Sob uma
base sonora pscodélica, Os Mutantes cantavam em 1972: "Estava passeando /
Mascando chiclets / Quando eu vi na minha frente / Uma perna inesquecível / Eu
vi também uns olhos / De raro esplendor / Que diziam: Venha logo, / E me beije,
meu amor! / Yeah, yeah, yeah, yeah / Que beijo muito louco / Eu
desbundei".
Segundo
os dicionários, desbundar é perder o auto-controle, perder as estribeiras, tirar
o disfarce, causar espanto e impacto. Daí a possibilidade de relacionar o
desbundado e o louco, alienado e vagabundo. A imagem do hippie estadunidense
servirá de modelo para a dicionarização do desbundado entre nós: cabelos
longos, roupas largas, uma flor em uma das mãos e o símbolo "paz e
amor" na outra mão.
Sobre
esse aspecto, Caetano Veloso escreve em Verdade
Tropical, que desbunde é "esse nome que a contracultura ganhou entre
nós - a bunda tornada ação com o prefixo des a indicar antes soltura e
desgoverno do que ausência - deixava o hip - quadril - dos hippies na condição
de metáfora leve demais. Desbundar significava deixar-se levar pela bunda,
tomando-se aqui como sinédoque para "corpo" a palavra afro-brasileira
que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo (mas que
não se confunde totalmente com aquelas nem com este), sendo uma porção
exuberante de carne que, não obstante, guarda apolínea limpeza formal".
O fato
é que, vivendo o sufoco do regime militar, o desbundado se via numa
encruzilhada: mudar o mundo ou "curtir um barato"? Diferente da
esquerda armada, os desbundados não pretendiam tomar o poder, ou impor um
modelo de sistema melhor. Ao contrário, os desbundados queriam cair fora de
todo e qualquer sistema.
Fazendo
uso das estéticas convergentes da Tropicália, o desbundado vivia no corpo seus
ideais de contracultura e de contestação dos modos de vida ocidental. A fuga
pelo misticismo, orientalismo, terapias alternativas, psicologia corporal,
sexualidade libertária e ecologia regiam a ética dos desbundados
pós-tropicália. Fuga, nesse caso, é mais o reconhecimento do fracasso das
velhas formas de viver e menos uma recusa do enfrentamento dos problemas. Se a
revolução implicava em mudança nas instituições, os desbundados resistiam no e
pelo devir deleuziano: algo da ordem do inapreensível, do inclassificável, do
“ir indo” visceral do movimento, do deslocamento da asfixia paralisante.
Mas, ao
contrário da energia permanentemente solar imposta à imagem dos desbundados,
eles pareciam agir entre aquilo que Oswald de Andrade chamou de "uma
consciência participante" e "uma rítmica religiosa". Agiam "contra
todos os importadores de consciência enlatada”, buscando “a existência palpável
da vida", como também escreve Oswald no seu "Manifesto
Antropófago". Essas expressões servem para pensarmos o desbundado, para além
do lugar comum.
A
consciência da falência dos modelos disponíveis levava o desbundado - sendo de
esquerda - a questionar os procedimentos da própria esquerda. Ou seja, o
desbundado era marginal por excelência, se podemos usar essa contraditória
expressão, pois afrontava tanto a direita conservadora, quanto a esquerda
militante; tanto o regime militar, quanto quem combatia o regime com a luta
armada. Talvez a canção que melhor sintetize essa ideia seja “Maluco beleza”,
de Raul Seixas e Cláudio Roberto: “e esse caminho que eu mesmo escolhi / é tão
fácil seguir por não ter onde ir / controlando a minha maluquez misturada com
minha lucidez”, dizem os versos.
Coube
ao desbundado sonhar com uma nova vida, mais espiritual e menos materialista. O
ano de 1974 é bastante significativo dessa "realidade paralela", dessa
terceira margem proposta pelos malucos-beleza da época. Por exemplo, lembremos dos Dzi Croquettes nublando as
fronteiras entre feminino e masculino; dos Secos e Molhados e suas misturas de
rock, psicodelia caipira, violões folk, Bob Dylan, estética glam, vivendo "entre
os sacis e as fadas"; da sociedade alternativa cantada por Raul Seixas -
“Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”; da imunização racional de Tim
Maia; das elucubrações alquímicas de Jorge Ben - “os alquimistas estão
chegando”; do realismo mágico, da diáspora nordestina e do isolamento do
imigrante em Ednardo: “Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra /
eles são muitos / mas não sabem voar”; e do submundo dos “entendidos” de Edy
Star - "Chega de brincadeira / já estamos bem-entendidos / concubinados,
convencidos / que para um bom entendido / meia cantada basta”.
