao poeta. Elas nos fornecem a fama: o calor de se sentir cantados.
Devido às suas "competências vocais, a relação imediata [das sereias] era com pássaros, e não com peixes. Quem é mudo como um peixe não pode certamente se prestar a hibridar um monstro canoro", anota Adriana Cavarero. Mas as sereias foram conduzidas ao mar.
"A mudança de morada é crucial. A descida para as águas, isto é, a metamorfose pisciforme é acompanhada pela sua transformação em mulheres belíssimas", como também observa Cavarero. Antes monstros barbudos, cujo poder de sedução estava no canto (logos poético), agora, em um mundo videocêntrico, as sereias parecem seduzir antes pela beleza física.
Seja como for, não são poucas as lendas das sereias. No Brasil elas são as rainhas do mar e cantam. Cantam muito. "Minha sereia é rainha do mar / O canto dela faz admirar / Minha sereia é a moça bonita / Nas ondas do mar aonde ela habita", como diz a canção de Dorival Caymmi. Aqui a sereia canta com dó do penar do sujeito.
Médium da sereia e signo de elemento água, Maria Bethânia (Mar de Sophia, 2006) traduz em um canto (quase) devocional - tons graves e baixos - toda a infiltração do mito sirênico em nossa cultura. E tem na canção "Yemanjá rainha do mar", de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, a melhor companhia.
Bethânia canta (evoca) os nomes da rainha do mar - "Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá" - elencando a apropriação doce do mito em nosso imaginário.
O sujeito da canção mistura mitos gregos e africanos e coloca o resultado disso para dançar no Brasil ao balanço do mar, ao som da moradora da "loca de pedra": vaidosa, humanizada - íntima do marinheiro (brasileiro) ouvinte.
"O que ela canta? / Por que ela chora? / Só canta cantiga bonita / Chora quando fica aflita / Se você chorar", numa demonstração radical da relação interpessoal que vai da sereia ao ouvinte, e vice-versa. Num jogo lúdico que envolve prazer e dor, encanto e lucidez.

***

Yemanjá rainha do mar
(Pedro Amorim / Paulo César Pinheiro)

Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá

Onde ela vive?
Onde ela mora?

Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar

O que ela gosta?
O que ela adora?

Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar

Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá!

Qual é seu dia,
Nossa Senhora?

É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar

O que ela canta?
Por que ela chora?

Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar

Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro
que escuta a sereia cantar
é com o povo que é praiero
que dona Iemanjá quer se casar

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