31 dezembro 2018

Sons de 2018


Difícil listar, a canção popular brasileira está quentíssima! Mas, "Livre do amor", de Adriana Calcanhotto, gravada por Gal Costa, é das canções mais belas de 2018. Isso dito, eis os discos com os quais mais convivi neste ano cruel: 

Baco Exu do Blues - Bluesman
Elza Soares - Deus é mulher
Heavy baile - Carne de pescoço
Ava Rocha - Trança
Rodrigo Campos - 9 sambas
Thiago Amud - O cinema que o sol não apaga
Marcelo Cabral - Motor
Renato Braz - Canto guerreiro
Teto preto - Pedra preta
Rômulo Fróes - O disco das horas
Iza - Dona de mim
Marina Lima - Novas famílias

06 junho 2018

Deus é mulher

“Falta ‘sim’ nessa tua oração”, canta Elza Soares em “Credo”, canção de Douglas Germano a serviço do sim à vida dado pela cantora depois do trevoso A mulher do fim do mundo. Este ‘sim’ é esconjuro (via pinga e rapé tsunu), é convite ao convívio e é clareza do uso da voz banhada em luminosidade.
Elza Soares encerrou o disco de 2015 entoando os versos “Levo minha mãe comigo pois deu-me seu próprio ser” (“Comigo”, Romulo Fróes e Alberto Tassinari), deixando a senha para o que viria a ser – corpo e espírito – o disco Deus é mulher (2018): materno, madona, acolhedor. A persona vocoperformática de Elza Soares precisava ter “por bandeira um pedaço de sangue / onde flui a correnteza do canal do mangue” (“Coração do mar”, Oswald de Andrade e José Miguel Wisnik, 2015) para poder afirmar, além do emblemático título do recente disco, os versos de abertura: “Mil nações moldaram minha cara / Minha voz uso pra dizer o que se cala / Ser feliz no vão, no triz é força que me embala / O meu país é meu lugar de fala” (“O que se cala”, Douglas Germano). Versos que ecoam os bíblicos “Mil cairão ao teu lado, e dez mil, à tua direita, mas tu não serás atingido” (Salmos 91) e enchem o canto de Elza de verdade mítica. Mas tudo no melhor estilo canibal de quem “bebeu veneno e vai morrer de rir” (“Dura na queda”, Chico Buarque, 2002).
Os versos de Chico Buarque parecem significar (dar sentido) novamente a voz pré-pós-entre de Elza de Soares. Basta lembrar os versos que dizem que “para quem sabe olhar / a flor também é ferida aberta / e não se vê chorar”, para estabelecer o diálogo com os versos de “Dentro de cada um” (Luciano Mello e Pedro Loureiro): “A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio / A mulher de dentro de mim cansou de pretexto / A mulher de dentro de casa fugiu do seu texto”. Aqui a voz é acompanhada pela percussão de Ilú Obá de Min, associação paulistana que tem como base o trabalho com as culturas de matriz africana e afro-brasileira e a mulher. “A mulher é você / A mulher sou eu”, canta Elza da encruzilhada das lutas identitárias e da justiça social.
No atual contexto de disputas e afirmações narrativas, de revisão total do passado, que outra cantora pode dizer “o feminismo sou eu” e condensar legítima e tragicamente vozes silenciadas? Deusa de ser, promotora de sujeitos cancionais que afirmam o amor, Elza performatiza na voz artística o lugar de fala de quem existe para além (ou à margem) da norma. Mãe, na voz de Elza, Deus é a possibilidade de transcendência negada na vida ordinária: “Nosso eco se mistura na canção”.
Não há mais limites entre palco e rua, arte e vida. Centrar-se nesta dobra estética e ética – “Entre a boca de quem assopra e o nariz de quem recebe o tsunu” (“Exu nas escolas”, Kiko Dinucci e Edgar) – autoriza Elza Soares a ser emblema da multidão. Se entendemos multidão como o encontro de identidades, Elza é a entidade-deus que pode cantar “Já faz tempo que eu perdi a direção” (“Hienas na TV”, Kiko Dinucci e Clima) e “Eu não obedeço porque sou molhada / (…) / Eu vou pingar [como uma pomba da espírita santa] em quem até já me cuspiu” (“Banho”, Tulipa Ruiz).
