Desde que
Ulisses narrou o famoso canto das sereias na Odisseia, esses seres cantores
ocupam um espaço importante no conhecimento popular, nas artes e no pensamento
teórico. Sendo a musa a fonte da mensagem poética (por guardar o relato
absoluto da história a ser transmitido apenas ao poeta) e a sereia a portadora
do canto audível aos ouvidos humanos comuns, caberia perguntar qual o destino
das Sereias num mundo videocêntrico? Pergunta que se desdobra noutra: qual o
lugar do poeta (mímese das Sereias) hoje?
Em O livro dos seres imaginários Jorge
Luiz Borges anotou que: “Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu
primeiro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da Odisseia, não nos
diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem;
para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para
baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica),
'metade mulheres, metade peixes'. Não menos discutível é sua categoria; o
dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são
monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ponte ilha do poente, perto
da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em
Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o
geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que
periodicamente eram celebrados para honrar sua memória” (BORGES, 1981, p. 145).
Os mitos
aquáticos acompanham nossa história universal desde sempre. E têm no feminino
uma genealogia repleta de significados em torno da fecundidade. Filha de Gaia e
Urano, a titânide Tétis é a mais antiga representante da potência feminina das
águas. Do hierogamo com seu irmão Oceano nasceram três mil rios e as Oceânidas,
ninfas dos oceanos e mares. Tétis e Oceano constituíram, portanto, a parelha
cósmica – a união de Yin com Yang – e representam a origem da manifestação
visível da vida: a Fonte Divina. Para Homero, os deuses descendiam desse casal
arquetípico. Tétis é representada pelas áreas mais profundas do mar, das
fontes, dos lagos e das lagoas. Essas e outras arcaicas deusas-mães simbolizam
o logos feminino.
Da mesma
forma que Nanã, a orixá iorubá que forneceu a lama para a modelagem do ser
humano, Tétis promove a manifestação imanente do Deus transcendente.
Encarregado de fazer o mundo e o homem, Oxalá é socorrido por Nanã Burucu, que
oferece a ele uma porção de lama do fundo da lagoa onde vivia. Nanã é a lama sob as águas. Moldado por
Oxalá, a criatura caminhou após o sopro de Olorum. Morrer é retornar à natureza
de Nanã.
Na
tradição do mito, o canto das sereias afirma que alguém está cantando e sendo
cantado. "É um canto que fala dele mesmo. As Sereias dizem uma só coisa:
que estão cantando!", escreve Todorov (2003, p.85). A Sereia nos fornece
verbo, melodia e voz, restituindo a memória do útero materno (Odoiá, Iemanjá!).
O canto corresponde àquilo que queremos e precisamos ouvir. Por situar o
indivíduo no mundo, o canto revela a eficácia da arte do poeta. Como resistir a
tamanha força de atração? Não é à toa que as sereias tenham sido domesticadas.
Elas perderam a palavra. O aspecto narrativo foi eliminado. Do mito dos
pássaros narradores ao confinamento na fábula e na lenda da mortífera beleza da
mulher-peixe, restou-nos o grito de alerta das sirenes. O rabo de peixe e a
beleza física surgem na transformação do mito em lenda na Idade Média.
Criaturas híbridas, para o Cristianismo, elas significavam também a alma
dividida entre os dois mundos e o mal na sua ambiguidade: sedução e pecado.
A sereia
passa a ser sinônimo de mulher muito bonita, encantadora e fatal. Para Adriana
Cavarero: “A mudança de morada é crucial. A descida para as águas, isto é, a
metamorfose pisciforme é acompanhada pela sua transformação em mulheres
belíssimas. Tal processo corresponde, muito significativamente, à afirmação de
um dos modelos mais estereotipados do gênero feminino. Trata-se do padrão
segundo o qual, em sua função erótica de sedutora, a mulher surge antes de tudo
como corpo e como voz inarticulada” (CAVARERO, 2011, p. 132).
