“Falta ‘sim’ nessa tua oração”, canta Elza Soares em “Credo”, canção de Douglas Germano a serviço do sim à vida dado pela cantora depois do trevoso A mulher do fim do mundo. Este ‘sim’ é esconjuro (via pinga e rapé tsunu), é convite ao convívio e é clareza do uso da voz banhada em luminosidade.
Elza Soares encerrou o disco de 2015 entoando os versos “Levo minha
mãe comigo pois deu-me seu próprio ser” (“Comigo”, Romulo Fróes e
Alberto Tassinari), deixando a senha para o que viria a ser – corpo e
espírito – o disco
Deus é mulher (2018): materno, madona,
acolhedor. A persona vocoperformática de Elza Soares precisava ter “por
bandeira um pedaço de sangue / onde flui a correnteza do canal do
mangue” (“Coração do mar”, Oswald de Andrade e José Miguel Wisnik, 2015)
para poder afirmar, além do emblemático título do recente disco, os
versos de abertura: “Mil nações moldaram minha cara / Minha voz uso pra
dizer o que se cala / Ser feliz no vão, no triz é força que me embala / O
meu país é meu lugar de fala” (“O que se cala”, Douglas Germano).
Versos que ecoam os bíblicos “Mil cairão ao teu lado, e dez mil, à tua
direita, mas tu não serás atingido” (Salmos 91) e enchem o canto de Elza
de verdade mítica. Mas tudo no melhor estilo canibal de quem “bebeu
veneno e vai morrer de rir” (“Dura na queda”, Chico Buarque, 2002).
Os versos de Chico Buarque parecem significar (dar sentido) novamente
a voz pré-pós-entre de Elza de Soares. Basta lembrar os versos que
dizem que “para quem sabe olhar / a flor também é ferida aberta / e não
se vê chorar”, para estabelecer o diálogo com os versos de “Dentro de
cada um” (Luciano Mello e Pedro Loureiro): “A mulher de dentro de cada
um não quer mais silêncio / A mulher de dentro de mim cansou de pretexto
/ A mulher de dentro de casa fugiu do seu texto”. Aqui a voz é
acompanhada pela percussão de Ilú Obá de Min, associação paulistana que
tem como base o trabalho com as culturas de matriz africana e
afro-brasileira e a mulher. “A mulher é você / A mulher sou eu”, canta
Elza da encruzilhada das lutas identitárias e da justiça social.
No atual contexto de disputas e afirmações narrativas, de revisão
total do passado, que outra cantora pode dizer “o feminismo sou eu” e
condensar legítima e tragicamente vozes silenciadas? Deusa de ser,
promotora de sujeitos cancionais que afirmam o amor, Elza performatiza
na voz artística o lugar de fala de quem existe para além (ou à margem)
da norma. Mãe, na voz de Elza, Deus é a possibilidade de transcendência
negada na vida ordinária: “Nosso eco se mistura na canção”.
Não há mais limites entre palco e rua, arte e vida. Centrar-se nesta
dobra estética e ética – “Entre a boca de quem assopra e o nariz de quem
recebe o tsunu” (“Exu nas escolas”, Kiko Dinucci e Edgar) – autoriza
Elza Soares a ser emblema da multidão. Se entendemos multidão como o
encontro de identidades, Elza é a entidade-deus que pode cantar “Já faz
tempo que eu perdi a direção” (“Hienas na TV”, Kiko Dinucci e Clima) e
“Eu não obedeço porque sou molhada / (…) / Eu vou pingar [como uma pomba
da espírita santa] em quem até já me cuspiu” (“Banho”, Tulipa Ruiz).
