30 outubro 2020

Coco de Pagu

"As musas ensinam o poeta a mentir". Precisamos entender essa sentença atribuída a Hesíodo (Teogonia, versos 27-28) de modo contextual e para além da contraposição verdade (positivo) versus mentira (negativo) de nossa cultura moderna. As Musas clássicas não se limitavam a afirmar, mas também a esquecer e desvelar o despercebido histórico. O saber das Musas conjugava coisas verdadeiras (real, cotidiano) e mentirosas (ficção, promessa de verdade).

A Musa cumpria um papel fundamental enquanto fonte da mensagem, da mania fonética inspiradora. Seja invocada por Homero, Hesíodo, Castro Alves, a Musa clássica (essa entidade subdivida em máscaras diversas) cantava o que viu, porque esteve presente ao acontecimento e conservava guardados os detalhes a serem contados ao poeta, já que este dispunha do tempo necessário à audição da narrativa musal. Algo que o homem comum não teria acesso, necessitando do relato parcial e incompleto do poeta. Não sendo a autora da história, as Musas forneciam os meios do gesto autoral ao poeta. 
Mas o poder das Musas esmoreceu na civilização da palavra escrita com o despertar da festejada consciência humana. Aliás, como lembra Luís Inácio Oliveira, "ao criar a sua história na cabana do porqueiro Eumeu, tramando ardilosamente a sua narrativa de ficção, Ulisses afina-se com o jogo ficcional das musas, as deusas cantoras guardiãs da memória épica, que, segundo nos descreve Hesíodo, podem tanto proclamar verdades como podem contar mentiras semelhantes aos fatos" (OLIVEIRA, 2008, p. 73-74). E Ulisses, como já afirmaram Adorno e Horkheimer, é o homem esclarecido, aquilo que o sujeito da escrita supõe ser. 
Sendo a atividade poética um esforço mnemônico, as Musas perderam o domínio da inspiração, já que, com a difusão do alfabeto, o poeta herda a potência do encanto, ou melhor, a persuasão passa a vir da retórica e suas finalidades notadamente políticas. De acordo com a professora Carlinda Fragale Pate Nunez, "os poetas se tornam, nas primícias do helenismo, os detentores dos poderes dessa sonoridade melogônica e cosmopoética. As Musas são seus avatares" (NUNEZ, 2011, p. 233). Se às Sereias, que em Homero eram seres canoros e bestiais, coube apenas o destino da bestialidade na Idade Média e Moderna, às Musas, nem tanto. Sereias e Musas são há um bom tempo apenas a mulher bonita que tenta e corrompe o homem. E só. O Romantismo está cheio dessas mulheres-musas. 
Onde, portanto, o lugar da musa modernista Patrícia Galvão (1910-1962)? Se ao poeta moderno restou o reencanto de um mundo abandonado pela Musa, é este religare à deidade clássica, em meados nos anos 1920 no Brasil, que a mulher, poeta, militante, bonita e jovem Pagu encarnava e Raul Bopp cantou em “Coco de Pagu”. A professora Eurídice Figueiredo anota que "aos 19 anos Pagu tornou-se coqueluche do grupo antropófago, suas performances nos eventos públicos ou privados no período causavam um grande impacto, conforme o depoimento de pessoas que assistiram às suas apresentações" (2020, p. 115). 
"Escrever é um desvio favorável ao esconderijo", escreveu Patrícia (2005, p. 52). A diferença de Pagu em relação à Musa clássica é essa: Patrícia sabia falar e, principalmente, escrever. Agora é a mulher-musa que não depende mais do poeta para se representar. Aquilo que silenciou a Musa clássica – o grafocentrismo – passa a servir de suporte para que também as mulheres falem de si e contra tudo que as querem manter caladas. O próprio fato de Patrícia Galvão usar texto escrito e performance vocal para apresentar sua obra é um bom exemplo deste contra-golpe. "Meu peito não é de silicone / Sou mais macho que muito homem", canta a Pagu da canção homônima de Rita Lee e Zélia Duncan (3001, 2000). 
Ainda para Eurídice, "o trágico de sua vida está no descompasso entre seu movimento de entrega e a incompreensão que encontrava, entre seu desejo de transformação da sociedade e a rejeição que essa rebeldia provocava" (p. 117). A professora destaca também "o conflito com a maternidade, o machismo, o uso do corpo da mulher militante para fins políticos, as viagens e as prisões" (p. 118) na militância comunista de Patrícia; sobre o que a própria escritora dissera: "Quando recuperei a minha liberdade, o Partido me condenou" (In: CAMPOS, 2014, p. 259). "Minha força não é bruta / Não sou freira, nem sou puta / Porque nem toda feiticeira é corcunda / Nem toda brasileira é bunda", continua a Pagu na voz de Rita. 
