30 dezembro 2016

Discos 2016

Naná Vasconcelos e David Bowie, Sharon Jones e Elke Maravilha - Cauby, Azulão, Carmen, Prince, George, Cohen... Para um ano de tantas partidas, sonoridades intensas - o mel do melhor do "mundo orecular". 
Eis (em modo aleatório) a seleção dos discos de 2016 com os quais mais convivi: 

- Hóspede da natureza (Cátia de Françar); 
- Ascensão (Serena Assumpção); 
- Selvagem (Mariano Marovatto); 
- Monumento ao soldado desconhecido (Clima); 
- Tropix (Céu); 
- MM3 (Metá Metá); 
- Sabotage (Sabotage); 
- Banzeiro (Dona Onete); 
- Canções eróticas de ninar (Tom Zé); 
- O meu nome é qualquer um (Cesár Lacerda e Rômulo Fróes); 
- Duas cidades (Baiana System); 
- Orgunga (Rico Dalasam); 
- Canto de Marajó (Álvaro Lancellotti); 
- Remonta (Liniker); 
- Levaguiã terê (Vitor Araújo); 
- Abraçar e agradecer (Maria Bethânia)

15 dezembro 2016

Angolana



"Uma esperança morta", "uma ferida aberta", "um carnaval onírico". Elementos da alquimia (instalação) sonora engendrada pelos três amigos (para matar): Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci - a alma tríplice do Metá Metá: "um carmim, um fim, um dó / um agogô, um pus, um som".
Esses e outros versos do disco MM3 (2016) refazem os caminhos do trio, de "um canto perdido na voz incomum", canto que é "marca da felina sonsa que tem asa". Felina que é orixá sirênico urbano, é "escultura quebrada, falo partido, presságio infeliz". A intertextualidade entre as letras das canções - nos versos, expressões e temas des-dobrados - afirma esse canto trágico e lírico da vida nua, crua, épica singular. "Meu amor, eu acho que se a gente for pensar / de repente nem dá tempo de se imaginar", canta a tríade.
Nesse sentido, pensar MM3 como uma instalação não será um erro grave. A autonomia da obra é estabelecida nas dobras dos elementos que retornam. Esses retornos não deixam o pensamento travar e fazem o ouvinte pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a experiência de um mundo criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar (sinônimo de sonar, tonar e ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte. E presentifica um mundo novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de "uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação".
Parêntese: a letra da canção "A imagem do amor", de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, oferece matéria para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual, trans-e, trans-formar, trans-piração. O canto do nascimento de "uma menina tardia dos guias de luz" é ambíguo e metafórico (como toda linguagem artística deveria ser) e tematiza um corpo trans-formado, uma "escultura quebrada" a ferir os "olhos desleais". Fim do parêntese.
Se "de repente nem dá tempo de imaginar", o disco MM3 é "circular dentro de si". Ou seja, esculturaliza o corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente, pó. Assim, engolir o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa "boca funil" que "faz o torto voltar a ser regra". Boca cujo som é a amálgama da voz, da guitarra e do sax da trindade artística.
Sendo a dissonância a única possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se rebela contra as aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma. Daí que, se a obra é autônoma, ela não é independente e contem o histórico. No caso, os arquétipos e seus ensinamentos ancestrais - a afirmação da desterritorialidade (antropofágica?) da potência afro. O mito da democracia racial aparece em contraponto à histórica distorção domesticadora da ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia orecular.
A antropofagia é anterior ao conceito. Daí o pedido-motriz: "Me diz de onde é que vem a sede de cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?", da canção "Angolana", assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de Juçara Marçal, da voz e da guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França, do baixo de Marcelo Cabral e da bateria de Sergio Machado é uma investigação disso.
A Angolana do título é musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som produzido e dado ao público no disco. A Angolana é anterior à antropofagia. "Só podemos atender ao mundo orecular", anota Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago. Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à escuta. E aqui a Angolana é o oráculo a ser consultado, é "Angoulême" - bússola e desorientação, que "grita um verso a quem passar".
O enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da Angolana provem do gesto de produzi-la na efemeridade do canto, da canção. Contra o messianismo sem messias do capitalismo, a Angolana está preservada em sua indeterminação matriarcal, no esforço artificialmente frustrado de cantar sua forma. Assim, a Angolana fala como as sereias nas mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima do ouvinte através da circularidade do ordinário: "Pra o onde quer que eu vá / vou ao redor de mim", diz o sujeito.
Tomemos como exemplo desses retornos internos que miram "a sina de correr ao redor de mim (de si)" a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a Angolana é, o carmim espraiado em todo o disco. "Tem um carmim, um fim, um dó"; "pele tatuada, carne mutilada, o seu dente sangra", "o bisturi, a toalha"; "no sangue tom carmim"; "o vermelho do vinho"; "o be ri omon".
Lembremos que "a cor do pecado é rouge carmim", no canto de Alceu Valença; "eu não consigo evitar / desejo esse seu corpo / cheiro de carmim", canta Benito di Paula; "me suja de carmim / me põe na boca o mel", pede Wando; "uma ponta de cigarro / manchada de carmim / foi a única lembrança / que ficou pra mim", canta Ary Barroso; "guardo o lencinho branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim que / tirei dos meus lábios quando te beijei", canta Dalva de Oliveira; "Eu quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim / mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim", afirma Maria Bethânia; "mamã mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando gasolina / na fina flor do meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas / que a vida arrasa e contamina / o gás que embala o balancê" canta Moraes Moreira. E os exemplos continuam e se condensam no tom da "esperança morta", da "ferida aberta", do "carnaval onírico" do Metá Metá.
Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão. Se, como diz Riobaldo, "o sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente, levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão", a cor vermelha [o encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé Metá Metá. E evoca os sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o céu” (O quinze, de Rachel de Queiroz), à “catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (Vidas secas, de Graciliano Ramos).
"(Quem dera) respirar / no peito um novo ar / me perder por um caminho enfim", canta o sujeito de "Angolana". Localizamo-nos na platibanda de onde o sentinela Mano Légua mira e nos ensina a caminhar na trinca e pede: vamos lá, meu bem, experimente a terceira margem. Desse modo, os versos "a imagem do amor / não é pra qualquer / fere os olhos desleais / impele os imortais" são a síntese dos tempos de hoje, quando experimentar ainda é a única trans-perspectiva possível para quem deseja o axé das folhas ("l'ase ewe o"). E "se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo do estopim: explodir, cantarolar".

***

(Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal)

Me diz de onde é que vem a gana de voar
A fome de mirar o horizonte, o fim
Me diz de onde é que vem
A sina de correr
Pra o onde quer que eu vá
Vou ao redor de mim

(Quem dera) respirar
No peito um novo ar
Me perder por um caminho enfim

Me diz de onde é que vem
A sede de cantar
A seiva da canção
No sangue tom carmim

Se embrenhar no oco do vulcão
E acender o fogo do estopim
Explodir, cantarolar
Malabares, bicho, cão
No vermelho do vinho
Na flecha partida
No chão
Querubim