E é nesse gesto de afirmação do contraditório, desse sim à vida,
repito, – de “de repente anunciar a ilusão que se perdeu” (“Clareza”,
Rodrigo Campos) e mesmo assim “levantar o sol” – que Deus é mulher. Ao
mesmo tempo em que purifica, descarrega, aterra (seja com pinga, seja
com tsunu) o ouvinte, denunciando a higienização histórica dos corpos e o
embranquecimento cultural. Elza ergue o matriarcado na canção, no canto
individual porque coletivo: “Nós não temos o mesmo sonho e opinião /
Nosso eco se mistura na canção / Quero voz e quero o mesmo ar / Quero
mesmo é incomodar / Tem a voz que diz que não, não pode ser / Mas eu
digo sim, sim pro que eu quiser” (“Língua solta”, Alice Coutinho e
Rômulo Froés). Elza Soares ressoa o diverso, o diferente, a alteridade, a
outridade.
Sabemos que é difícil tratar da ideia de matriarcado e não pensar na
ruptura antropofágica proposta por Oswald de Andrade. Mas no caso de
Elza Soares o mito de tolerância racial e sexual está devidamente
devorado. Se há na seletividade como arma crítica proposta pela revisão
oswaldiana para a experiência do primitivo uma eliminação de
determinadas diferenças, posto que só se devora o que interessa, em Elza
Soares o preconceito não é abafado. Elza come Oswald. “Eu quero dar pra
você / Mas eu não quero dizer / Você precisa saber ler”, canta em “Eu
quero comer você” (Alice Coutinho e Romulo Fróes). Apontando, por sua
vez, a propagada dificuldade de interpretação de texto na atualidade.
O matriarcado aqui é experimentado no corpo e na voz autorizada de
Elza: “Enxáguo a nascente / Lavo a porra toda” (“Banho”). A mãe não é
mais (apenas) a mãe terra “que teria acolhido amorosamente os viventes,
os imigrados e os traficados” (Roberta Barros, Elogio ao toque,
2016, p. 55). A corporeidade (a vocoperformance) de Elza é a um tempo
metáfora, diagnóstico e terapêutica do país. Metáfora orgânica do corpo
de mulher negra, diga-se. Metáfora que, para desestabilizar a norma,
exige um ouvinte que saiba ler. “Dura na queda”, “mulher do fim do
mundo”, Elza agora convoca: “vamos juntas que tem muito pra fazer, vamos
levantar o sol”. Diagnóstico do estado de coisas brasileiras, de “carne
mais barata do mercado” (“A carne”, Marcelo Yuka, Seu Jorge, Wilson
Cappellette) a “o meu país é meu lugar de fala”, “Se Jesus Cristo
tivesse morrido nos dias de hoje com ética / Em toda casa, ao invés de
uma cruz, teria uma cadeira elétrica”. E terapêutica: “Nosso país, nosso
lugar de fala”; “Exu nas escolas”; “Eu vou pingar em quem até já me
cuspiu”; “A mulher é você”. Eis a poética: “a coragem é língua solta e
solução / (…) se tudo é perigoso, solta o ar”.
Em diálogo, as canções do disco compõem a teia polimultivocal que a
Elza Soares, já devidamente entronizada na ancestralidade e na realeza,
é. Os miasmas densos de A mulher do fim do mundo foram
transvalorados: “o mundo [não] vai terminar num poço cheio de merda”
(“Luz vermelha”, Kiko Dinucci e Clima, 2015). Claro, contanto que a
mulher que há em cada um venha. “A mulher de dentro da jaula prendeu seu
carrasco”, canta. “E vai sair / De dentro de cada um / A mulher vai
sair / E vai sair / De dentro de quem for / A mulher é você / Sou eu”.
Eis o ‘sim’ à vida, a esperança possível: que a mulher mítica e real
que Elza (re)apresenta venha e ensine-nos a dizer o seu ‘sim’. O sim que
muda a face da terra. Afinal, é preciso coragem e clareza: “Sim, digo
sim pra quem diz não / E pra quem quiser ouvir, eu digo não / Não, digo
não porque eles vêm / Eles vêm pra devorar meu coração” (“Hienas na
TV”). Se urge dizer ‘sim’ à vida, é preciso dizer ‘não’ aos devoradores
de existências.