A autora
de Vozes plurais destaca que
"exaltada por uma voz que é pura voz, a sua corporalidade passa a dominar
uma cena em que nenhuma forma de logos chega a perturbar o estereótipo do
feminino" (CAVARERO, 2011, p. 133). Antes monstros barbudos, cujo poder de
sedução estava no canto (logos poético), agora, em um mundo videocêntrico, as
sereias mudas parecem seduzir antes pela beleza física. Segundo Cavarero,
"nenhum pintor soube olhar para o destino milenar da sereia mais que
Magritte" (p. 134), com o quadro The Collective Invention (1934) em que
representa a sereia que não canta. "Se o monstro é classicamente um
híbrido e se para desfrutá-lo é preciso renunciar a uma parte, que se renuncie
ao rosto" (idem). Amparado por uma filosofia surda, para a qual a palavra
escrita é definitiva, este gesto reforça a mudez do logos. "A sua boca de
peixe é muda. Não respira sequer: é um peixe voluptuoso, fora da água,
agonizante" (ibidem). E completa: “Serve apenas à excitação sexual do
necrófilo. Acima da cintura é um peixe, abaixo é uma mulher (...) a história do
imaginário que a fez bonita e lhe deu um aspecto sedutor, mesmo não ousando
declará-lo, queria exatamente isso: um corpo de mulher a ser possuído, um corpo
feminino para desfrute do homem, que nenhuma parte representa melhor do que o triângulo
escuro entre as pernas” (CAVARERO, 2011, p. 134).
Parece-me
ser esta eliminação da parte animal (logo, vocal) o que trata o poema
"Sereia", de Ana Martins Marques. "Melhor é tua metade / animal
// a parte humana sendo humana / sempre mente // só mesmo um peixe pode ser /
contente", diz o poema. Ao longo de nossa história, calar as sereias
implicou no emudecimento das mulheres, na manutenção do silêncio da culpada
pela queda do homem. Relacionadas à feitiçaria, as mulheres sempre ameaçaram a razão
masculina. O poema de Marques quer revisão e reparação histórica. "De nada
te serviriam / joelhos ou pés // o que és é também / o que não és // nada / é o
que fazes bem // metade do que sou / não sou também", escreve mais
adiante. Marques dialoga com "Traduzir-se uma parte / na outra parte / —
que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?", versos de Ferreira
Gullar no poema "Traduzir-se".
Note-se
que no livro de Ana o poema "Sereia" está entre dois poemas bastante
significativos para a compreensão de certa ontologia emudecida do sujeito:
"Centauro" ("Como um velho centauro / cuja parte humana /
sobrevivesse à parte animal / temos próteses, extensões / enfeites, móveis /
que nos sobrevivem"; e "Ícaro" ("Quando Ícaro / caiu / no
mar / a sereia que / primeiro / o encontrou / amou nele / o pássaro / ele amou
nela / o peixe"). São "palavras que não usamos / planos que já não
temos" o que interessa à poética de Ana.
Borges
anota que "o centauro é a criatura mais harmoniosa da zoologia
fantástica" (1985, p. 31). E que "no quinto livro de seu poema,
Lucrécio afirma a impossibilidade do centauro, porque a espécie equina alcança
sua maturidade antes que a humana e, aos três, o centauro seria um cavalo
adulto e uma criança balbuciante" (1985, p. 33). Não é exatamente esta
maturidade animal anterior à humana, o que, tendo sido silenciado na Sereia,
canta Ana? A revocalização de um logos pré-língua, o que a sereia busca em
Ícaro: asas de pássaros, mesmo falsas. Asas não domesticadas que fazem parte do
ser poético, daquilo que o leitor busca (ainda busca?): "Os restos de suas
asas desfeitas / foram dar na praia / entre embalagens / de plástico
preservativos / garrafas vazias latas / de cerveja", diz o poema
"Ícaro"; "a parte humana sendo humana / sempre mente // só mesmo
um peixe pode ser / contente", diz o poema "Sereia".
