Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
17 dezembro 2013
O que é canção? Wado
- O que é a canção?
Canção é uma manifestação humana das mais antigas, cantar e entrar em transe vem de períodos pré-históricos, é de antes da cisão da poesia e da música.
- De onde vem a canção?
Considero canção algo pouco racional, em seu âmago, lógico que pode se sofisticar ela mas não é, por natureza, um território da razão.
- Para que cantar?
Cantar por necessidade da espécie, cantar é quase tão necessário quanto comer.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho.
Lucas Santtana, Cícero, Camelo.
05 dezembro 2013
Azul vazio
"Bactérias num meio é cultura". O verso de Arnaldo Antunes ("Cultura", 1993) joga com a ideia da micro cultura assistida de bactérias como promotora da compreensão científica desses organismos, a fim de apontar através de desvios semânticos a nossa própria macro cultura: essa sistematização do conhecimento.
Os elementos ordinários pinçados e problematizados pelo sujeito da canção questionam a aparência cultural das coisas - "o escuro é a metade da zebra / as raízes são as veias da seiva / o camelo é um cavalo sem sede / tartaruga por dentro é parede" - e ao fazer isso engendra a aparição destas coisas (notadamente) ordinárias.
A distinção entre aparência e aparição é radical e importante. Vide Adorno. Como uma obra de arte fala "apenas" que ela (obra) existe, e não do que existe fora dela, no meio (na cultura) onde existimos, o sujeito criado por Arnaldo destrava nosso olhar científico e adestrado sobre a aparência das coisas e, consequentemente, sobre nós mesmos, sugerindo uma experiência de mundo na arte, em que os objetos surgem como aparições para logo em seguinte desaparecerem.
É deste modo que "a cegonha é a girafa do ganso / o cachorro é um lobo mais manso". Essas informações, ou melhor, este saber não é científico, mas nos permite des-conhecer coisas cientificamente já catalogadas, e, melhor, gera pensamento. Dito de outro modo, a arte restaura o desconhecimento do mundo desencantado pela ciência. Ou seja, o sujeito da canção de Arnaldo Antunes re-encanta o mundo, restaurando o desconhecimento de mundo, via objetos selecionados. Todos os objetos aparecem aqui para serem estranhados, desconhecidos e só deste modo podemos re-des-aprender a olhá-los.
Escrevo isso para comentar a canção "Azul vazio" (Disco, 2013), de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, cujos versos "serpete serpenteia o rio / percorre corre em minha veia / a correnteza o coração bombeia / o rio navega e lava / o pensamento leva / o corpo todo / como um navio" parecem se aproximar da busca pelo ordinário presente em "Cultura".
Antes, preciso dizer que interpreto a capa de Disco de Arnaldo Antunes como um "negativo" da obra Disco (1978) de Waltercio Caldas (ver livro Manual de ciência popular). E vice-versa. Ambos como proposições artísticas da dúvida em relação àquilo que ainda chamamos disco, no caso do primeiro, e daquilo que o barbante branco-feito-raio amarrado ao vinil instaura como dissonância no preto, no caso do segundo.
Os elementos ordinários pinçados e problematizados pelo sujeito da canção questionam a aparência cultural das coisas - "o escuro é a metade da zebra / as raízes são as veias da seiva / o camelo é um cavalo sem sede / tartaruga por dentro é parede" - e ao fazer isso engendra a aparição destas coisas (notadamente) ordinárias.
A distinção entre aparência e aparição é radical e importante. Vide Adorno. Como uma obra de arte fala "apenas" que ela (obra) existe, e não do que existe fora dela, no meio (na cultura) onde existimos, o sujeito criado por Arnaldo destrava nosso olhar científico e adestrado sobre a aparência das coisas e, consequentemente, sobre nós mesmos, sugerindo uma experiência de mundo na arte, em que os objetos surgem como aparições para logo em seguinte desaparecerem.
É deste modo que "a cegonha é a girafa do ganso / o cachorro é um lobo mais manso". Essas informações, ou melhor, este saber não é científico, mas nos permite des-conhecer coisas cientificamente já catalogadas, e, melhor, gera pensamento. Dito de outro modo, a arte restaura o desconhecimento do mundo desencantado pela ciência. Ou seja, o sujeito da canção de Arnaldo Antunes re-encanta o mundo, restaurando o desconhecimento de mundo, via objetos selecionados. Todos os objetos aparecem aqui para serem estranhados, desconhecidos e só deste modo podemos re-des-aprender a olhá-los.
Escrevo isso para comentar a canção "Azul vazio" (Disco, 2013), de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, cujos versos "serpete serpenteia o rio / percorre corre em minha veia / a correnteza o coração bombeia / o rio navega e lava / o pensamento leva / o corpo todo / como um navio" parecem se aproximar da busca pelo ordinário presente em "Cultura".
Antes, preciso dizer que interpreto a capa de Disco de Arnaldo Antunes como um "negativo" da obra Disco (1978) de Waltercio Caldas (ver livro Manual de ciência popular). E vice-versa. Ambos como proposições artísticas da dúvida em relação àquilo que ainda chamamos disco, no caso do primeiro, e daquilo que o barbante branco-feito-raio amarrado ao vinil instaura como dissonância no preto, no caso do segundo.
No Disco de Waltercio, o buraco-núcleo, por onde o objeto se encaixa na vitrola para tocar, foi ocupado pela passagem de um barbante-cordão-de-pão que se laça formando um raio. O Disco perde o seu miolo, ou seja, torna-se impossível saber aquilo que o disco guarda nas suas faixas, nos sulcos que uma agulha, interditada pelo raio-barbante, libertaria.
Se a princípio um disco é um conjunto-aparelho de guarda e reprodução de canções/músicas, nos casos mencionados vemos instaurada uma renúncia a tal percepção. Tanto Waltercio quanto Arnaldo singularizam o objeto para melhor apresentá-lo no mundo. Isso é um disco? Mas o que é um disco? É um disco disco? Esta "desorientação didática" está na base da arte.
Por um breve instante, antes que eles desapareçam no cotidiano, ao olharmos os dois discos esquecemos aquilo que sabemos ser um disco. Afinal eles tem a aparência de um disco. No entanto, algo está deslocado, o sentido daquilo que define um disco se rebelou e percebemos isso, pois os discos não se submetem às nossas expectativas cientificamente construídas. Eis a aparição. "se a vida não faz sentido / porque é que morrer / haveria de fazer? ("Sentido", Arnaldo Antunes e Nando Reis), canta Arnaldo.
