27 abril 2017

Sereia



"O canto das Sereias é um grau superior da poesia, da arte do poeta. (...) [Mas] de que trata o canto irresistível, que inevitavelmente faz morrerem os homens que o escutam, tamanha sua força de atração? É um canto que fala dele mesmo. As Sereias narram uma só coisa: que estão cantando!", anota Tzvetan Todorov em As estruturas narrativas (2006).
Ao longo do tempo, o aspecto narrativo do canto das Sereias foi eliminado. Obrigaram-nas a transmutar dos seres alados (sim, vários bestiários dão conta de que as Sereias já foram mulheres-pássaros) e narradores ao confinamento na fábula e na lenda da mortífera beleza da mulher-peixe. Ou seja, o rabo de peixe e a beleza física surgem na transformação do mito em lenda na Idade Média. Criaturas híbridas, para o Cristianismo, elas significavam também a alma dividida entre os dois mundos e o mal na sua ambiguidade: sedução e pecado.
A ênfase no aspecto físico em detrimento da voz impõe a ordem de calar as mulheres que cantam: belas por fora e terríveis por dentro. Por isso a transição da ave com busto de mulher barbada para a sereia pisciforme. Aglutinando o monstruoso e a ninfa, o canto da sereia foi reduzido ao grito de alerta das sirenes policiais, dos bombeiros e das ambulâncias.
É essa sereia domesticada que Roberto Carlos canta. Seja nos arranjos harmoniosos, seja na letra que diz "Pelas estradas por onde eu andei / Alguém igual eu nunca encontrei", seja na voz dominical do intérprete, a canção "Sereia" (2017) atende à demanda televisiva, calcada num "sereísmo" de mercado pretensamente inspirado nas lendas e cultura do estado do Pará.
A questão posta é: se era para homenagear a cultura paraense, melhor não seria colocar na trilha sonora da novela a "Morena sereia" (2001), de Wanderley Andrade? Embalado por uma melodia singular da região, pouco conformada com o mercado sudestino de música, tal e qual um Ulisses homérico que depois do contato com as Sereias tornou-se narrador de si, o sujeito da canção de Wanderley pede: "Me ensina tua canção / Estou enfeitiçado pelo seu encanto". Essa sereia que canta e transmite o cantar é pouco comum nas representações sirênicas atuais. Por isso merece destaque.
Por sua vez, mais dentro do previsto, a "Sereia" de Roberto Carlos reforça imagens cristalizadas e docilizadas da pulsão erótica. Lampejos de desejo, tais como "Eu quero olhar nos seus olhos / Sem duvidar do que faço" e "Eu quero estar com você / E não me importo o que é certo" se diluem em clichês de rimas fáceis - "A noite eu sonho dormindo / De dia eu sonho acordado / Que um dia, todos os dias / Eu estarei do seu lado" - e em arranjo conformista, apaziguador. Não há tensão. Tão pouco tesão. E quem acredita nesse desejo sem conflito? 
A sereia cantada por Roberto reforça o estereótipo da mulher a ser dominada – afônica – em detrimento da afirmação do ser indomável que as Sereias já representaram e que, de alguma forma, está presente no ritmo brega pop e na letra de Wanderley. 
Como sabemos, os mitemas que constituem o mito das Sereias não chegam para nós brasileiros apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Amazônia (Iara), África (Iemanjá) e Europa (Ondina) nos fornecem os cantos do mundo ancestral em permanente estado tensivo.
Hoje a sereia simplesmente adoça o mar salgado da vida do rei cantor. Todorov observou que "aquele que ouve o canto das Sereias não pode sobreviver: cantar significa viver, se ouvir é igual a morrer". E que "as Sereias fazem perecer aquele que as ouve porque, de outra forma, devem perecer elas próprias". Talvez seja por isso que um rei à escuta das Sereias será sempre um rei, ou seja, as regras não o deixarão perder-se, gesto primordial de quem as escuta.