Antes da canção de Rita e Zélia, em que a sujeita lírica em primeira pessoa assume a voz da narrativa de sua presença – "Sou Pagu indignada no palanque" –, de viés, Tom Zé evoca a musa Pagu na canção "Parque Industrial", título do livro de maior repercussão de Patrícia (1933): "temos o sorriso engarrafado / Já vem pronto e tabelado / É somente requentar / E usar / Porque é made, made, made / Made in Brazil", cantou Tom Zé (Grande liquidação, 1968), no ápice da Tropicália, movimento que em alguma medida releu criticamente o nosso Modernismo e suas imagens cristalizadas. 
Mas quero comentar que por duas vezes (Alegria, 2008; e Antropophagia, 2014), Beatriz Azevedo registrou em canção "Coco de Pagu", o poema já mencionado de Raul Bopp. Aliás, o apelido musal Pagu é resultado de um erro do poeta. Bopp pensara que o sobrenome de Patrícia fosse "Goulart" e fez o jogo com as primeiras sílabas. O nome ficou. Por sua vez, a cantora Beatriz investe no ritmo próprio do coco, popular no Nordeste, já sugerido na métrica e no título do texto, para presentificar a musa cantada no poema. Poema, diga-se de passagem, lido por Patrícia em 5 de junho de 1929 no Teatro Municipal de São Paulo. 
No encarte do disco Alegria de Beatriz Azevedo a canção é apresentada como "devoração de Coco e Embolada com Patrícia Galvão. Devoração de Raul Bopp, poeta da amazônia. Devoração de Augusto de Campos que nos deu este poema de Bopp no seu Pagu vida-obra". De fato, o livro de Augusto continua sendo referência incontornável sobre a musa modernista. Lançado em 1982 e relançado em 2014, Pagu: vida-obra condensa de modo fragmentar os deslizamentos entre a mulher e a musa, entre Patrícia e Pagu. 
A boca é o eixo. Diferentemente da centralidade videocêntrica reforçada no poema de Bopp, poeta que viu a mulher-musa, deslumbrou-se com sua beleza física e foi capturado pelo olhar. Os signos no corpo do poema atestam isso: "Pagu tem os olhos moles / uns olhos de fazer doer", "Passa e me puxa com os olhos / provocantissimamente", "Toda a gente fica olhando / o seu corpinho de vai-e-vem". Em Bopp é o olhar sobre a musa o que se canta; em Beatriz, é o olhar da musa sobre si mesma o que engendra o cantar. "Não sou atriz, modelo, dançarina / Meu buraco é mais em cima", cantam, paralelamente, Rita e Zélia. 
Parafraseando Eric Havelock e suas reflexões sobre o processo de aprendizagem de escrita da musa, o que, concomitantemente, resulta no silenciamento da mulher, a canção de Zélia e Rita, bem como a canção de Beatriz Avezedo, revocalizam a potência feminina (e perigosa) que a Musa sempre representou e que é incorporada por Patrícia Galvão em Pagu. Incorporar, devorar, termos que se unem ao "autobiofagia", cunhado por Augusto de Campos, na tentativa de traduzir a musa que mesclara autobiografia, autoficção e invenção em sua obra-vida. "Eh Pagu eh! / Dói porque é bom de fazer doer", canta Beatriz. Se no poema do livro Pagu é uma alteridade, uma outra vista pelo poeta; na canção Patrícia parece olhar-se no espelho e mirar na dobra de sua existência: "Transformara-me nesta rocha vincada de golpes e de amarguras, destroçada e machucada, mas irredutível" (In: CAMPOS, 2014, p. 264). 
Raul Bopp fez mudanças no texto do poema algumas vezes até chegar à versão assentada no livro de Augusto de Campos. Importante lembrar que o texto como saiu pela primeira vez na revista Para Todos, em 1928, onde Di Cavalcanti fez um desenho de Pagu ao violão, fora cantado por Laura Suarez em ritmo de toada: "Pagu tem uns olhos mole / Olhos de não sei o que / Se a gente está perto dele / A alma começa a doer", canta Laura. Nesta versão, o autor de Cobra Norato parece investir nos mitos bíblico e amazônico para cantar a musa: "Você tem corpo de cobra / Onduladinho e indolente / Dum veneninho gostoso / Que dói na boca da gente". Reforça-se a imagem da mulher-musa-sereia perigosa.
 