No Disco transparente-branco-de-miolo-preto de Arnaldo temos o encontro de estilos variados, canções de vários períodos. O disco acolhe canções, não é cofre, apenas guarda. Sua frente-vinil-branca indicia essa aglutinação de várias matizes sonoras - "Só eu fico dentro do meu branco pra quando Oxalá chegar". Já o verso do estojo imita o verso de um cd pirata, destes sem encartes que encontramos oferecidos por ambulantes/camelôs em várias partes da cidade.
O conjunto irregular, não linear das canções que constituem Disco reflete também a recusa em relação à obrigação de escolha. Arnaldo prefere não escolher, junta, monta, constrói: da bossa ao tecnobrega. "Página vazia, melodia / onde é que a palavra vai cair? / onde vai cair? / acho que ela vai aterrissar em território perigoso" ("Sou volúvel", Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho), canta adiante. Além de: "tem muito pouca dúvida e muita razão / tem muito pouca ideia e muita opinião / muita pornografia e muito pouco tesão / muita cerimônia e muito pouca educação ("Muito muito pouco", Arnaldo Antunes).
O engenho do gesto de empreender o conjunto de objetos sonoros avulsos tão aparentemente díspares é a tônica do disco de Arnaldo. "A modernidade agora vai durar pra sempre, dizem / toda a tecnologia / só pra criar fantasia // deuses e ciência / vão se unir na consciência, dizem / vivermos em harmonia / não será só utopia" ("Dizem (Quem me dera)", Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho).
Se destaco "Azul vazio" é porque percebo na lírica de sua letra a condensação da busca pelo comum, pelo ordinário que mencionei anteriormente e que atravessa todas as canções. A imagem de um rio que só tem o olho d'água, que não tem beira, nem desagua no mar, que cresce sem se expandir é forte e rompe com a noção de perenidade que temos diante da duração das coisas. Tudo desagua no azul vazio. Vazio de que? Azul de Matisse?
Se a princípio um disco é um conjunto-aparelho de guarda e reprodução de canções/músicas, nos casos mencionados vemos instaurada uma renúncia a tal percepção. Tanto Waltercio quanto Arnaldo singularizam o objeto para melhor apresentá-lo no mundo. Isso é um disco? Mas o que é um disco? É um disco disco? Esta "desorientação didática" está na base da arte.
Por um breve instante, antes que eles desapareçam no cotidiano, ao olharmos os dois discos esquecemos aquilo que sabemos ser um disco. Afinal eles tem a aparência de um disco. No entanto, algo está deslocado, o sentido daquilo que define um disco se rebelou e percebemos isso, pois os discos não se submetem às nossas expectativas cientificamente construídas. Eis a aparição. "se a vida não faz sentido / porque é que morrer / haveria de fazer? ("Sentido", Arnaldo Antunes e Nando Reis), canta Arnaldo.
No Disco transparente-branco-de-miolo-preto de Arnaldo temos o encontro de estilos variados, canções de vários períodos. O disco acolhe canções, não é cofre, apenas guarda. Sua frente-vinil-branca indicia essa aglutinação de várias matizes sonoras - "Só eu fico dentro do meu branco pra quando Oxalá chegar". Já o verso do estojo imita o verso de um cd pirata, destes sem encartes que encontramos oferecidos por ambulantes/camelôs em várias partes da cidade.
O conjunto irregular, não linear das canções que constituem Disco reflete também a recusa em relação à obrigação de escolha. Arnaldo prefere não escolher, junta, monta, constrói: da bossa ao tecnobrega. "Página vazia, melodia / onde é que a palavra vai cair? / onde vai cair? / acho que ela vai aterrissar em território perigoso" ("Sou volúvel", Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho), canta adiante. Além de: "tem muito pouca dúvida e muita razão / tem muito pouca ideia e muita opinião / muita pornografia e muito pouco tesão / muita cerimônia e muito pouca educação ("Muito muito pouco", Arnaldo Antunes).
O engenho do gesto de empreender o conjunto de objetos sonoros avulsos tão aparentemente díspares é a tônica do disco de Arnaldo. "A modernidade agora vai durar pra sempre, dizem / toda a tecnologia / só pra criar fantasia // deuses e ciência / vão se unir na consciência, dizem / vivermos em harmonia / não será só utopia" ("Dizem (Quem me dera)", Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho).
Se destaco "Azul vazio" é porque percebo na lírica de sua letra a condensação da busca pelo comum, pelo ordinário que mencionei anteriormente e que atravessa todas as canções. A imagem de um rio que só tem o olho d'água, que não tem beira, nem desagua no mar, que cresce sem se expandir é forte e rompe com a noção de perenidade que temos diante da duração das coisas. Tudo desagua no azul vazio. Vazio de que? Azul de Matisse?
***
Azul vazio
(Arnaldo Antunes / Marcia Xavier)
ouve só se ouve ouvir
o rio só se ouve quem
de longe lá de onde vem
o rio daqui se ouve bem
de dentro ecoa a água
que deságua no azul vazio
serpete serpenteia o rio
percorre corre em minha veia
a correnteza o coração bombeia
o rio navega e lava
o pensamento leva
o corpo todo
como um navio
um rio que não tem beira
por um fim abismo cachoeira
onde desaguar
se não tem mar
e não tem margem
só o olho d'água
brota espelho molha
o azul do céu
(Arnaldo Antunes / Marcia Xavier)
ouve só se ouve ouvir
o rio só se ouve quem
de longe lá de onde vem
o rio daqui se ouve bem
de dentro ecoa a água
que deságua no azul vazio
serpete serpenteia o rio
percorre corre em minha veia
a correnteza o coração bombeia
o rio navega e lava
o pensamento leva
o corpo todo
como um navio
um rio que não tem beira
por um fim abismo cachoeira
onde desaguar
se não tem mar
e não tem margem
só o olho d'água
brota espelho molha
o azul do céu
03 dezembro 2013
O que é canção? Arthur Nogueira
- O que é a canção?
É o malabarismo, como diz Luiz Tatit, entre melodia, harmonia e letra.
- De onde vem a canção?
Do embate individual e concreto do artista com tudo aquilo que o distingue enquanto ser. Portanto, a canção em minha vida surge da minha vontade, do meu trabalho (o que João Cabral chamava de "transpiração") e de acontecimentos, lugares, paixões, sensações, livros e de diálogos com artistas que admiro.
- Para que cantar?
Para estar em comunicação com os outros e comigo mesmo. Considero que as canções, tanto aquelas em que escrevi a letra quanto as outras, em que tomo para mim um poema ou uma letra de outra pessoa, são a minha melhor forma de expressão. Consequentemente, o processo de criação é uma poderosa forma de autoconhecimento, que me estimula como nenhuma outra atividade.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Caetano Veloso, Jards Macalé e Adriana Calcanhotto, porque me abriram as portas para a poesia desde muito cedo. E porque fizeram, respectivamente, Cajuína, Sem Essa (em parceria com Duda Machado) e Inverno (em parceria com Antonio Cicero).