E é nesse gesto de afirmação do contraditório, desse sim à vida, repito, – de “de repente anunciar a ilusão que se perdeu” (“Clareza”, Rodrigo Campos) e mesmo assim “levantar o sol” – que Deus é mulher. Ao mesmo tempo em que purifica, descarrega, aterra (seja com pinga, seja com tsunu) o ouvinte, denunciando a higienização histórica dos corpos e o embranquecimento cultural. Elza ergue o matriarcado na canção, no canto individual porque coletivo: “Nós não temos o mesmo sonho e opinião / Nosso eco se mistura na canção / Quero voz e quero o mesmo ar / Quero mesmo é incomodar / Tem a voz que diz que não, não pode ser / Mas eu digo sim, sim pro que eu quiser” (“Língua solta”, Alice Coutinho e Rômulo Froés). Elza Soares ressoa o diverso, o diferente, a alteridade, a outridade.
Sabemos que é difícil tratar da ideia de matriarcado e não pensar na ruptura antropofágica proposta por Oswald de Andrade. Mas no caso de Elza Soares o mito de tolerância racial e sexual está devidamente devorado. Se há na seletividade como arma crítica proposta pela revisão oswaldiana para a experiência do primitivo uma eliminação de determinadas diferenças, posto que só se devora o que interessa, em Elza Soares o preconceito não é abafado. Elza come Oswald. “Eu quero dar pra você / Mas eu não quero dizer / Você precisa saber ler”, canta em “Eu quero comer você” (Alice Coutinho e Romulo Fróes). Apontando, por sua vez, a propagada dificuldade de interpretação de texto na atualidade.
O matriarcado aqui é experimentado no corpo e na voz autorizada de Elza: “Enxáguo a nascente / Lavo a porra toda” (“Banho”). A mãe não é mais (apenas) a mãe terra “que teria acolhido amorosamente os viventes, os imigrados e os traficados” (Roberta Barros, Elogio ao toque, 2016, p. 55). A corporeidade (a vocoperformance) de Elza é a um tempo metáfora, diagnóstico e terapêutica do país. Metáfora orgânica do corpo de mulher negra, diga-se. Metáfora que, para desestabilizar a norma, exige um ouvinte que saiba ler. “Dura na queda”, “mulher do fim do mundo”, Elza agora convoca: “vamos juntas que tem muito pra fazer, vamos levantar o sol”. Diagnóstico do estado de coisas brasileiras, de “carne mais barata do mercado” (“A carne”, Marcelo Yuka, Seu Jorge, Wilson Cappellette) a “o meu país é meu lugar de fala”, “Se Jesus Cristo tivesse morrido nos dias de hoje com ética / Em toda casa, ao invés de uma cruz, teria uma cadeira elétrica”. E terapêutica: “Nosso país, nosso lugar de fala”; “Exu nas escolas”; “Eu vou pingar em quem até já me cuspiu”; “A mulher é você”. Eis a poética: “a coragem é língua solta e solução / (…) se tudo é perigoso, solta o ar”.
Em diálogo, as canções do disco compõem a teia polimultivocal que a Elza Soares, já devidamente entronizada na ancestralidade e na realeza, é. Os miasmas densos de A mulher do fim do mundo foram transvalorados: “o mundo [não] vai terminar num poço cheio de merda” (“Luz vermelha”, Kiko Dinucci e Clima, 2015). Claro, contanto que a mulher que há em cada um venha. “A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco”, canta. “E vai sair / De dentro de cada um / A mulher vai sair / E vai sair / De dentro de quem for / A mulher é você / Sou eu”.
Eis o ‘sim’ à vida, a esperança possível: que a mulher mítica e real que Elza (re)apresenta venha e ensine-nos a dizer o seu ‘sim’. O sim que muda a face da terra. Afinal, é preciso coragem e clareza: “Sim, digo sim pra quem diz não / E pra quem quiser ouvir, eu digo não / Não, digo não porque eles vêm / Eles vêm pra devorar meu coração” (“Hienas na TV”). Se urge dizer ‘sim’ à vida, é preciso dizer ‘não’ aos devoradores de existências.
