26 março 2023

Forças e formas

 

A segunda edição do livro FORÇAS E FORMAS aspectos da poesia brasileira contemporânea (dos anos 70 aos 90) era bastante aguardada. (Minha cópia mimeografada da primeira edição está em frangalhos). "Trata-se de um livro que quer mapear a produção poética de um determinado período", escreve o autor. Quem acompanha o trabalho de Wilberth Salgueiro, seja nas incontornáveis colunas em que lê poesia no jornal Rascunho, seja na sua produção poética, perspicazmente metaliterária, sabe que o livro apresenta bem mais, ou, melhor, aprofunda-se no objetivo e analise poemas. FORÇAS E FORMAS lê (e isso é cada dia mais raro, note-se) poemas e poéticas diversos e apresenta uma tese para a defesa da complementariedade desses poemas e poéticas. Se agora, no Brasil de 2023, estamos tão atentos aos temas e à voz de quem fala por trás da voz do poema, Wilberth vai na fonte em que isso parece emergir, as décadas de 1970, 1980 e 1990, quando poetas começaram a fazer do próprio corpo o suporte prioritário da poesia, décadas em que, por motivações sócio-político-econômicas, a poesia (e texto é contexto) se fragmenta para tentar dar conta de tudo e todas as vozes. Eis, talvez, a principal importância do livro de Wilberth: apresentar esse nó entre representatividade e representação, ética e estética, força e forma no momento exato em que esse nó começou a apertar. A riqueza das fontes, a diversidade de poemas lidos e a coloquialidade da linguagem do livro FORÇAS E FORMAS são inspiradoras.

19 março 2023

A trama tropical

Roger Bastide chamou Marco zero, a obra oswaldiana mais alinhada ao comunismo de "tropicalismo literário". "Tropicalismo literário, não mais rural, como o antigo, com seu exotismo de plantas raras, o desterro desejado do meio, mas tropicalismo urbano, à imagem do de São Paulo, de que o livro quer ser pintura", escreveu Bastide. No livro A TRAMA TROPICAL, André Masseno mapeia e organiza as várias pontas da meada dessa pintura tropicalizante. Como e a partir de quem o óbvio (comum) e o exótico (diferente) foram e continuam sendo manipulados artística e politicamente para pintar o país? Para ensaiar a resposta, o autor investe numa historiografia constelar (capitular), ao selecionar e ler com máxima profundidade e diálogo as obras de Araripe Júnior, Sousândrade, Hélio Oiticica, José Agrippino de Paula, entre outros. Desse modo, o livro A TRAMA TROPICAL recupera e enfrenta a velha questão que a brisa do Brasil (ainda) beija e balança: apocalípticos, integrados, terceira margem, estrangeiros, locais, antropófagos, tropicalistas, luxo, lixo, alucinação, delírio, acúmulo, desprezo, agro, tech - o que quer, o que pode o nós brasileiro? Em tempos neoliberais, de fim do comum, da impossibilidade de comunidades, da subdivisão das identidades, o livro de André Masseno restitui artifícios e estetizações cruciais de nossa ética brasílica. Um livro fundamental para pensar a (contra)cultura daqui, dali, de todo lugar obnubilado pela incorreção, pela "contribuição milionária de todos os erros", como escreveu Oswald.

12 março 2023

Joaquim por João: Cardozo na poesia de Cabral

No final de "Soneto de vidro" o poeta Joaquim Cardozo escreve que "Lendo-o com precaução modesta e ágil / Cuidado tenham no seguir seus versos / Que este soneto é de matéria frágil". A advertência é importante, pois cada vez menos, posto que cada vez mais tecnizados, temos os olhos livres no ponto exato para iluminar (ler e deixar ser por ele iluminado) o poema por dentro. Mais facilmente seduzidos pelas temáticas da ordem do dia, esquecemos que poesia, sendo arte, é trabalho, é potencialização da linguagem e da língua. No livro JOAQUIM POR JOÃO: CARDOZO NA POESIA DE CABRAL o professor Éverton Barbosa Correia exerce o que em algum momento da história de nossa literatura já chamamos de "leitura de poesia", ou seja, ele faz do objeto artístico um bem comum. Para tanto, Éverton toma como objeto a obra de dois grandes - Cabral e Cardozo. "A universalização do objeto artístico não contradiz a particularidade histórica que o condiciona social ou editoralmente, mas, ao contrário, humaniza-o como parte do patrimônio cultural existente", escreve o autor. Nesse sentido, Éverton faz da própria "matéria frágil" do poema seu pressuposto crítico. A seriedade, o rigor, as associações, os diálogos e as aberturas estabelecidas no livro JOAQUIM POR JOÃO: CARDOZO NA POESIA DE CABRAL são preciosidades. Ao autor, como a todo bom crítico, interessam os procedimentos. O resultado é um trabalho singular e fundamental para a biblioteca de quem arvora-se a ler poemas.

05 março 2023

Quero-quero na várzea

 

Da primeira estrofe - "Generalistas enciclopédicos, / sentimentalistas autocongratulatórios, / peço licença, / tenho que ir ali." - ao derradeiro verso - "Mas ele está ali, tentando de novo" -, o livro QUERO-QUERO NA VÁRZEA, de Sylvio Fraga, captura e traduz deslocamentos, seja do eu à alteraridade (por vezes, incorporada ao eu), seja dos espaços comuns excessivamente mapeados na era do gps, mas muito pouco experimentados. Ver requer tempo e disposição: "Minha obra não faz barulho nenhum", diz o poema que dá título ao livro. QUERO-QUERO NA VÁRZEA é essa visão, esse tempo para a visão. Da falta de novidade imposta pelo contemporâneo, a bio do poeta inscreve-se na paternidade. "Famílias se formam mundo afora, a terra resiste". Ver Carolina preparando outra pessoa e ver o filho sendo instam o reencantamento de si, consequentemente, do lirismo. "Aqui em cima se vê tudo / e não se vê nada", lê-se. Se poesia ainda é um "tempo de viagem" roubado pela vida ordinária, ("Cadê a onça onipresente que ninguém nunca viu?", pergunta-se a voz do poema), a poesia de Sylvio quer reflorestar algumas regiões do banal, do óbvio, do simples, do comum. Lidos na disposição do livro, os poemas demonstram seu projeto de mirada, concisão e desautomatização do olhar de quem lê e vive agora.