19 novembro 2013
O que é canção? Déa Trancoso
- O que é canção para você?
A canção é uma espécie de milagre permitido pelo som. uma equação delicada e sofisticadíssima entre o som e a palavra (que também tem som). nessa equação, o som, cavalheiro elegante, passa o comando para a palavra. para mim, quem conduz a canção é a palavra. a palavra pulsa a canção. é o seu coração. o som na canção é água de rio: corre por entre, por sobre e dos lados da palavra.
- De onde vem a canção?
Vem pela nuca. vem da vontade intrínseca do homem em compreender o Caminho. a poesia é uma estrada privilegiada diante da nossa condição humana: somos desconhecidos de nós mesmos. não sabemos aonde isso vai dar e se vai dar em algo. a poesia nos salva. a canção é talvez o mais rico exercício poético. junta a linguagem, que nos especifica, com a música, que nos transcende. então, a canção é um dos mais poderosos combustíveis para o grande veículo da encarnação que é para mim a Consciência.
- Para que cantar?
Cantar melhora tudo. o canto é um mestre. mostra que eu não sou aquilo que penso que sou. quando canto toco aquilo que não tem nome. cantar me salva de mim mesma.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Cássia Eller. Ná Ozzetti. Clementina de Jesus.
Cássia Eller tinha um canto poderoso, homogêneo, que lançava ondas sonoras que se tivessem sido medidas a gente veria que a frase saía de sua boca com uma força e chegava no nosso ouvido com a mesma força. não perdia nada no meio do caminho. era uma qualidade de seu canto, de sua natureza de cantora e da plataforma que ela escolheu para se expressar que foi o rock. o seu canto tinha uma "certeza" que desafiava paradoxalmente o seu ser. sempre achei que quando ela cantava entrava em contato com sua estrela e quando não estava cantando era puro conflito. eu a observei muito durante sua estadia no planeta e a vi ao vivo uma vez num show em Belo Horizonte. para mim, uma das mais verdadeiras artistas do Brasil.
Ná Ozzetti tem um dos cantos mais inteligentes que já ouvi. a liberdade absoluta na emissão e na pronúncia das palavras dentro da musicalidade da canção é invejável e se esse pioneirismo ainda não foi devidamente creditado a ela em vida, um dia será. isso sem falar nos mistérios de seu timbre. ela usa com uma consciência absurda esses mistérios e o resto de seus atributos artísticos. ouço desde sempre.
Clementina de Jesus é um espelho. eu olho para mim e a vejo. a rusticidade do timbre, a irregularidade da emissão e uma doçura extrema criam um conjunto intrigante e singularíssimo. é como se o canto fosse a arena escolhida para a serenidade. uma natureza guerreira que se suaviza no canto. assim me sinto. assim foi Clementina.
12 novembro 2013
O que é canção? Felipe Cordeiro
- O que é canção para você?
Canção, no caso de estarmos falando de canção popular no Brasil, é a simbiose entre letra e música. Neste caso, uma coisa existe em função da outra, sendo rigorosamente equivocada, na minha opinião, a análise que desmembra arbitrariamente a letra da música.
- De onde vem a canção?
A canção, no caso brasileiro, vem da mestiça tradição que une basicamente as "cantigas" portuguesas com os refrões africanos e o sentimento telúrico indígena.
- Para que cantar?
Pra espantar todo mal.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Chico Science, Alípio Martins, Caetano Veloso.
05 novembro 2013
O que é canção? Simone Mazzer
Simone Mazzer
- O que é canção para você?
A canção é o que sustenta o ritmo da minha vida.
- De onde vem a canção?
A canção vem de onde nossos sentidos permitem. É preciso estar aberto, ouvidos livres para saber ouvir.
- Para que cantar?
O cantar pra mim é um complemento vital. É o meu jeito de me comunicar com o mundo.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Ângela Maria, pela persistência e fé na música. Billie Holiday, pelo amor que ela sentia pela música. Elis Regina, pela forma que se colocou na vida, na música, pela música.
29 outubro 2013
O que é canção? Marcia Castro
Marcia Castro
- O que é canção para você?
Pra mim, canção é um tipo de composição musical popular destinada ao canto e cujos elementos evocam esse canto, a partir do momento que criam uma espécie de reconhecimento no interlocutor.
- De onde vem a canção?
A canção vem da necessidade de comunicar de modo abrangente sentimentos nossos que são comuns a várias pessoas, daí o seu caráter popular.
- Para que cantar?
Cantar para existir no mundo, com nossas sensações, nossos pertencimentos e desencaixes, de modo que encontremos os interlocutores que tenham afinidade com o nosso universo e criem reverberações. Música é um modo de existir.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
GILBERTO GIL: por traduzir em canção, de modo tão singelo, sentimentos tão complexos, tão incomuns. E ainda trazendo para sua música uma experiência de corpo, chegando de modo certeiro nas diversas subjetividades. TOM ZÉ: pelo experimentalismo constante em sua obra, filosofando a vida através da música. GAL COSTA: pelo canto. a voz fluida, o timbre perfeito, as divisões rítmicas complexas e intuitivas. um lugar a se chegar.
22 outubro 2013
O que é canção? Alice Caymmi
Alice Caymmi
- O que é canção para você?
É emoção em forma de vibrações que modificam a matéria atingida.
- De onde vem a canção?
Do inconsciente.
- Para que cantar?
Para poder sobreviver.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho.
Bjork, Caetano, Dorival Caymmi.
17 outubro 2013
Duas de cinco
"Ela conta uma epopeia sem Ulisses", afirma Criolo ao comentar o seu rap "Duas de cinco" (2013), em entrevista à revista Rolling Stone (out/2013). De fato, intercalando o uso da primeira pessoa - "E eu fico aqui pregando a paz / E a cada maço de cigarro fumado / A morte faz um jazz" - e da segunda pessoa do discurso - "Desigualdade faz tristeza / Na montanha dos sete abutres / Alguém enfeita sua mesa", Criolo faz o sujeito da letra deslizar de uma posição à outra misturando o juízo de valor que define e separa "culpados" e "inocentes".
Ou seja, aqui não há um Ulisses, ou mesmo um "João de Santo Cristo" (Legião Urbana), para ficarmos na clave de referências das epopeias cancionais, em busca de redenção. Há um sujeito impregnado de "realidade". Em "Duas de cinco" o sujeito não é narrador de algo externo a ele, é sujeito comum, qualquer um, alguém que vivencia os fatos fractalmente narrados, sem a homérica intenção de heroísmo. Ou, melhor, que faz da narração dos fatos uma vivência concreta da verdade.