Centauro,
Sereia e Ícaro formam a tríade mítica - semelhanças poéticas - de O livro das semelhanças de Ana Martins
Marques (2015). No texto "Mistérios e encantos da canção", Monclair
Valverde escreve que: “Enquanto forma musical e formato midiático, a canção não
se restringe ao feliz casamento entre palavra e música: a voz, pela
singularidade de seu timbre, torna presente o corpo e o desempenho de alguém
real; a melodia, a seu modo e sem dizer nada, conta uma história envolvente,
quando não arrebatadora; o arranjo e a instrumentação datam e localizam o
acontecimento que se canta, conferindo concretude e familiaridade à ficção; as
palavras, enfim, formam o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são
anônimos e se desconhecem, mas se reconhece, enquanto falantes. Cada um desses
aspectos contribui para envolver e aproximar misteriosamente os ouvintes,
através da mediação proporcionada pela performance do cantor, mas o encanto das
canções resulta da simbiose entre a voz, o gesto, a melodia, o acompanhamento e
as palavras, que é viabilizada pela estrutura tonal de uma narrativa musical
compacta" (VALVERDE, 2008, p. 272-273).
É esta
presença do corpo todo que o poema "Sereia" reivindica. Corpo-todo
possível no carnaval. Pelo menos esta é a compreensão que Matheus Brant propõe
ao cantar o poema de Ana ao ritmo de uma (quase) marchinha no disco Assume que
gosta (2016). Quase marchinha porque o andamento é pouco eufórico, como conviria. Matheus se dedica na melodia desacelerada e tencionando /ser/ e
/fazer/, dança e reflexão, pagode e indie. Ao ouvinte fica a sensação de duas
canções sobrepostas.
Ao
convidar Juliana Perdigão para dividir os vocais da canção, Brant adensa esse
investimento no caráter híbrido do ser cantado: a Sereia, que é dois em um, é o
outro e é si. Semelhante ao centauro. Mas, no caso da Sereia, um ser híbrido
"com sal", marinho. As duas vozes dão conta de (re)contar o mito.
Assumir o que gosta move Ana, move Brant e Juliana. Criador do bloco de
carnaval Me beija que eu sou pagodeiro (BH), Matheus foca na concentração de
tensividade proposta nas palavras do poema. Ele canta, Perdigão canta. Os dois
cantam juntos, sobrepondo vozes e evocando um sujeito cancional híbrido,
erótico. Bem diferente do Ulisses "murcho para as coisas eróticas" em
Filóstrato.
Se o
carnaval é a fé na festa da inversão, conforme ensinou Bakhtin, suspenda-se a
mentira ordinária do cotidiano dos dias civis e cante a verdade estética:
assumir que gosta do canto sirênico - arcaico, primitivo, demasiado humano,
fecundo, promessa de felicidade. O sujeito cancional de Brant restitui um tempo
de conjunção entre ser e estar, ator e espectador, pensar e fazer, animal e
humana, folia e medo: um nós que a figura da Sereia una e ambígua representa
enquanto porta-voz do poético, do perigo do renascimento. O eu poético de Ana
familiariza-se com a Sereia, através da voz-convite de Matheus e Juliana para o
contato: "o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são anônimos e
se desconhecem, mas se reconhece, enquanto falantes", conforme lemos em Valverde.
Brant e Perdigão cantando juntos parodiam o próprio ser da Sereia. A canção é
um elogio à fórmula dois é um – "metade do que sou [ar?] / não sou também
[mar?]".
***
Sereia
(Ana Martins Marques / Matheus Brant)
Sereia
centauro
com sal
melhor é tua metade
animal
a parte humana sendo humana
sempre mente
só mesmo um peixe pode ser
contente
de nada te serviriam
joelhos ou pés
o que és é também
o que não és
nada
é o que fazes bem
metade do que sou
não sou também
Sereia
centauro
com sal
melhor é tua metade
animal
a parte humana sendo humana
sempre mente
só mesmo um peixe pode ser
contente
de nada te serviriam
joelhos ou pés
o que és é também
o que não és
nada
é o que fazes bem
metade do que sou
não sou também