Edimilson de Almeida Pereira é poeta cuja obra tem minha atenção desde o primeiro poema lido. A cada livro, a cada poema, o rigor e o frescor da linguagem manejada por Edimilson mais se revela para mim enquanto concentrações de belezas cujas singularidades se presentificam em novidade e informação. "Os cães que fui me desconhecem. / Um tigre azul, / outro pintado - indeclináveis na língua", lemos no poema "O homem", do livro O SOM VERTEBRADO. Aqui a palavra falada é fixada sem prejuízo do sonoro. Se em Iniciação na cultura literária medieval, Segismundo Spina observa que "proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à melodia musical, surge então o poeta; e a fase do trovador e do troveiro entra em declínio. Há agora uma especialização de funções: o poeta compõe a letra, ficando a cargo do músico a melodia. A poesia deixa de ser cantada para se tornar cantável", Edimilson reencontra a ancestralidade do poético na voz e no corpo presente de Milton Nascimento, nublando as fronteiras do dito, do escrito. O que temos diante dos olhos são cantos que acionam nossas memórias sonoras. Isso restitui o caráter coletivizante, do canto coral que em algum momento da nossa história se perdeu, foi desperdiçado, ou recalcado: "há um deserto entre as begônias", escreve Edimilson. "Não é pelo que se perdeu que se canta, Camões?", pergunta. Em O SOM VERTEBRADO Edimilson totemiza leituras, audições, vivências afirmando que "O cerco às ideais tem aparatos / em Minas / ou em qualquer estado"
Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
30 abril 2023
O som vertebrado
Edimilson de Almeida Pereira é poeta cuja obra tem minha atenção desde o primeiro poema lido. A cada livro, a cada poema, o rigor e o frescor da linguagem manejada por Edimilson mais se revela para mim enquanto concentrações de belezas cujas singularidades se presentificam em novidade e informação. "Os cães que fui me desconhecem. / Um tigre azul, / outro pintado - indeclináveis na língua", lemos no poema "O homem", do livro O SOM VERTEBRADO. Aqui a palavra falada é fixada sem prejuízo do sonoro. Se em Iniciação na cultura literária medieval, Segismundo Spina observa que "proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à melodia musical, surge então o poeta; e a fase do trovador e do troveiro entra em declínio. Há agora uma especialização de funções: o poeta compõe a letra, ficando a cargo do músico a melodia. A poesia deixa de ser cantada para se tornar cantável", Edimilson reencontra a ancestralidade do poético na voz e no corpo presente de Milton Nascimento, nublando as fronteiras do dito, do escrito. O que temos diante dos olhos são cantos que acionam nossas memórias sonoras. Isso restitui o caráter coletivizante, do canto coral que em algum momento da nossa história se perdeu, foi desperdiçado, ou recalcado: "há um deserto entre as begônias", escreve Edimilson. "Não é pelo que se perdeu que se canta, Camões?", pergunta. Em O SOM VERTEBRADO Edimilson totemiza leituras, audições, vivências afirmando que "O cerco às ideais tem aparatos / em Minas / ou em qualquer estado"
23 abril 2023
Caetano Veloso 50:500 - versos y versiones 1963-2012
Evangelina Maffei é a maior arquivista daquilo que sai sobre Caetano Veloso na imprensa. Não há como fazer pesquisa da obra do cancionista nascido no cosmopolita recôncavo baiano sem consultar o arquivo caetanoendetalle mantido pela organizadora no blogspot. Lançado há 10 anos, o livro CAETANO VELOSO 50:500, VERSOS Y VERSIONES 1963-2012 dá conta de compilar o trabalho primoroso de Evangelina. Cada canção lançada pelo artista recebe aqui um registro com data, disco e intérprete. Além de citações breves das letras. TODAS as letras de Caetano estão referidas aqui. O livro transita entre o catálogo, o almanaque, o dicionário e a curadoria inspiradora de Evangelina. Natural e moradora de Buenos Aires, a autora de CAETANO VELOSO 50:500, VERSOS Y VERSIONES 1963-2012 "se dedica a la investigación centrada en la música popular". O "se dedica" não é retórica vazia. Evangelina Maffei realiza e entrega à memória de nossa canção popular "más de 3.000 grabaciones en portugués y adaptaciones en español, catalán, alemán, finlandés, francés, inglés, italiano, japonés y sueco". Tudo feito pelo puro e simples sabor do gesto de ouvir canção popular brasileira, essa linguagem que se espraia pelo mundo como um vento caymmiano. Relicário imenso do amor à canção, o livro CAETANO VELOSO 50:500, VERSOS Y VERSIONES 1963-2012 está fazendo 10 anos e isso merece um registro e um agradecimento à autora. Que Evangelina tome esse registro como um beijo de gratidão.