A letra do rap de Criolo, que tem no sampler da canção "Califórnia azul", de Rodrigo Campos, a âncora melódica exata na composição da beleza crua, é um complexo tecido composto por uma enxurrada de informações dignas de vários nós na orelha do ouvinte: do jobiniano "É o cão / É o cânhamo / É o desamor / É o canhão / Na boca de quem tanto se humilhou", passando pela ressemantização da citação drummondiana "(...) no meio do caminho / Da educação havia uma pedra / E havia uma pedra / No meio do caminho", até o núcleo "Alô Foucault, / Cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy / Maquiavel nessa leitura", com o seu ensurdeceddor imbricamento de referências filosófico-literárias.
Se a melodia cancional de "Duas de cinco" fica por conta do uso do refrão de "Califórnia azul", no mais, o que temos é um rap-rap: canto/falado, fala/cantada, versos declamados. Sampleando "Compro uma pistola do vapor / Visto o jaco califórnia azul / Faço uma mandinga pro terror / E vou", Criolo fortalece este sujeito que precisa seguir narrando em meio ao caos, à injustiça e ao desamor. Faz isso listando uma sequência de gestos quase cinematográficos que registram o mundo ao redor: lírica e sociedade.
A estonteante profusão de citações e referências da cultura pop, de consumo, da literatura, da filosofia, do cotidiano, que, a princípio pode sugerir uma vontade vazia de demonstrar erudição, não é gratuita, ela serve à criação dos sons e ruídos deste mundo complexo do "tudo-ao-mesmo-tempo-agora" que vivemos.
"O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra", escreve Giorgio Agamben (O que é o contemporâneo?). Sujeito atento aos sinais de seu tempo, Criolo tece a letra como o indivíduo contemporâneo que precisa pensar - organizar o pensamento - para além do turbilhão de informações on line, on time, full time. Como de-cifrar tantas informações e experimentá-las na vida de modo ético? É este o mote do tratado que Criolo rascunha em "Duas de cinco".
Tendo de lidar com a inveja (o zoião cantado por Emicida), a ronda constante das drogas e da violência e a repulsa da burguesia glamourosa (ou da "burguesinha" cantada por Seu Jorge: "É salto alto, MD / Absolut, suco de fruta / Mas nem todo mundo é feliz / Nessa fé absoluta"), o sujeito de Criolo elabora um projeto de sobrevivência no inferno. "O rosto do carvoeiro / É o Brasil que mostra a cara", canta. Mas aponta que: "Pra cada rap escrito / Uma alma que se salva".
É esta vontade de salvar a alma cantando, fazendo rap, apontando o dedo refrator para as feridas sociais, de um governo "que quer acabar com o crack / Mas não tem moral para vetar / Comercial de cerveja" o mote do trabalho de Criolo. Colocar-se no meio, estar aberto à mediação, "pregando a paz" através do uso desta "língua piranha" para, denunciando os encastelados que sorriem diante da morte de "um de nós", reposicionar esta legião, este "nós" sempre vítima do silêncio sorridente da sociedade.
"Falar pra um favelado / Que a vida não é dura / E achar que teu 12 de condomínio / Não carrega a mesma culpa", vocaliza. Em tempos de "política do medo", quando o indivíduo é levado a crer que mais segurança implica em mais individualismo e investimento nas instâncias-ilha, Criolo investe naquilo que Tom Zé fala sobre a sabedoria (ciência) popular reprimida, que desceu do hipotálamo-aristotélico e foi parar no cóccix alimentando a cóccix-ência de quem precisa devorar tudo que lhe chega como informação para não ser devorado.
***
(Criolo)
É o cão
É o cânhamo
É o desamor
É o canhão
Na boca de quem tanto se humilhou
Inveja é um desgraça
Alastra de rancor
E cocaína é uma igreja
Gringa de le chereau
Pra cada rap escrito
Uma alma que se salva
O rosto do carvoeiro
É o Brasil que mostra a cara
Muito "blá" se fala
A língua é uma piranha
Aqui é só trabalho
Sorte é pras crianças
Que vê o professor
Em desespero na miséria
Que no meio do caminho
Da educação havia uma pedra
E havia uma pedra
No meio do caminho
Ele não é preto velho
Mas no bolso leva um cachimbo
É o sleazestack
Zóio branco
Repara o brilho
Chewbacca na penha
Maisena com pó de vidro
Comerciais de TV
Glamour pra alcoolismo
E é o Kinect do XBox
Por duas bucha de cinco
HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar
Compro uma pistola do vapor
Visto o jaco califórnia azul
Faço uma mandinga pro terror
E vou
E eu fico aqui pregando a paz
E a cada maço de cigarro fumado
A morte faz um jazz
Entre nós
Cá pra nós
E se um de nós morrer
Pra vocês é uma beleza
Desigualdade faz tristeza
Na montanha dos sete abutres
Alguém enfeita sua mesa
Um governo que quer acabar com o crack
Mas não tem moral para vetar
Comercial de cerveja
Alô Foucault
Cê quer saber o que é loucura?
É ver Hobsbawm na mão dos boy
Maquiavel nessa leitura
Falar pra um favelado
Que a vida não é dura
E achar que teu 12 de condomínio
Não carrega a mesma culpa
É salto altom MD
Absolut, suco de fruta
Mas nem todo mundo é feliz
Nessa fé absoluta
Calma filha
Que esse doce
Não é sal de fruta
Azedar é a meta
Tá bom ou quer mais açúcar?
HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar
Compro uma pistola do vapor
Visto o jaco califórnia azul
Faço uma mandinga pro terror
E vou
15 outubro 2013
O que é canção? Sandra Ximenez
Sandra Ximenez
- O que é canção para você? De onde vem a canção?
A gênesis da canção pra mim seria aquela época primitiva em que fala e canto fossem a mesma coisa... em que brincar com sons, inventar palavras, entoá-las ludicamente, não tinham nome de fala ou canto. Isso parece que o coro grego tentou recuperar e o que eles faziam, por registros (ficaram partituras) e estudos antropológicos, etc. Dizem que era isso, cantofala, falacanto, um só. Daí a canção seguiu nesses ambientes da mistura, do povo, da poesia e da música popular. Hoje eu acho que ela é muito ampla, com várias facetas, não me alinho totalmente com a visão do Tatit e cia (apesar de que gosto das canções do Tatit), e da própria grande MPB, de que ela é a letra sobretudo, poesia em primeiro lugar. Acho que nem saber do que se trata a letra também é um jeito de fruir canção, dançar é outro jeito, e o meu jeito de construir e fruir canções é bem sensorial: música é sensação, e também o que me vem de letra, de sentido, fica nesse âmbito do "um elemento a mais" pra me fazer viajar. Se eu não entendo a língua em que se está cantando a própria palavra-som já me é suficiente pra curtir.