Nessa economia estética, os versos de outrora “esse país vai deixando todo mundo preto e o cabelo esticado” (“A carne”) dialogam com a afirmação atual “A mulher é você” (“Dentro de cada um”), no sentido de perceber no diagnóstico a terapêutica, no tabu o totem, no veneno o remédio. “Exu te ama. E ele também está com fome. E as merendas foram desviadas novamente”.
O elemento vivencial direto propõe a expansão da clareza de consciência solar. Eis o elemento transgressivo: lugar de fala é lugar de diálogo, real, sem mascaramento, sem silenciamento de nenhum dos interlocutores. Elza propõe horizontalidade. E isso também distingue A mulher do fim do mundo de Deus é mulher. Enquanto o primeiro é diagnóstico cru, crítica social (quase) sem mediação metafórica, o segundo é centelha dourada a iluminar uma profusão de subjetividades. Marielle, presente! Matheusa, presente!
Das trevas à luz. Há luz na voz e nos acompanhamentos (frevo, funk, punk, samba) da Elza de 2018. Mais sugestão, menos grito: “Por que só gritar? / Por que nunca ouvir?”, pergunta. No jogo representacional, além do “eu” que fala por “nós”, há um “eu” que fala por “si”, expondo-se solar, luminoso. O matriarcado evocado e cantado por Elza Soares empodera subjetividades e corpos profanados pela tirania patriarcal messiânica: “Credo, credo / Sai pra lá com essa doutrinação / Credo, credo / Eu não quero o medo me dando sermão / Credo, credo / Falta sim nessa tua oração” (“Credo”, Douglas Germano). Mas faz isso sem impor uma epistemologia de verdade. Ao contrário, chama à reflexão.
Esse matriarcado restitui o lugar central dos encontros, do diálogo, do silêncio sem hierarquia. Elza entende isso ao perguntar: “Pra que separar? / Pra que desunir? / Por que só gritar? / Por que nunca ouvir? / Pra que enganar? / Pra que reprimir? / Por que humilhar e tanto mentir?” (“O que se cala”).
“Exu nas escolas” confirma esse projeto da deusa: “tomar de volta alcunha roubada de um deus iorubano”. “Exu nigeriano”. E o desejo se reafirma quando Edgar discursa: “Quebrar o tabu e os costumes frágeis das crenças limitantes, mesmo pisando firme em chão de giz”. E completa: “As escolas se transformaram em centros ecumênicos. Exu te ama e ele também está com fome. Porque as merendas foram desviadas novamente. Num país laico, temos a imagem de César na cédula e um ‘Deus seja louvado’”. Exu nas escolas é reparação histórica. Ainda tratando da educação dos sentidos, em “Credo” Elza diagnostica que “o amor é um deus que não cabe na religião”. E é este amor-sol que Elza anuncia e para o qual convoca e encoraja “Somos duas nós e todas nós / Vamos levantar o sol / Por nós, só nós / E o mundo inteiro pra gritar” (“Língua solta”).
E porque a história é circular, embora devesse ser também espiralada para o alto que incorpora o baixo, o centro e a margem, Elza termina o disco afirmando “Deus é mãe”, depois de cantar que “Deus há de ser fêmea / Deus há de ser fina / Deus há de ser linda” (“Deus há de ser”, Pedro Luís). E, assim, unida a todas as ciências femininas, essa máquina de ser Deus que o humano é irrompe no canto devorador da Elza Soares que anteriormente afirmara: “Não me venha com esse papo sobre a natureza / Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia” (“Um olho aberto”, Mariá Portugal).
Deus é amor. Deus é mulher. A mulher sou eu. Elza é Deus. Deus Elza se apresenta diante do ouvinte enunciando vozes que da margem forjaram o centro e devem ocupar a centralidade roubada através da afirmação da existência: entre dores e delícias, levantar o sol.