24 fevereiro 2011

Juízo final

A voz de Seu Jorge permite a ele cantar o que desejar. Do estrondo do trovão ao sussurro, passando por diversos matizes timbrísticos, tudo cabe na voz de Seu Jorge. Do mesmo modo, mimeografando o passado e imprimindo futuros, os músicos da Nação Zumbi aprofundam a pesquisa de uma brasilidade braseira.
Para o projeto Seu Jorge e Almaz (2010), o cantor uniu sua potência vocal à tonelada rítmica de dois componentes do grupo Nação Zumbi - Pupillo e Lucio Maia -, além do conhecimento em trilhas sonoras de Antonio Pinto. O resultado é um disco forte: com sonoridades híbridas, volteios melódicos e surpresas.
Reciclando canções diversas - de Tim Maia a Rodney Temperton, passando por Jorge Ben e Dorival Caymmi -, o quarteto compôs um conjunto sonoro autoral: um som livre de fixações localistas porque universal, híbrido e misturado.
A lírica canção "Juízo final", de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, sem perder o cavaquinho, ganhou uma moldura melódica atômica, biônica e eletron-sansônica irradiando a mensagem do amor que será eterno novamente.
Aqui, longe da destruição apocalíptica, o juízo final traz a esperança do sol que brilhará. A produção do grupo Almaz investe em uma tempestade de sons eletronicamente modificados para adensar o canto do desejo do sujeito à espera de mudança.
É interessante analisar o núcleo duro da canção, ou seja, o verso "O amor será eterno novamente". Ele deixa entrever um tempo perdido gerador da sensação de nostalgia que atravessa a canção e mobiliza o sujeito. Ora, se o amor era eterno, por que deixou de sê-lo, já que o sujeito canta a restituição da eternidade?
Sol e luz, por algum motivo, favoreceram que a semente do mal germinasse. Ao final, o sujeito canta a cíclica luta entre bem e mal. Ele interfere no sistema cósmico encontrando no canto o remédio para o desassossego do instante: canta e quer ter olho para ver a maldade desaparecer. Como diz um soneto de Gregório de Matos: "Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, / Depois da luz se segue a noite escura, / Em tristes sombras morre a formosura, / Em contínuas tristezas a alegria".
A performance vocal preguiçosa de Seu Jorge parece contrastar com o desejo do sujeito exposto. Porém, tal dicção pode ser lida como a tematização dos angonismos presentes na letra. Aliás, em Seu Jorge e Almaz o cantor investiu a mais não poder na sua dicção malandra, desleixada e, por isso, única. Em ritmo crônico, o sujeito da canção caminha rumor a além do horizonte, onde tropa de todos os baques existentes comporão com sons psicodélicos a luz do dia seguinte.
Enquanto isso, ele, o sujeito da canção, vai carregando o peso de suas tristezas, colocando-as na bagagem que abandonará quando o sol brilhar novamente. Eis o movimento eterno.

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Juízo final
(Nelson Cavaquinho / Élcio Soares)

O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente

O amor será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer

O amor será eterno novamente

17 fevereiro 2011

Ele me lê

Basicamente, a canção é o equilíbrio entre um texto (palavra) e uma melodia (vocal e/ou instrumental). O equilíbrio deve se dar na performance do cancionista - que nem sempre é o compositor da canção.
É na performance que o cancionista imprime o efeito de real: a sensação - no ouvinte - de naturalidade, de que aquelas palavras só podem ser ditas (entoadas) da forma ouvida. O cancionista dá sentido a sons, ritmos, sentimentos e experiências que estão "soltas" no mundo.
Cantar é sempre cantar a vida: afirmar a existência de quem canta. O sujeito de "Ele me lê", de Ana Cláudia Lomelino, ao apontar o gesto do outro - "ele me lê" - está chamando atenção para a surpresa de ser lido pelo outro.
Guardada no disco Tono (2010), o verso "Ele me lê" mais parece uma palavra única - êlimilê - vinda de alguma língua afro: nagô, iorubá, bantu. Para isso, age o modo de pronúncia de Ana: gerador de um delicioso palíndromo. Além disso a melodia mântrica, ampliada pela repetição ad infinitum do verso-título, a conjunção dos sons /l/ e /m/ e o som palindromático reforçam a gestualidade ritual da canção.
O sujeito parece aprofundar-se mais e melhor em si, a cada nova repetição: circularidade cartática. Isso, aliado ao som da banda Tono, que produz uma ciranda encantatória entre sintetizadores e percussão, faz de "Ele me lê" uma bela espiral de fumaça sonora.
A certa altura, o verso que até então vinha se dobrando para dentro de si desdobra-se para fora e entra o coro: "Ele te lê". Eis o ápice da vontade do sujeito, o êxtase ritualístico: o reconhecimento daquilo que ele havia dito.
Ana Claudia Lomelino é a abelhinha que faz zum-zum no mel: engendra o sujeito da canção na voz. Voz que dá espaço ao som instrumental quando a mensagem é restaurada: agora não é mais "ele" que lê o sujeito, há uma terceira personagem - o coro - que ouve, lê e canta (assina) o que o sujeito cantou: "ele me lê".