- Para que cantar?
Acho que cantar é humano, todos sempre cantaram em seus rituais, seus trabalhos, seus afagos e cuidados, e o mundo urbano foi nos distanciando disso. Então agora não são todos os humanos que cantam. Sou professora de canto há mais de 20 anos, e pela minha experiência todo mundo quer cantar, e pode cantar. Mas tem aqueles que escolhem isso como profissão. E no meu caso tem a ver com a vibração e transformação que o canto traz ao meu corpo, e também tem a ver com comunicação de algumas estéticas que eu faço por meio da música.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
A Bjork, os provençais, e as trobairitz. A Bjork não dá nem pra falar o porquê, é por tudo. Radiohead é pelo canto do Tom Yorke e a sensibilidade dele nas harmonias, adoro as composições, e as 3 guitarras são completamente sedutoras pra mim. Nem sei quem escolher em terceiro lugar. São muitos artistas que gosto, mas esses dois se destacam de forma muito clara e especial. Se fosse falar de mais alguém teria que falar de mais uns 30.
08 outubro 2013
O que é canção? Ana Cláudia Lomelino
Ana Cláudia Lomelino
- O que é canção para você?
Para mim canção é qualquer música que se possa produzir e/ou reproduzir.
- De onde vem a canção?
A música-canção é uma espécie de deus bastante íntimo do ser humano, vem justamente desta junção do não-ser com o ser, do não-fazer com o fazer, do virtual com o atual, ânima e animus, portanto um belo molde do reencantamento do concreto.
- Para que cantar?
Cantar é ser ar, ser som que sobe ao céu, é deixar-se ir de uma forma divina, é crer na audiência invisível e eterna do agora, é tocar o todo.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Xuxa, ouvi e dancei muitos discos ao longo dos meus primeiros 10 anos como um ato de independência e de relação com a vitrola e as caixas de som e com a solidão (por opção). Caetano Veloso, uma voz desde a infância também, que seguiu um caminho mitológico na minha vida inteira, trazendo principalmente um exemplo belíssimo de liberdade. Domenico Lancellotti, quero sê-lo. exemplo mais próximo, escada linda na vizinhança.
01 outubro 2013
O que é canção? Juçara Marçal
Juçara Marçal
- O que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar?
Juro que tentei, mas não tenho respostas pras suas perguntas. Pra todas elas só me vem o verbo VIVER. É pouco e é tudo o que tenho pra dizer sobre isso aqui.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
A das referências é a mais difícil de todas. São muitas. Música brasileira, música africana, música norte-americana, música latina... E por aí vai. Referência é algo que nos alimenta artisticamente e tudo que me chega de todos os lados serve de referência pra mim. Citar alguém reduziria o caminho, reduziria a própria referência, portanto, é tudo isso aí e mais um pouco.
24 setembro 2013
O que é canção? Bruno Cosentino
Bruno Cosentino
- O que é canção para você?
É dizer com ritmo e melodia palavras que façam sentido ou não, mas que o todo sonoro – que é a junção de sons, performance, timbres, ruídos, ritmos, harmonia, estados subjetivos do cantor e do ouvinte, os astros etc. - resulte esteticamente significante.
- De onde vem a canção?
A canção é a cristalização da fala em ritmo e melodia e a canção vem das falas e melodias que estão no ar e de todas as pessoas que vivem ou já viveram no mundo e vem também da batida do coração, que dita o ritmo da vida em todos nós e a partir do qual todos os ritmos se originam.
- Para que cantar?
Cantar é o extravasamento de um estado de espírito (seja ele qual for: alegria, tristeza, melancolia, medo, excitação etc.). Quando cantamos por profissão, devemos reviver os sentimentos primeiros que deram forma ao canto.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Dorival Caymmi, graça, ritmo, leveza, saúde, imagens, cores, atmosferas, plasticidade; João Gilberto, perfeição, balanço, estranhamento, restaurador da individualidade singular em todos nós; Milton Nascimento, timbre, emoção, deus.
É dizer com ritmo e melodia palavras que façam sentido ou não, mas que o todo sonoro – que é a junção de sons, performance, timbres, ruídos, ritmos, harmonia, estados subjetivos do cantor e do ouvinte, os astros etc. - resulte esteticamente significante.
- De onde vem a canção?
A canção é a cristalização da fala em ritmo e melodia e a canção vem das falas e melodias que estão no ar e de todas as pessoas que vivem ou já viveram no mundo e vem também da batida do coração, que dita o ritmo da vida em todos nós e a partir do qual todos os ritmos se originam.
- Para que cantar?
Cantar é o extravasamento de um estado de espírito (seja ele qual for: alegria, tristeza, melancolia, medo, excitação etc.). Quando cantamos por profissão, devemos reviver os sentimentos primeiros que deram forma ao canto.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Dorival Caymmi, graça, ritmo, leveza, saúde, imagens, cores, atmosferas, plasticidade; João Gilberto, perfeição, balanço, estranhamento, restaurador da individualidade singular em todos nós; Milton Nascimento, timbre, emoção, deus.
17 setembro 2013
O que é canção? Mariano Marovatto
Mariano Marovatto
- O que é canção para você?
Canção ainda é, desde o século passado, a forma de arte mais efetiva criada pelo homem.
- De onde vem a canção?
A canção vem da Linguagem humana. Inventar uma melodia é a forma mais prazerosa de testar, posso dizer, faticamente, segundo Jakobson, o aparato vocal com o qual viemos de fábrica. A letra diz respeito a nossa vontade de contar e repassar uma história e também da vontade de saciar o lirismo pessoal e intransferível de cada um. Mesmo que universal cada canção serve a um propósito específico para o lirismo de cada indíviduo, seja ela ouvinte, seja ele compositor.
- Para que cantar?
Cantar para contar seus segredos de um jeito especial. Ouvir o canto para criar novos segredos só seus.
- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Para mim toda a estrutura do mundo da canção está baseada em três pilares, tão óbvios de tão importantes: Paul McCartney, John Lennon e Caetano Veloso. John e Paul estabeleceram uma espécie de marco zero ideológico, estético e técnico da canção. Com eles a canção ficou atrelada para sempre ao seu processo de gravação, penso que esse é um dos maiores ensinamentos dos Beatles, entre tantos. Caetano, você sabe muito bem porque é o catalisador, personagem, antena e multiplicador principal da canção brasileira dos últimos 50 anos.
