Presente de diversas maneiras na obra cancional de Maria Bethânia, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, Adriana Capparelli, Leila Pinheiro a literatura de Clarice Lispector também trabalha com a recriação, o deslocamento do pensamento e do gênero literário. Cazuza e Roberto Frejat, por exemplo, ao compor "Que o Deus venha" (Declare guerra, 1986) usam significantes do livro Água viva (1973) - "Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha." (LISPECTOR, 1998, p. 55); significantes que, por sua vez, foram utilizados antes pela própria autora na crônica "Deus" (10 de fevereiro de 1968), guardada no livro A descoberta do mundo (1984): "Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais" (LISPECTOR, 1984,p. 91). "Sou inquieto, áspero / E desesperançado / Embora o amor dentro de mim eu tenha", canta Cazuza.
A certa altura do livro Água viva a voz lírica-narrativa anota que "No fundo de tudo há a aleluia. Este instante é. Você que me lê é" (LISPECTOR, 1998, p. 36). Eis o it do livro, sublimar o instante de correspondência entre quem fala/escreve e quem ouve/lê. "Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar. / O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua. / Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo. / O que te escrevo continua e estou enfeitiçada" (LISPECTOR, 1998, p. 95) são as últimas palavras do livro. Trecho, aliás, lido por Maria Bethânia no show Abraçar e agradecer (2015).
A certa altura do livro Água viva a voz lírica-narrativa anota que "No fundo de tudo há a aleluia. Este instante é. Você que me lê é" (LISPECTOR, 1998, p. 36). Eis o it do livro, sublimar o instante de correspondência entre quem fala/escreve e quem ouve/lê. "Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar. / O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua. / Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo. / O que te escrevo continua e estou enfeitiçada" (LISPECTOR, 1998, p. 95) são as últimas palavras do livro. Trecho, aliás, lido por Maria Bethânia no show Abraçar e agradecer (2015).
A palavra "instante" é uma das mais repetidas no livro, exatamente porque, pensada como conceito anti-logocêntrico, rompe com a compreensão catalogada, disciplinada, pré-concebida do ser no mundo. Já no segundo parágrafo de Água viva temos: "Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo" (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Ao analisar a desvocalização do logos e o consequente silenciamento das mulheres, Adriana Cavarero anota que "entendida como algo que sai da boca de alguém, a palavra, mais do que lugar da expressão, é o ponto de tensão entre a unicidade da voz e o sistema da linguagem" (CAVARERO, 2011, p. 30). Como sabemos, o patriarcalismo tem sérias dificuldades ao lidar com as unicidades, as alteridades e usa a linguagem para controlar e tiranizar. Parece-me que Água viva ao tentar apossar-se "do é da coisa" posiciona-se enquanto força contrária à dominação masculina. Não à toa o endereçamento da carta que a voz do livro finge escrever (rascunhar) é dado a um outro-homem.
Se para Ítalo Moriconi Água viva "pode ser lido na clave de um sublime feminino, associado à valorização dos atos sublimes de pintar/escrever" (2000, p. 720), a canção "Batendo no mundo" (Diurno, 2011), que Ava Rocha e Pedro Paulo Rocha compõem a partir do livro, é a transcriação de uma bio-feminina clariceana e que resiste ao império patriarcal: "Muita coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser 'bio'" (LISPECTOR, 1998, p. 35), escreve a voz lírica-narradora, na "busca da similaridade entre escrita e acontecimento" (MORICONI, 2000, p. 722). Ao contar-se ela rejeita o autocentramento, a autografia, o grafocentrismo que ao longo do tempo vem silenciando as mulheres. "Escrevo ao correr das palavras" (idem), lemos.
O gesto se assemelha ao da Ariana de Hilda Hilst (1974) que diz "Antes de ser mulher sou inteira poeta". Para se desviar da tirânica expectativa-correspondência masculina, ser mulher parece exigir uma inscrição mulher. Para Cixous urge não "criar uma escrita feminina, mas de deixar transparecer na escrita o que até hoje sempre foi proibido, ou seja, os efeitos da feminilidade" (apud CAVARERO, 2011, p. 171).