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Sereia
(Roberto Carlos)

Quero nadar nas suas águas
Nas ondas dos seus cabelos
Sentir seu corpo molhado
A deslizar nos meus dedos
Eu quero olhar nos seus olhos
Sem duvidar do que faço
Quero beijar sua boca
E te prender nos meus braços

Sereia, te amo, te quero comigo
Pelas estradas por onde eu andei
Alguém igual eu nunca encontrei
Você é tudo que eu quero pra mim
Jamais amei assim

Eu quero estar com você
E não me importa o que é certo
Pois mesmo às vezes distante
Me sinto ainda mais perto
A noite eu sonho dormindo
De dia eu sonho acordado
Que um dia, todos os dias
Eu estarei do seu lado

14 abril 2017

O que é canção? Makely Ka



Makely Ka


- O que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar?
Canção é uma forma de expressão. Uma forma de pensamento. Talvez a forma mais adequada à língua portuguesa falada no Brasil. É uma adequação do pensamento ao nosso corpo. Uma maneira permeável de ligar a ideia ao movimento da língua. Nosso acento verbal encadeado em frases melódicas determina o jeito como nos colocamos diante do mundo. Traz nossa memória ancestral, dos cantos indígenas e dos lamentos africanos. Nossa canção vem da poesia galego-portuguesa, das cantigas de amigo, de amor, de escárnio e mal-dizer. Talvez seja uma das nossas grandes contribuições à humanidade. Um sistema de pensamento fragmentado. Tão disperso em pílulas melódicas de poucos minutos que sequer é considerado um sistema. Sequer é considerado um pensamento. Mas é nossa forma particular de encarar a complexidade das coisas. De traduzir em palavras a produção vertiginosa da vida.

- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Três referências importantes para o meu trabalho são o Guinga, pelo que ele representa para a canção brasileira hoje, sua concepção melódica e harmônica em diálogo com a tradição mais clássica da música brasileira, de Villa-Lobos a Tom Jobim; o Arto Lindsay pelo que ele representa de desconstrução, de estranhamento dessa mesma tradição, seu olhar estrangeiro, sua concepção de som e de ruído como componente da canção; Elomar pela reconstrução de uma tradução perdida, que remete à nossa herança ibérica, mas incorporando elementos brasileiros, da tradição nordestina, contemporânea.