12 setembro 2013
Musa da música
A relação entre
sereia e cancionista aqui quer situar-se nos debates acadêmicos gerados na
encruzilhada da "imanência versus transcendência" (NIETZSCHE: 2001;
2011), da "performance vocal" (ZUMTHOR: 2010), da "gestualidade
vocal" (TATIT: 1996) e da "vocalização do logos" e
"expressão vocal" (CAVARERO: 2011). Para gerar um conceito de sereia
como estrutura mítico-estética fortemente ligada à cultura brasileira em sua
pluralidade de mitos, línguas, tradições e estéticas, cunhei a expressão
neo-sereia.
A neo-sereia é a
reciclagem antropofágica da sereia mítica. A nova sereia evocada aqui surgiu
para dar conta do instante-já da canção, diante da inexistência de um termo que
compreendesse em si a sinestesia do fato cancional: do breve momento em que o
cancionista é mais que um cantor, intérprete, enunciador e se promove a sereia
singular do ouvinte. Ou seja, a neo-sereia está no interlugar que vai do ouvido
aberto à escuta do ouvinte à boca indiciadora de alguém vivo do cancionista.
Dito de outro, o cancionista é neo-sereia quando canta o ouvinte de modo
singular e essa singularidade vem da disposição (voluntária) do ouvinte em
ouvir o cancionista. A neo-sereia instiga o ouvinte a experimentação da vida.
A
reprodutibilidade técnica me permite pensar essa sereia contemporânea:
resultado da ação do cancionista e do ouvinte; sereia que guarda o mesmo ímpeto
da esfíngica sereia homérica, com o suplemento dos meios técnicos de mediação
de hoje. A ideia de uma transsereia, uma sereia trans-histórica contida no
núcleo duro do gesto de ser cantor, está na base das performances vocais que
aqui analiso.
Sei que o uso do
prefixo "neo", em sua banalização contemporânea, provoca incômodos
epistemológico e filológico. No entanto, como a proposta de um léxico para as
análises de performance vocal é também um dos objetivos deste trabalho, e a
"banalização" da escuta cotidiana, "relaxada" é seu corpus,
creio que o "neo", como o, literalmente, "novo", abrange e
dá conta da tarefa a ser executada. O novo de novo, de cada escuta de
"mesma" canção.
Desse modo, nem
todo cancionista é neo-sereia, mas toda neo-sereia é um cancionista
midiatizado. Procuro demonstrar isso com uma detalhada revisão do mito da
sereia e sua permanência nos modos de escuta contemporânea de canção, quando identifico
não mais uma relação de transcendência entre ouvinte e cantor, mas de
imanência, com este cooperando com aquele na sua expressão imanente, ambos,
cúmplices fratriarcalmente. Assim, por ser a certeza da presença de alguém vivo
- com boca, garganta, úvula, saliva -, a neo-sereia perde qualquer caráter
metafísico e foca na corporalidade, na performance de um corpo que vocaliza sua
unicidade.
A fim de evitar
o uso abusivo do termo, estabeleço uma semiologia da neo-sereia, apontando com
rigor didático as especificidades da categoria. Para isso, através da análise
das canções, proponho uma série de processos constitutivos da construção
metafórica do termo: os mecanismos de artificialização do cantor sendo
neo-sereia, por exemplo. Tais mecanismos alicerçados na mídia utilizada
sustentam a base da poética da neo-sereia.
A neo-sereia não
é um simulacro (BAUDRILLARD: 1991) da sereia, não é um avesso do real. Ao
contrário, é o real do avesso, já que contém em si os sintagmas da sereia
mítica e indicia a presença física de alguém. Ou seja, a neo-sereia devora o
suposto modelo original sem querer atingir a essência deste que inexiste e está
disposta a fingir “deveras” fundindo alquimicamente simulacro e real. Em
síntese, "sujeito teatral" (BARTHES. S/Z, 1992), a neo-sereia revela o "logro magnífico", a
"trapaça salutar" (BARTHES: Aula,
1992) que finca o ouvinte e o cancionista à vida. E é justamente este fincar que assusta e é terrível e belo
na neo-sereia: sua demoníaca capacidade de colocar o ouvinte e o cantor na
vida, no mundo.
Diferente da
musa, cujo canto é mudo aos ouvidos dos comuns mortais e só acessível pela
mediação do poeta ou do rapsodo (CAVARERO: 2011), a sereia decodifica o canto
pretensamente divino (transcendente) oferecendo-o a todos os ouvintes
indistintamente. Por sua vez, a neo-sereia concentra o canto da musa (testemunha
ocular, relatora do relato absoluto) e da sereia (narradora que
"resume" o relato da musa).
É um religare à musa, em forma de evocação, o
que compõe a canção "Musa da música", de Dante Ozzetti e Luiz Tatit.
Do turbilhão das discussões sobre os modos de fazer canção na
contemporaneidade, o sujeito da canção embala (guarda e nina) uma figura de
musa que virá restituir à canção sua potencialidade - "que é capaz" -
de ser-cantante do ouvinte.
Conta, canta,
tenta, sente, mostra, zela, troca e grita são os verbos que abrem cada estrofe
da letra e indiciam a ação da "musa da música", esta entidade que
convida o ouvinte a experimentar a vida. Na voz de Ná Ozzetti (Embalar, 2013) o sujeito, tal como pede
a letra, "aposta na canção", na palavra cantada muito próxima à
palavra falada.
Se a canção
"protela a extinção" do ouvinte e do cantor, a neo-sereia - Ná
Ozzetti cantando e chegando a mim via fones de ouvido do celular - é a
musa-sereia que afirma isso: "Musa da música / Mãe das Américas / Filha da
África-fé / Filha da África fé / Na poética pós / Na genética pré", no carrefour, na encruzilhada do relato
historiográfico com os miasmas da memória mítica, linguística, estética da
cultura brasileira.
***
(Dante Ozzetti / Luiz Tatit)
Conta
Que desponta
Que está pronta
Que é capaz
Canta
Não adianta
Mal levanta
Canta mais
Tenta
Experimenta
Movimenta
Não tem paz
Sente
De repente
Que é urgente
Corre atrás
Mostra
Pra quem gosta
Que aposta
Na canção
Zela
Por aquela
Que protela
A extinção
Troca
A que sufoca
E não lhe toca
O coração
Grita
Que é bonita
A que excita
E dá tesão
Musa da música
Mãe das Américas
Filha da África-fé
Musa da música
Mãe das Américas
Filha da África fé
Na poética pós
Na genética pré
22 agosto 2013
Dois lados da canção
Exatamente por não ter a pretensão de ser plena, e por
apontar algo íntimo ao gesto antropofágico (brasileiro), a definição de cultura
que mais considero funcional é a de Lotman: "O conjunto de informações
não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam,
conservam e transmitem" (In. Schnaiderman. Semiótica Russa, 1979, p.31).