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Ele me lê
(Ana Cláudia Lomelino)

Ele me lê ele me lê ele me lê
Ele te lê ele te lê

Ele te lê

10 fevereiro 2011

Cada voz

O sujeito de "Cada voz", de Tulipa Ruiz, faz um convite ao ouvinte: "tire sua fala da garganta e deixa ela passar por sua guéla e transbordar da boca". Ou seja, o sujeito cantor convida o ouvinte ao canto: à se distinguir entre tantas vozes.
Tudo no universo criado pelo sujeito da canção parece conspirar para que o ouvinte cante - "a orquestra já tocou e o maestro até se despediu". Mais do que um ato artístico, o canto é tematizado como um transbordamento do ser: cantar, aqui, é colocar para fora todas as vozes que perturbam o indivíduo.
Guardada no disco Efêmera (2010), "Cada voz" instiga o ouvinte destinatário da canção a ouvir sua própria singularidade, a construir um canto para si, afirmando-se como cantor das próprias venturas.
O sujeito cantor quer o ouvinte livre, consciente-de-si e capaz de impor a voz sobre as outras inúmeras vozes que ecoam pela cidade. Cada voz tem seu valor - canta algo que vai de si para si, sustentando no mundo quem canta.
Fica a cargo do ouvinte sair da zona de conforto do personagem cantado e tornar-se cantante: sujeito e objeto da canção, afinal "todos querem ver você cantar", querem saber qual é a sua posição na roda viva, no "itinerário profano da existência", na bela expressão de Paul Zumthor.
É preciso saber de onde esta voz emana, o que ela escamoteia, quais são seus berros e silêncios. Quais são as figurações de vida que ela engendra. E o porque dela ser "cada", única e sozinha, apesar das companhias sonoras ensurdecedoras do mundo.
Toda voz precisa falar, personalizar-se, fazer-se presença física - calor - e ser ouvida. Eis o eco almejado pelo sujeito de "Cada voz"; eis a esperança de reciprocidade que lhe mantém o canto, a canção.

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Cada voz
(Tulipa Ruiz)

Tire sua fala da garganta
E deixa ela passar por sua guéla
E transbordar da boca
Deixa solto no ar
Toda essa voz que tá ai dentro deixa ela falar
Você pode dar um berro quem sabe não pinta um eco pra te acompanhar
Cada voz tem um tom
Cada vez tem um som

A orquestra já tocou
E o maestro até se despediu
Todos querem ver você cantar

03 fevereiro 2011

Outra canção tristonha

O sujeito de "Outra canção tristonha", de Thiago Pethit, começa a canção fazendo uma promessa: "Dessa vez eu vou tentar sorrir / Nem que seja só pra constatar que eu não consegui". A promessa é cumprida ao longo da tristíssima canção: há um tênue traço (feito a giz) de esperança atravessando a tristeza da separação.
A singularidade de "Outra canção tristonha", entre tantas canções tristonhas que ouvimos nestes tempos de identidades fluidas e de amores líquidos, está no lugar exato em que a canção confessa seu empenho e fracasso.
Metacanção, "Outra canção tristonha" investiga suas próprias filigranas, desdobra-se para dentro, percorre as fibras sonoras que lhe constituem. Letra e melodia se equilibram: cordas, piano e percussão trabalham juntos para complexificar o estado do sujeito, da voz que canta.
Guardada no disco Berlim, Texas (2010), a canção ensaia um movimento de análise e exposição dos motivos que levam o indivíduo contemporâneo a ainda querer (e precisar) cantar. Se de Berlim a Texas tudo está cartografado e, apesar das promessas de moderna felicidade, há tanta dor fotografada, por que (e para que) cantar?
Sentimental demais, o sujeito se responde apontando a vitalidade, a urgência e a necessidade da canção. Mesmo tristonhamente, cantando o sujeito manda a tristeza embora e "se acaso um estranho vier perguntar / Eu finjo que engasguei que engoli o ar". Cantar é fingir, é dar um drible na dor.
Cantando a despedida naquela estação, naquele aeroporto, o sujeito sustenta o encontro: mantém o outro presente, aqui. A lógica geográfica que separa Berlim e Texas é suspendida e os espaços são deslocados: "E mesmo assim você não estará pra ver eu tentar sorrir assim sem jeito em meio à multidão", diz o sujeito triste e consolado no canto que entoa.

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Outra canção tristonha
(Thiago Pethit)

Dessa vez eu vou tentar sorrir
Nem que seja só pra constatar que eu não consegui
E mesmo assim você não estará pra ver
Eu tentar sorrir assim sem jeito em meio à multidão
Cada vez mais longe você vai ficar de saber
Se há motivos pra eu cantar
Ou só pra fazer
Outra canção tristonha, sentimental, sobre você

Se acaso um estranho vier perguntar
Eu finjo que engasguei que engoli o ar
Tiro o pensamento fora de órbita
Invento um circo ou outro lugar
Pois quando for a hora de eu me despedir
Quando o avião partir
Eu vou saber