 
 
Por sua vez, Beatriz Azevedo canta os versos conforme assentados no livro de Augusto de Campos. O poeta-organizador explica: "Texto definitivo do poema, tal como apareceu em livro, em Cobra Norato e Outros Poemas (Editora Dau al Set, Barcelona, 1954, pp. 104-105). A partir da Antologia Poética, de Bopp (Editora Leitura S.A., Rio de Janeiro, 1967), o poema passou a intitular-se apenas Coco". 
"Musa-mártir antropófaga", para Décio Pignatari; "musa trágica da Revolução", para Carlos Drummond de Andrade; Pagu é a voz por trás da voz de Beatriz, devorando a imagem-de-si criada pelo outro. A canção de Beatriz mostra que a musa aprendeu a ler para devorar o poeta. Allana Bogado Mota (2020) anota que o poema de Bopp "não passa de mais uma versão da sexualização de Patrícia" (p. 53). Para a pesquisadora "Patrícia recusa-se a ser silenciada – se nem as grades da prisão, entretanto, emudeceram a voz de Patrícia, tampouco o encarceramento das margens pôde fazê-lo. Falar de Pagu é falar de uma voz que recusou o silenciamento, ainda que muitos teóricos e críticos deliberassem por não mais escutá-la" (p. 65). 
A mania fonética que Pagu representa inspira Laura, Rita, Zélia, Beatriz. Inclusive na reflexão sobre os feminismos. Para Eurídice Figueiredo, “como Pagu abordava questões que afetavam, em especial, as mulheres operárias, não obteve a aprovação do Partido. Ironizando as feministas das altas classes, Pagu mostrava-se atenta aos problemas das mulheres do povo e, nesse sentido, podemos dizer que sua postura era feminista (dentro de uma perspectiva da interseccionalidade)” (2020, p. 119-120). 
Se as Musas clássicas ensinavam a mentir, Patrícia Galvão fez da sua persona ético-estética – a musa Pagu – a certeza da beleza de aprender a verdade, ou seja, a escrita (esta invenção masculina cujo objetivo fora o de silenciar as mulheres); e o sopro da verdade-mais-erro de ser e estar no mundo. 
 
CAMPOS, Augusto de. (Org.). Pagu: vida-obra.  [1982]. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FIGUEIREDO, Eurídice. Por uma crítica feminista. Porto Alegre, RS: Zouk, 2020.
 GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de Janeiro: Agir, 2005. 
MOTA, Allana Bogado. Do estético ao político: inscrições feministas na produção de Patrícia Galvão e Tarsila do Amaral. Dissertação de mestrado. UERJ, 2020. 
NUNEZ, Carlinda Fragale Pate. "Música e poesia na pauta das musas".  In: Terceira Margem: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, Rio de Janeiro, ano XV, n. 25, jul-dez, 2011. p. 233-257. 
OLIVEIRA, Luís Inácio. Do canto e do silêncio das sereias: um ensaio à luz da teoria da narração de Walter Benjamin. São Paulo: EDUCEduc, 2008.
 
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Coco de Pagu
(Raul Bopp / Beatriz Azevedo)

Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Coração pega a bater.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.

Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.