16 abril 2023
Aurora: memórias e delírios de uma mulher da vida
AURORA: MEMÓRIAS E DELÍRIOS DE UMA MULHER DA VIDA registra a ambiguidade "da vida" no título do livro e da existência de Aurora Cursino. Quando ganhei o livro eu tinha uma vaga ideia de quem foi Aurora Cursino. Prostituta até ser internada no Complexo Psiquiátrico do Juquery, em 1944, Aurora finalmente tem sua obra e sua biografia guardadas com a atenção que a artista merece. O livro de Silvana Jeha e Joel Birman dá conta de transitar entre história, psicanálise, arte e literatura. É um livro de referência sobre como manejar tais disciplinas. E a interdisciplinaridade indica a potência da obra de uma artista que se inscreveu na pintura, experimentando eus no precário - sobras de papel-cartão e refugo do material são a base para expor o par sexo e violência - experimentado sob o jugo do controle patriarcal. "Os quadros dela são basicamente um ataque do patriarcado à mulher" e "Tentamos interpretar seus gritos e sussurros pictográficos como instrumentistas o fazem com uma partitura, com alguma liberdade e alguma lealdade à obra que Aurora produziu como interna do Juquery na década de 1950", escrevem Jeha e Birman. Tentaram e conseguiram. O que temos em mãos é um trabalho de arqueografia que nos dá conta de informar, pela voz da mulher prostituída, por exemplo, a vida no Mangue - espaço que seduziu artistas, de Vinicius de Moraes a Lasar Segall, passando pelo Oswald de Andrade de "O santeiro do mangue", no início do século XX. Como ser moderno quando ainda subjuga-se às mulheres o metro do homem? Aliás, foi Luciana (@illustrallu), que está desenvolvendo pesquisa de mestrado sobre o Santeiro, quem me deu o livro. Interessante pensar que quem primeiro reconheceu arte na obra de Cursino, artista que escreveu o corpo e pintou a existência, foi Patrícia Galvão, a Pagu. AURORA: MEMÓRIAS E DELÍRIOS DE UMA MULHER DA VIDA é um livro contundente e que apresenta uma mulher artista que antecipou muito do que anos mais tarde chamamos de "arte feminista"; e que soube escrever através e inclusive atravessada pela estetização da vida como forma de sobrevivência.
09 abril 2023
Futuro ancestral
No "Manifesto da Poesia Pau Brasil", Oswald de Andrade anotou que "Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola". Esse aforismo ilumina a leitura de FUTURO ANCESTRAL. Que luxo ter Ailton Krenak pensando e re-presentificando esse Brasil que (ainda) temos: "Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil", como também escreveu Oswald. Organizado por Rita Carelli, mais do que um livro de alerta, ou apocalíptico, FUTURO ANCESTRAL é um livro de memória, de lembrança do que temos, mas que, submerge no excesso da vida pretensamente moderna (pra quem?). O pensamento de um "Estado plurinacional" defendido por Krenak é insurgente porque vai no núcleo duro do senso comum. O que nos leva a lembrar dos versos de Caetano Veloso quando canta que um índio virá "E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio". É essa obviedade obnubilada pelo horror do progresso vazio que Krenak nos revela. "(...) Mas a verdade é que estamos vivendo projeções de futuros muito improváveis, embora continuemos preferindo essa mentira ao presente", diz o "filósofo originário", assim nomeado por Muniz Sodré na orelha de FUTURO ANCESTRAL.
02 abril 2023
Guerreira
No
livro em que analisa o disco GUERREIRA Giovanna Dealtry manipula o
adjetivo-título a fim de apresentar a voz que canta e a voz que vive por
trás da voz que canta: Clara Nunes, cantora que assumiu na vida fora
dos palcos gestos que a inscreveram na história de nossa canção popular
como a tal mineira, criada no samba, filha de Ogum com Iansã, mulher
guerreira. Note-se, numa cultura e sociedade machista e misógina, ser
"guerreira" é um emblema que amalgama o veneno e o remédio de toda
mulher. O canto de Clara flexiona essa destinação. Nesse sentido,
"Clara, aqui, não se fixa, mas desloca-se constantemente entre a
profusão de elementos que compõem sua vida pessoal e sua carreira",
escreve Giovanna. Para a autora, na obra de Clara "as diferenças não
desaparecem, não são subtraídas, mas somam-se em um todo complexo,
sempre mutável e, por isso mesmo, vivo e potente". Sendo intérprete,
Clara Nunes coassinou na voz e no corpo as canções de compositores de
diversas expressões, mas mais evidentemente o samba, esse ethos em que
nossos tabus são totemizados. GUERREIRA é disco, é adjetivo e é livro,
verte-se em significante da cantora que, "no auge de seu domínio vocal e
interpretativo", cantou e viveu os versos "Dentro do samba eu nasci /
Me criei, me converti / E ninguém vai tombar a minha bandeira". Bandeira
da fé na festa que Giovanna Dealtry tão bem analisa e nos re-apresenta.