Nessa economia estética, os versos de outrora “esse país vai deixando
todo mundo preto e o cabelo esticado” (“A carne”) dialogam com a
afirmação atual “A mulher é você” (“Dentro de cada um”), no sentido de
perceber no diagnóstico a terapêutica, no tabu o totem, no veneno o
remédio. “Exu te ama. E ele também está com fome. E as merendas foram desviadas novamente”.
O elemento vivencial direto propõe a expansão da clareza de
consciência solar. Eis o elemento transgressivo: lugar de fala é lugar
de diálogo, real, sem mascaramento, sem silenciamento de nenhum dos
interlocutores. Elza propõe horizontalidade. E isso também distingue A
mulher do fim do mundo de Deus é mulher. Enquanto o primeiro é
diagnóstico cru, crítica social (quase) sem mediação metafórica, o
segundo é centelha dourada a iluminar uma profusão de subjetividades.
Marielle, presente! Matheusa, presente!
Das trevas à luz. Há luz na voz e nos acompanhamentos (frevo, funk,
punk, samba) da Elza de 2018. Mais sugestão, menos grito: “Por que só
gritar? / Por que nunca ouvir?”, pergunta. No jogo representacional,
além do “eu” que fala por “nós”, há um “eu” que fala por “si”,
expondo-se solar, luminoso. O matriarcado evocado e cantado por Elza
Soares empodera subjetividades e corpos profanados pela tirania
patriarcal messiânica: “Credo, credo / Sai pra lá com essa doutrinação /
Credo, credo / Eu não quero o medo me dando sermão / Credo, credo /
Falta sim nessa tua oração” (“Credo”, Douglas Germano). Mas faz isso sem
impor uma epistemologia de verdade. Ao contrário, chama à reflexão.
Esse matriarcado restitui o lugar central dos encontros, do diálogo,
do silêncio sem hierarquia. Elza entende isso ao perguntar: “Pra que
separar? / Pra que desunir? / Por que só gritar? / Por que nunca ouvir? /
Pra que enganar? / Pra que reprimir? / Por que humilhar e tanto
mentir?” (“O que se cala”).
“Exu nas escolas” confirma esse projeto da deusa: “tomar de volta
alcunha roubada de um deus iorubano”. “Exu nigeriano”. E o desejo se
reafirma quando Edgar discursa: “Quebrar o tabu e os costumes frágeis
das crenças limitantes, mesmo pisando firme em chão de giz”. E completa:
“As escolas se transformaram em centros ecumênicos. Exu te ama e ele
também está com fome. Porque as merendas foram desviadas novamente. Num
país laico, temos a imagem de César na cédula e um ‘Deus seja louvado’”.
Exu nas escolas é reparação histórica. Ainda tratando da educação dos
sentidos, em “Credo” Elza diagnostica que “o amor é um deus que não cabe
na religião”. E é este amor-sol que Elza anuncia e para o qual convoca e
encoraja “Somos duas nós e todas nós / Vamos levantar o sol / Por nós,
só nós / E o mundo inteiro pra gritar” (“Língua solta”).
E porque a história é circular, embora devesse ser também espiralada
para o alto que incorpora o baixo, o centro e a margem, Elza termina o
disco afirmando “Deus é mãe”, depois de cantar que “Deus há de ser fêmea
/ Deus há de ser fina / Deus há de ser linda” (“Deus há de ser”, Pedro
Luís). E, assim, unida a todas as ciências femininas, essa máquina de
ser Deus que o humano é irrompe no canto devorador da Elza Soares que
anteriormente afirmara: “Não me venha com esse papo sobre a natureza /
Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia” (“Um olho aberto”, Mariá
Portugal).
Deus é amor. Deus é mulher. A mulher sou eu. Elza é Deus. Deus Elza
se apresenta diante do ouvinte enunciando vozes que da margem forjaram o
centro e devem ocupar a centralidade roubada através da afirmação da
existência: entre dores e delícias, levantar o sol.