Além de distinguir o acumular, o conversar e o transmitir, o
semioticista russo destaca a não-hereditariedade. E é isso o que me interessa
nesse conceito de cultura. Acredito que é este "sol que nasce, a cada dia
/ a cada aniversário / contra o que for hereditário", como cantam os
Titãs, o que "sustenta" o conjunto de informações que compõem a(s)
cultura(s). Este não-hereditário de Lotman me remete ao predomínio do materno,
à problematização do patriarcado, à violência do instituto da herança
patrilinear. Questões-base do pensamento oswaldiano.
Outro motivo da minha bem-querência em relação à definição
de Lotman é a representação de cultura como uma estrutura horizontal,
não-pré-hierarquizada, mas com uma hierarquia de códigos complexa, como rede
sistêmica formada por definidores pontos de contato. Para o autor, "todo o
material da história da cultura pode ser examinado sob o ponto de vista de uma
determinada informação de conteúdo e sob o ponto de vista do sistema de códigos
sociais, as quais permitem expressar esta informação por meio de determinados
signos e torná-la patrimônio destas ou daquelas coletividades humanas" (p.
33). Daí que tudo é significativo: e o que é variável e o que é invariável na
cultura?
Faço estas anotações para alicerçar meu comentário sobre a
canção "Dois lados da canção", de José Luis Braga e Luiz Gabriel
Lopes (Graveola e o Lixo Polifônico,
2009). Temos aqui a explosão do protocolo da assinatura autoral comum à cultura
cancional contemporânea, pois o sujeito da canção parece investido do instinto
caraíba, reescrevendo versos canônicos da canção popular. Por exemplo:
"Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim" transforma-se em
"Quando eu ouço as canções que eu fiz pra você". Ou "Eu juro que
é melhor / não ser o normal" ("Balada do louco") em "Eu
juro que é melhor, enfim / eu juro vai ser melhor assim".
Seria o sujeito da canção "Dois lados da canção" o
destinatário da canção "As canções que você fez pra mim", de Roberto
Carlos e Erasmo Carlos? Pode ser. A mudança no tempo - "hoje" versus
"quando" - é significativa. Enquanto o primeiro parece imóvel, fixo
("amanhã já é outro lugar"), o segundo sugere retorno, mobilidade e
volta. É esse gesto de receber e conservar torcendo e distorcendo a informação
o que parece caracterizar a "cultura brasileira".
Em tempos de inúmeras e confortáveis (econômica e
esteticamente) releituras, reedições e regravações, tendo como base aquilo que
Zeca Baleiro bem definiu como "É mais fácil mimeografar o passado que
imprimir o futuro", "Dois lados da canção" se impõe como ácido
antropofágico necessário ao acúmulo, à conservação e à transmissão da cultura,
este palimpsesto infinito (Barthes).
As citações não se limitam ao campo da letra. O andamento
melódico complexo é a bricolagem das linhas melódicas tanto da versão de
Roberto Carlos, quanto da versão de Maria Bethânia para "As canções que
você fez pra mim", com mais aproximação desta. Além disso, há um rascunho
de imitação do registro vocal de Bethânia aqui e de Belchior ali, nada caricato,
mas destronizante - convivência de temporalidades históricas distintas;
agravamento da "crise do museu", daquilo que está tombado,
canonizado, entronizado (Bakhtin).
O sujeito da canção, aqui, é um operador de relações
intertextuais: diálogo entre sujeitos cancionais e da canção. Canções
iluminando canções, rompendo a noção de linha evolutiva, naquilo que isso se
refere a certo "passar o bastão" (hereditariedade). Continuidade e
movimento a serviço da vivência sem centro dos "tênues fios" que
ligam uma canção à outra. Esta relação afetiva e não submissa com o passado é
decisiva: "pra que te esquecer / se o amor é tanto? / existo em você / por
louco engano", diz o sujeito da canção. "Mas louco é quem me diz / E
não é feliz / Eu sou feliz", ecoam os mutantes.
***
Dois lados da canção
(José Luis Braga / Luiz Gabriel Lopes)
quando eu ouço as canções que eu fiz pra você
o tempo vem dizer
o que o tempo deve ser
o espaço em que agora o meu passo chegar
vai dizer: - amanhã já é outro lugar
eu juro que é melhor, enfim
eu juro vai ser melhor assim
eu já não ligo mais para você
hoje não canto
não falo, não saio, não durmo bem
os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver
desligo você
nus, deslizamos
pra que te esquecer
se o amor é tanto?
existo em você
por louco engano
(José Luis Braga / Luiz Gabriel Lopes)
quando eu ouço as canções que eu fiz pra você
o tempo vem dizer
o que o tempo deve ser
o espaço em que agora o meu passo chegar
vai dizer: - amanhã já é outro lugar
eu juro que é melhor, enfim
eu juro vai ser melhor assim
eu já não ligo mais para você
hoje não canto
não falo, não saio, não durmo bem
os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver
desligo você
nus, deslizamos
pra que te esquecer
se o amor é tanto?
existo em você
por louco engano
01 agosto 2013
Dueto
Tenho usado o termo "indivíduo" para designar o
"ser empírico", social, vivente, biológico, cotidiano. E os termos
"sujeito cancional" e/ou "sujeito da canção" para apontar,
guardadas as diferenças, o "eu-lírico", o "eu-poético", a
voz que "fala" a canção de dentro da canção. Faço isso por uma
questão didática, pois um não se opõe aos outros. Pelo contrário, como tenho
tentado mostrar, a "voz da canção" é no "ser individual"
quando este é singularizado por aquela, quando a subjetividade deste age para
significar a potência daquela.
Estou dizendo que a subjetividade parte da massa, de quando
o indivíduo transvaloriza algo feito para reduzi-lo à uma unidade – a canção
popular de consumo, por exemplo – em cartaz potencializador de desejos. Ou
seja, como também já tentei mostrar aqui, a neo-sereia, o cantor popular
mediatizado, só existe na significação que o ouvinte faz do canto neo-sirênico.
Dito de outro modo, a neo-sereia e o ouvinte existem quando este faz dos
significantes emitidos pelo cantor um cartaz singular.
Deste modo, entramos nos usos feitos por Nietzsche para os
conceitos de "imanência" e "transcendência". Bem como na
definição de "comum" utilizada por Antonio Negri. É quando o
indivíduo dispensa a transcendência do canto emitido às massas, "para
todos" e transforma, por apropriação corporal, a canção em cartaz
subjetivo que se comprova que os elementos imanentes só precisam da excitação
dos sentidos para se mostrar. Quando o "canto comum" agrega
subjetividades por fazer do espaço estético uma "vivência comum",
entramos no "espaço real" significado pelo singular.
