Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
29 dezembro 2024
Mutações do sensível
MUTAÇÕES DO SENSÍVEL é um de meus livros de cabeceira, ou seja, não sai da mesa de trabalho. Aqui o professor Paulo Tarso Cabral de Medeiros apresenta e defende interpretações em torno das questões de rock, rebeldia e mpb no contexto pós-1968, quando a canção popular precisava driblar a censura da ditadura militar com inventividade, oclusão proposital da metáfora e pulsão de vida; quando o cantor de rádio incorporou o ethos de poeta; quando "o lixo da sociedade industrial era o luxo santificado pelos hippies". Foi em MUTAÇÕES DO SENSÍVEL que li pela primeira vez o diagnóstico feito por Allen Ginsberg: “a poesia no sentido tradicional acabou. Ninguém se senta mais na poltrona da sala de estar para ler. O Rock é a nova poesia, com os Beatles de 'I am a Walrus' e as letras de Bob Dylan. É um retorno à poesia dos valores menestréis". As interpretações ensaísticas de Paulo estão calcadas em pesquisa, leitura e crítica de quem ouve com ouvidos abertos a produção musical da contracultura brasileira de Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. "O ser do poeta liga-se tenuamente aos próprios adjuntos, no colo mesmo da indeterminação. Por isto, lugar e tempo são distribuídos segundo o arbítrio e as livres-associações que o inconsciente - libertado da linearidade e da máscara do ego - deixa corporificar", lemos a certa altura do livro. Nesse contexto, o palco é extensão da vida, da rua, “lugar de festa, símbolo de contestação e templo de oração, investigação e autoconhecimento”, escreve o professor. Essa sensibilidade nova, “este conjunto de lutas, da qual a canção que aglutina os motes da contracultura participa, obteve impulso criador suficiente para motivar o homem urbano e ocidental a reincetar novas viagens, reavaliar formas de luta e inventar um jeito novo e mais contemporâneo de tratar as questões urgentes, incorporando o deslizamento do solo contemporâneo – que assim deixa de estarrecer e petrificar-se numa tradição”. Isso move artistas e o autor de MUTAÇÕES DO SENSÍVEL.
08 dezembro 2024
It's a long way: o exílio em Caetano Veloso
IT’S A LONG WAY: O EXÍLIO EM CAETANO VELOSO é livro que traduz os procedimentos usados pelo tropicalista cantor da “Alegria, alegria” nacional para verter em canção um dos momentos mais trágicos do Brasil, seja no plano individual, seja na projeção coletiva. Isso não é pouco! Tratando de tema tão delicado, há o risco de cair no psicologismo que interdita a leitura crítica. Longe disso, com trabalho de pesquisa irretocável, Márcia Fráguas ilumina o tema para quem queira pensar a obra de Caetano e o estado de coisas do país sob o regime militar (essa sombra que não deixa de nos assombrar). Márcia ensaia com e demonstra como o trauma anima as vozes das canções de três discos – 1969, 1971 e 1972. A autora demonstra que a ambiguidade dos afetos, a competência com que o cancionista escapa das vias normatizadas e o desejo de viver à deriva são dispositivos estéticos e biografemas indispensáveis para a compreensão da obra desse intérprete do Brasil. A autora acessa a maneira singular de sujeitos cancionais dizerem em inglês “From the stern to the bow / Oh, my boat is empty / Yes, my heart is empty / From the role to the low”, “I’m lost in my old own green light”, “I’m as sure of the past as / I’m certain about tomorrow”, “alone in that same night / I cried and cried again; e maneja uma constelação de significantes a fim de reapresentar com olhos e ouvidos livres as metáforas náuticas e os temas noturnos dos três discos. É função da crítica reapresenta como novidade aquilo para o qual estamos surdos de tanto ouvir. Ao final da leitura do livro de Márcia Fráguas fica evidente que não podemos mais escutar esses discos do mesmo modo.