06 abril 2017

Cancioneiro - Ferreira Gullar



A “letra de música”, sem a música, sem a voz, publicada num livro impresso, constitui um poema escrito? Essa questão amplia outra, mais ingênua, porém não menos marcada por aspectos e preconceitos estéticos, culturais e políticos, a saber: “letra de música é poesia?” 
Penso que o uso do termo “letra”, carregado do sentido impresso que ele tomou, anula a questão e interdita a resposta reflexiva, pois define de antemão o lugar que a poesia deve ocupar. Além de impor uma hierarquia entre as linguagens.
A aliança entre Música e Poesia remonta à origem da linguagem, ou seja, quando o canto está indissociável da poesia: dos aedos gregos à lírica trovadoresca; dos encantamentos indígenas aos orikis nagô-ioruba. O fato é que mesmo no império grafocêntrico, com a tipografia e o prestígio da palavra escrita, o verbo poético não renuncia a voz (ritmo, timbre, dicção) humana. Basta ler o clássico texto de T. S. Eliot – “As três vozes da poesia” – para perceber como poetas e críticos vêm tentando perceber essa relação. Aliás, a bibliografia neste campo é extensão.
Por outro lado, se a princípio todo poema pode ser musicado, a musicalização precisa atender a estruturas específicas ao acabamento da canção. Os procedimentos são outros. Por exemplo, caberá ao melodista buscar a "entoação embrionária" (expressão de Luiz Tatit) dos versos para, entendendo o ser e o tempo poético, criar a canção.
Seja como for, lido em concomitância à escuta das canções, o livro das letras de um cancionista é um bom exercício estético para profissionais da palavra escrita e da palavra cantada.
Tendo uma Canção Popular tão forte, a parceria entre letristas e poetas é marca de nossa cultura brasileira. Mesmo à margem de algumas resistências. É o caso do poeta Ferreira Gullar, autor da célebre letra (1976) de "Trenzinho do caipira”, parte integrante da peça Bachianas Brasileiras nº 2 (1933) de Heitor Villa-Lobos. Mas Gullar também assina outras peças de poemas musicados e de letras de canção.
Na esteira de alguns cancionistas que têm publicado suas letras para a leitura em livro impresso (ainda hoje suporte preferencial da poesia), a editora Topbooks lançou Cancioneiro – Ferreira Gullar (2015). A coleção das 13 letras ficou a cargo do professor Antonio Carlos Secchin e revela um Gullar talvez pouco conhecido no ambiente acadêmico que lhe é de costume. O próprio Secchin anota que “quando me predispus a reunir o cancioneiro de Ferreira Gullar, julgava que encontraria no máximo meia dúzia de letras. Para minha agradável surpresa, e contando com a prestimosa colaboração do gullariano Augusto Sérgio Bastos, foi possível chegar a treze”.
Cantados por Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Zé Ramalho, os versos do poeta Ferreira Gullar, parceiro de cancionistas como Sueli Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Fagner, são apresentados em versão manuscrita e digitada. Tal e qual as boas edições do cancioneiro da antiga poesia lírica provençal, por exemplo.
O critério de registrar unicamente “letras”, não “poemas musicados”, deixa de fora peças importantes – "Traduzir-se" (Fagner e Ferreira Gullar), "Bela bela" (Milton Nascimento e Ferreira Gullar) e "Poema Obsceno" (Ferreira Gullar e Moacyr Luz), entre outras. Ao mesmo tempo em que ilumina obras menos conhecidas como "Promessa de vida", com música de Murilo Alvarenga e interpretação de Gilliard (1986). Além das inéditas "Diferença" e "Menina passarinho", com música de Sueli Costa.
Nesse movimento de colocar em livro o que foi feito para a voz, a parceria entre Ferreira Gullar e Raimundo Fagner é reafirmada em quantidade. E fica evidente também que seja para a escuta, seja para a leitura, o rigor gullariano – sofisticação verbal e pesquisa rítmica – está presente. Ornado por 14 xilogravuras de Ciro Fernandes, o livro é objeto de arte importante para o acervo do colecionador, leitor, ouvinte de canção e de poesia.

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As letras

1. “Borbulhas de amor”. Vinil Pedras que cantam (1991). Música e letra: Juan Luis Guerra (“Burbujas de amor”), versão de Ferreira Gullar. Intérprete: Fagner.
2. “Canção do bicho”. Vinil Manhã de liberdade (1966). Música: Geni Marcondes e Denoy de Oliveira. Intérprete: Nara Leão.
3. “Contigo”. Vinil Palavra de amor (1983). Música: Fagner. Intérpretes: Fagner e Chico Buarque.
4. “Diferença”. Inédita. Música: Sueli Costa.
5. “Escuta, moça”. Vinil Íntimo (1984). Música e interpretação: Sueli Costa.
6. “Menina passarinho”. Inédita. Música: Sueli Costa.
7. “Menos a mim”. Vinil Pedras que cantam (1992). Música e interpretação: Fagner.
8. “Meu veneno”. Vinil Angelus (1993). Música e interpretação: Milton Nascimento.
9. “Onde andarás”. Vinil Caetano Veloso (1967). Música e interpretação: Caetano Veloso.
10. “Promessa de vida”. Vinil Gilliard (1986). Música: Murilo Alvarenga. Intérprete: Gilliard.
11. “Solução de vida”. CD Bebadosamba (1996). Música e interpretação: Paulinho da Viola.
12. “Te procuro lá”. Vinil Paralelo 30 (1978). Música e interpretação: Raul Ellwanger.
13. “Trenzinho do caipira”. Vinil Camaleão (1978). Música: Heitor Villa-Lobos. Intérprete: Edu Lobo. Letra publicada inicialmente no livro Poema sujo (1976).