O trecho do livro de Clarice que Ava Rocha e Pedro Paulo Rocha selecionam e montam para a cantora vocalizar vem logo após a frase já citada: "Este instante é. Você que me lê é". O convite a quem ouve é evidente: seja comigo, pulse junto, esteja no ritmo - "Você que me lê que me ajude a nascer", escreve a voz do livro (LISPECTOR, 1998, p. 36). Enquanto no livro temos "Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante em uma frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo. Sou um coração batendo no mundo" (idem), Ava e Pedro recortam, montam e intervém (trocam o segundo "é" por "de"): "Cada instante é a impressão de que estou por nascer. Sou um coração batendo no mundo", delegando à vocoperformance e à melodia o trabalho de exibir a paisagem "bobulhante". A expressão "coração batendo" é repetida pelo menos sete vezes ao longo do livro. O título da canção, portanto, mimetiza essa insistência, essa experiência de ser: "estou improvisando", escreve a voz clariceana.
O trabalho executado na canção não é fácil. Ela mantem aquilo que Moriconi identificou em Água viva como sendo "assemblages [colagens] de fragmentos unificados por algum fio condutor" (MORICONI, 2000, p. 721). Na canção, o fio condutor é uma frase retirada do meio de um parágrafo: a quebra de fluxo e a frase seguinte são incorporadas à letra da canção. "Renuncio a ter um significado", "quero o inconcluso", "estou ouvindo agora uma música selvática", escreve a voz do livro. A respiração, as pausas, a mudança de ênfase silábica a cada repetição e os alongamentos vocálicos imprimem a "frescura frígida" clariceana à canção. A voz de Água viva é a voz da linguagem. Ao escolher um verso-frase potente de vida para vocalizar Ava Rocha restitui ao corpo da mulher o que anos de filosofia disciplinadora da linguagem roubou. "Só uma mulher / Sou um homem também // (...) // O que quer que seja / É e não é / Pode ser, de ser / O que se é / Seja homem, seja mulher", sugere Ava Rocha já na segunda canção do referido disco.
Ao analisar a desvocalização do logos e o consequente silenciamento das mulheres, Adriana Cavarero anota que "entendida como algo que sai da boca de alguém, a palavra, mais do que lugar da expressão, é o ponto de tensão entre a unicidade da voz e o sistema da linguagem" (CAVARERO, 2011, p. 30). Como sabemos, o patriarcalismo tem sérias dificuldades ao lidar com as unicidades, as alteridades e usa a linguagem para controlar e tiranizar. Parece-me que Água viva ao tentar apossar-se "do é da coisa" posiciona-se enquanto força contrária à dominação masculina. Não à toa o endereçamento da carta que a voz do livro finge escrever (rascunhar) é dado a um outro-homem.
Se para Ítalo Moriconi Água viva "pode ser lido na clave de um sublime feminino, associado à valorização dos atos sublimes de pintar/escrever" (2000, p. 720), a canção "Batendo no mundo" (Diurno, 2011), que Ava Rocha e Pedro Paulo Rocha compõem a partir do livro, é a transcriação de uma bio-feminina clariceana e que resiste ao império patriarcal: "Muita coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser 'bio'" (LISPECTOR, 1998, p. 35), escreve a voz lírica-narradora, na "busca da similaridade entre escrita e acontecimento" (MORICONI, 2000, p. 722). Ao contar-se ela rejeita o autocentramento, a autografia, o grafocentrismo que ao longo do tempo vem silenciando as mulheres. "Escrevo ao correr das palavras" (idem), lemos.
O gesto se assemelha ao da Ariana de Hilda Hilst (1974) que diz "Antes de ser mulher sou inteira poeta". Para se desviar da tirânica expectativa-correspondência masculina, ser mulher parece exigir uma inscrição mulher. Para Cixous urge não "criar uma escrita feminina, mas de deixar transparecer na escrita o que até hoje sempre foi proibido, ou seja, os efeitos da feminilidade" (apud CAVARERO, 2011, p. 171).
O trecho do livro de Clarice que Ava Rocha e Pedro Paulo Rocha selecionam e montam para a cantora vocalizar vem logo após a frase já citada: "Este instante é. Você que me lê é". O convite a quem ouve é evidente: seja comigo, pulse junto, esteja no ritmo - "Você que me lê que me ajude a nascer", escreve a voz do livro (LISPECTOR, 1998, p. 36). Enquanto no livro temos "Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante em uma frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo. Sou um coração batendo no mundo" (idem), Ava e Pedro recortam, montam e intervém (trocam o segundo "é" por "de"): "Cada instante é a impressão de que estou por nascer. Sou um coração batendo no mundo", delegando à vocoperformance e à melodia o trabalho de exibir a paisagem "bobulhante". A expressão "coração batendo" é repetida pelo menos sete vezes ao longo do livro. O título da canção, portanto, mimetiza essa insistência, essa experiência de ser: "estou improvisando", escreve a voz clariceana.