Voltando
um pouco no tempo, ainda em 1968, e voltando a citar Caetano Veloso, lembremos
que é desse artista os versos "Caminhando contra o vento, sem lenço e sem
documento", hino da contracultura desbundada, que se justapõem aos versos
de "Caminhando e cantando e seguindo a canção" ("Pra não dizer
que não falei das flores"), de Geraldo Vandré. Se o sujeito da canção de
Vandré ainda acredita num levante coletivo - a letra está na segunda pessoa do
plural -, o sujeito da canção de Caetano foca em ações individuais: "Eu
vou!". Aliás, nessa mesma letra de Caetano temos os versos que parecem ser
a síntese do projeto (inconsciente?) dos desbundados: "Por entre fotos e
nomes / Sem livros e sem fuzil / Sem fome sem telefone / No coração do
brasil".
Também
em "Alegria, alegria" - essa canção do elogio à dupla alegria, à
alegria duplicada, uma alegria que, de acordo com Clement Rosset não nega a
tristeza - temos os versos "Ela nem sabe até pensei / Em cantar na
televisão / O sol é tão bonito / Eu vou". Essa afirmação nietzschiana da
vida e, principalmente, esse uso dos meios de comunicação de massa, num período
em que a televisão servia de instrumento de propaganda do golpe, incomodava
bastante a determinado setor da esquerda. Não esqueçamos que “desbunde” surge
como um termo pejorativo, quase um xingamento, entre os jornalistas que
resistiam ao golpe. Só muito mais tarde essa esquerda vai incorporar as
narrativas dos desbundados.
Nesse
sentido, a pop music, surgida em meados da década de 1950 na imprensa inglesa
para definir o rock’n’roll e os estilos musicais que ele influenciou, incorpora
os signos do desbunde. Vale lembrar que "pop era música para consumo
maciço, na forma de canção, de duração curta (dois a quatro minutos, em média),
escrita em forma simples de estrofe-refrão-estrofe e com repetições de partes,
visando a rápida assimilação pelo ouvinte. Era, basicamente, uma canção para
tocar no rádio e dirigida ao público jovem", escreve André Barcinski, no
livro Pavões misteriosos.
Para Heloisa
Buarque de Hollanda, em Impressões de
viagem, "os que se recusam a pautar suas composições ou apresentações
nesse jogo de referências ao regime, ou que preferem não adotar o papel de
porta-vozes heróicos da desgraça do povo, são violentamente criticados, tidos
como 'desbundados', 'alienados' e até 'traidores'". Caetano Veloso, que em
“Odara” (1977) cantou "deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara / minha
cara minha cuca ficar odara / deixa eu
cantar que é pro mundo ficar odara" e Gilberto Gil, que em
"Realce" (1979) cantou "realce / quanto mais purpurina, melhor /
realce / com a cor do veludo / com amor, com tudo / de real teor de
beleza", serviram para reforçar esses argumentos críticos.
Passados
tantos anos, não é à toa que no filme Tatuagem
(2013), ao resgatar esse período de nossa história para narrar o amor entre um
jovem soldado e um desbundado, o diretor Hilton Lacerda recupere essa ambiência
amalgamada de ideais de fraternidade, amor à arte, sustentabilidade,
anticonsumismo e pacifismo. O fictício coletivo Chão de estrelas é uma
representação exata das ilhas de calor humano criadas pelos desbundados. Aliás,
é ainda Caetano Veloso, em "Podres poderes" (1984), quem canta:
"eu quero aproximar o meu cantar vagabundo daqueles que velam pela alegria
do mundo, indo mais fundo". E quem são esses que velam pela alegria
(alegria) do mundo? O sujeito da mesma canção responde: "índios e padres e
bichas, negros e mulheres e adolescentes".