O trabalho executado na canção não é fácil. Ela mantem aquilo que Moriconi identificou em Água viva como sendo "assemblages [colagens] de fragmentos unificados por algum fio condutor" (MORICONI, 2000, p. 721). Na canção, o fio condutor é uma frase retirada do meio de um parágrafo: a quebra de fluxo e a frase seguinte são incorporadas à letra da canção. "Renuncio a ter um significado", "quero o inconcluso", "estou ouvindo agora uma música selvática", escreve a voz do livro. A respiração, as pausas, a mudança de ênfase silábica a cada repetição e os alongamentos vocálicos imprimem a "frescura frígida" clariceana à canção. A voz de Água viva é a voz da linguagem. Ao escolher um verso-frase potente de vida para vocalizar Ava Rocha restitui ao corpo da mulher o que anos de filosofia disciplinadora da linguagem roubou. "Só uma mulher / Sou um homem também // (...) // O que quer que seja / É e não é / Pode ser, de ser / O que se é / Seja homem, seja mulher", sugere Ava Rocha já na segunda canção do referido disco.
Sobre o uso da linguagem na obra de Lispector, Haroldo de Campos afirma que se trata de uma "literatura do significado", "levada à tensão conflitual com um referente volátil, a figura de indizibilidade, e mobilizando para tanto todo um sistema e equações metafóricas, instaurado a contrapelo do discurso lógico, mediante o qual são aproximadas ou contrastadas as regiões mais surpreendentes e imponderáveis do plano do conteúdo" (CAMPOS, 1992, p. 95).
"O preço da eliminação do caráter físico da voz é, em primeiro lugar, a eliminação do outro, ou melhor, dos outros" (CAVARERO, 2011, p. 65); e as mulheres sabem bem a consequência disso. Ao cantar as palavras do instante-já da linguagem Ava mostra compreender a angústia da voz clariceana que diz "escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio" (LISPECTOR, 1998, p. 12-13), ou "eu te escrevo com minha voz" (p. 40). Ava libera, porque presentifica no corpo físico, na garganta, na boca, a voz presa no livro.
"O preço da eliminação do caráter físico da voz é, em primeiro lugar, a eliminação do outro, ou melhor, dos outros" (CAVARERO, 2011, p. 65); e as mulheres sabem bem a consequência disso. Ao cantar as palavras do instante-já da linguagem Ava mostra compreender a angústia da voz clariceana que diz "escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio" (LISPECTOR, 1998, p. 12-13), ou "eu te escrevo com minha voz" (p. 40). Ava libera, porque presentifica no corpo físico, na garganta, na boca, a voz presa no livro.
Noutras palavras, Clarice e Ava trabalham com aquilo que Paul Zumthor compreendeu como sendo as "energias que foram reprimidas durante séculos no discurso social das sociedades ocidentais pelo curso hegemônico da escrita" (ZUMTHOR, 2014, p. 18). "Troca de aspirações" e "fruir o que existe" são gestos da voz de Água viva, gestos da linguagem que Clarice emula em sua obra. A voz de Ava Rocha responde a voz que pergunta "Sei que depois de me leres é difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-la sem tê-la decorado. E como decorar uma coisa que não tem história?" (LISPECTOR, 1993, p. 81). De fato, Ava Rocha não decora, pois as variações de acento mostram uma sujeita cancional que se experimenta enquanto se enuncia, se improvisa, nasce na voz.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & Outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Trad. Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
HILST, Hilda. "Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio". In: Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, [1974].
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MORICONI, Italo. A Hora da Estrela ou a Hora do Lixo de Clarice Lispector. In: ROCHA, João Cezar de Castro. Nenhum Brasil Existe: Pequena Enciclopédia. Rio de Janeiro: TopBooks, 2000. p. 719-727.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & Outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Trad. Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
HILST, Hilda. "Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio". In: Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, [1974].
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MORICONI, Italo. A Hora da Estrela ou a Hora do Lixo de Clarice Lispector. In: ROCHA, João Cezar de Castro. Nenhum Brasil Existe: Pequena Enciclopédia. Rio de Janeiro: TopBooks, 2000. p. 719-727.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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Batendo no mundo
(Ava Rocha / Pedro Paulo Rocha / Clarice Lispector)
Cada instante é a impressão
de que estou por nascer
Sou um coração batendo no mundo