Não é à
toa, portanto, que um dos hinos do Chão de estrelas fílmico seja "Desbunde
geral", de Johnny Hooker. Assim como os desbundados, Hooker entende bem o
aforismo oswaldiano: "Nunca fomos catequizados. Fizemos foi
carnaval". Hooker traz para a cena os sons e os ritmos de corpo dos
carnavais de Recife. "Me assumo, me jogo, me arrisco de fato", ele canta
noutra canção do disco sarcasticamente intitulado Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito! (2015). Disco que
mistura David Bowie a Dona Onete, Caetano Veloso a Madonna. Disco que é um
híbrido entre o pop, o cafona e as narrativas cujas pautas são as liberdades
individuais. E isso passa pela sensualização da linguagem no corpo.
Esse
"corpo todo carnaval" cantado por Hooker, em versos como "vem, a
noite inteira / descendo ladeira / no maior festival / e a gente se pega, se
bole e se morde", dialoga com os caetânicos versos "a gente se embala
se embora se embola / só pára na porta da igreja / a gente se olha, se beija,
se molha / de chuva suor e cerveja". Esse corpo que recebe o desbunde
geral é o corpo das Mutações do sensível,
para usar a feliz expressão que dá título ao livro de Paulo Tarso Cabral de
Medeiros.
Vale
ressaltar que, diferente do hippie estadunidense, o desbundado brasileiro tinha
consciência (misturando maluquez com lucidez) de que a folia de seu corpo é
"filho dos rituais das bacantes / do coro das tragédias gregas / das
religiões afro-negras / das procissões portuguesas católicas", entre
outros signos, como canta o Orfeu criado por Caetano Veloso para o filme de
Cacá Diegues. O carnaval, essa segunda vida - paralela, marginal - serve de
ambiência para afirmar que "o futuro é agora e a vida não freia / tem fé,
amor, creia na vida futura / o desbunde é geral", como canta Hooker.
"Contra
a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada", escreveu
Oswald. "Experimentar o experimental", disse Hélio Oiticica. O lance
é "botar meu bloco na rua / brincar, botar pra gemer / gingar, pra dar e
vender", como cantou Sergio Sampaio. O desbunde estava intimamente
relacionado à ação performativa em seu instante-já, a um jeito de corpo: de
Caetano Veloso interpretando “Tenho ciúmes de tudo” a Maria Alcina
interpretando “Fio Maravilha”. E, se concordamos com Judith Buther, para quem
uma performance que funciona é a que alcança o realismo a ponto de não poder
ser lida, "pois ler significa rebaixar alguém, expondo o que não funciona
no nível da aparência, insultando-o ou ridicularizando-o", pensar o desbunde,
longe temporalmente de sua "era de ouro", já é algo fadado ao
fracasso e ao erro.
Mas os
gestos de desbunde, de dessacralização, de transformação do exótico em óbvio,
do tabu em totem; essa mistura entre a lírica e a participação, o engajamento e
a polifonia, a consciência de “subdesenvolvimento” e a antropofagia podem ser
percebidos em outros artistas contemporâneos. Da “bicha, preta e pobre” Liniker
ao "rapper gay" Rico Dasalam; da imagem do índio tecnizado em Jaloo
ao empoderamento - "do gueto ao luxo / do luxo ao gueto" - de Karol
Conká.
No
Brasil, desbundar é resistir, é engendrar gestos antiprovincianos e ser contra
a mentalidade conservadora e domesticadora dos corpos. É ainda a recusa dos
discursos populistas, é criticar os projetos de tomada de poder, diante da
certeza da falência do sistema. O desbundado faz do desbunde a crítica como
resistência, a resistência como desvio, o desvio como enfrentamento. Afinal,
como Raul Seixas e Os Mutantes cantaram: “Enquanto você se esforça pra ser / um
sujeito normal e fazer tudo igual / eu juro que é melhor / não ser o normal /
se eu posso pensar que deus sou eu”.
***
(Johnny
Hooker)
Quando
chegar fevereiro
Eu
quero ser carnaval
Meu
corpo no seu
No
Desbunde Geral
Geral,
Geral!
Vem,
A noite
inteira
Descendo
ladeira
No
maior festival
E a
gente se pega, se bole, se morde
Num
chão de estrelas
Do meu
corpo receba
O
desbunde geral
Vem,
Vem
Que meu
corpo agora é todo carnaval
Vem,
Vem
Quem
não bole se sacode no Desbunde Geral
Vem
balançando a bandeira
Levantando
poeira
No
maior festival
O
futuro é agora e a vida não freia
Tenha
fé, amor, creia
Na vida
futura
O
desbunde a geral