É sobre esses "cartazes singulares", enquanto
elementos de composição da multidão, que Barbara Szaniecki disserta no precioso
livro Estética da multidão (2007).
Partindo da problemática da representação da corte de Felipe IV, da Espanha,
até as manifestações globais contemporâneas, a autora enfrenta o complexo
trabalho de verificar as características dos cartazes nos campos sociológico,
político e ontológico, a fim de instaurar uma reflexão sobre as
"manifestações de potência na democracia da multidão".
Szaniecki capta a tensão entre "imagens que agem"
(de poder) e as "imagens que reagem" (de potência) e anota que:
"A noção de potência vai além do conceito de resistência, no sentido de
que não se limita a uma reação negativa (posterior) a uma ação positiva
(anterior). Além de positiva, a potência enquanto poder constituinte implica
movimento, enquanto o poder constituído ou institucionalizado provoca necessariamente
o retorno à inércia" (p. 15).
As investigações de Szaniecki nos ajudam a aprofundar a
ideia que defendemos de que é quando o indivíduo "reage" à canção, ao
canto massificante, apropriando-se, traduzindo e incorporando ela na vivência
pessoal, que ele se mobiliza em direção à potência do desejo. Quando o cantor deixa
de ser um mero representante do transcendente (do mercado) e canta o ouvinte,
cooperando com este na sua expressão imanente, ambos, cúmplices, fundam uma
"estética constituinte" – liberadora, horizontal, sem soberania, fratriarcal.
E é exatamente a recusa à soberania transcendental, ou,
melhor, o duelo entre transcendência e imanência aquilo que encontramos em
"Dueto", de Chico Buarque. Gravada pelo próprio compositor em
parceria com Nara Leão, para a peça O
Rei de Ramos (1979), de Dias Gomes, a canção recebeu uma regravação de
Izabel Padovani e Renato Braz (Desassossego,
2006).
A crise na representação se configura da seguinte forma: 1-
O sujeito da canção aponta as "imagens de poder" (transcendência):
"Consta nos astros / Nos signos / Nos búzios / Tá lá no evangelho /
Garantem os orixás / Nos autos / Nas bulas / Nos dogmas"; 2- O sujeito
afirma o desejo: "Serás o meu amor / Serás a minha paz"; 3- O sujeito
rompe com as "imagens de poder", caso estas contrariem o desejo:
"Danem-se os astros / Os autos / Os signos / Os dogmas / Os búzios / As
bulas"; 4- A crise de representação é instaurada e uma nova afirmativa é
posta: "Consta na pauta / No karma / Na carne / Passou na novela / Está no
seguro / Pixaram no muro / Mandei fazer um cartaz"; e 5- A imanência é
exaltada: "Consta nos mapas / Nos lábios / Nos lápis". Tudo-nada
depende deles, dos amantes, da disposição do corpo-alma deles.
O sujeito canta sua posição diante da crise entre a representação
transcendente (de fora, institucionalizada, burocrática, ordenadora) e a
manifestação da potência imanente (de dentro, inacabada, experimental, de
carne, osso e memória). O sujeito é mais que um espectador do
"destino". E ergue cartaz próprio para afirmar isso: "Serás o
meu amor / Serás a minha paz".
O gesto de erguer um cartaz, contrariando todas as
representações que o limitavam, leva o sujeito da canção a se aproximar
fraternalmente do ouvinte também desejoso de seguir os próprios desejos. Erguer
o cartaz, cantar o desejo é aquilo que de "comum" existe entre
sujeito cancional e ouvinte. Este se sente traduzido, "representado"
por aquele, mas não transcendentalmente, e sim de forma horizontal, porque não
há distância entre aquilo que os dois sentem, ao contrário, há um "arranjo
interno" que os aproxima.
Portanto, o aporte que Barbara Szaniecki traz à nossa
discussão, alicerçada nas leituras de Bakhtin, Foucault e, principalmente,
Antonio Negri, aprofundam as questões que defendemos aqui. A multiplicidade da
potência, geradora de cartazes, alimenta e é alimentada por aquilo que temos
chamado de neo-sereia: o ser estético que age no cancionista humano. A eficácia
do cartaz-canção está na imediata sintonia acesa entre cantor e ouvinte. Nenhum
dos dois perde a identidade, eles se comunicam no canto de potências
assemelhadas.
É por esta perspectiva que entendemos o sujeito de
"Minha tribo sou eu", de Zeca Baleiro. Quando o sujeito
"diz": "Eu não sou cristão / eu não sou ateu / Não sou japa não
sou chicano / Não sou europeu / Eu não sou negão / Eu não sou judeu / Não sou
do samba nem sou do rock / Minha tribo sou eu", mais do que negar todas
essas bandeiras generalizantes, ou impor a exacerbação do individualismo cego,
ele está reivindicando o direito à íntima subjetividade, que não se vê
representada nem com isso, nem com aquilo que o sujeito elenca.
Segundo Szaniecki, "Em termos políticos, e
possivelmente estéticos, o conceito de 'povo' – corpo social representado de
forma transcendente – seria superado pelo conceito de 'multidão' – cooperação
social expressa de forma imanente. Passamos de uma unidade representacional e
transcendental abstrata para uma multiplicidade cooperativa e imanente
concreta" (p. 110).
Seguindo esta linha de pensamento, os sujeitos das canções
de Chico Buarque e Zeca Baleiro são símbolos metafóricos deste "ser da
multidão", que não se apaga na massa, ao contrário, distingue-se e comunga
com outros, também distintos e comuns, ao se misturar. Eis a demonstração do "desejo
de uma vida comum", estudada por Antonio Negri. Para o autor, em 5 lições sobre império: "A
multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação das diferenças,
mas é o reconhecimento de que, por trás das identidades e diferenças, pode
existir 'algo comum'" (p. 148). Ao que Barbara Szaniecki complementa:
"A cooperação, comunicação e criação da multidão seria a materialização
desse 'algo comum'" (p. 112).
Produto da indústria cultural, de massa, a canção popular
não tem um "dono efetivo". Obviamente, não estou tratando aqui de
direitos autorais, mas da potência comunicativa da canção. Estou querendo dizer
que ao cantar (traduzir em canção) aquilo que o ouvinte "quer" ouvir,
o cantor é neo-sereia que mobiliza e inflama o desejo. Enquanto expressão de
potência, o cancionista coopera produtivamente na vida do
ouvinte-expressão-de-potência. E este ouvinte se "organiza" e se
manifesta no ato da audição. É o ouvinte na multidão quem transforma o verso
cancional em potência.
***
Dueto
(Chico Buarque)
Ela: Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar
Os dois: Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se
Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos
Os dois: Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz
Ele: Consta na pauta
Ela: No karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ela: Está no seguro
Ele: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz
Os dois: Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: Nos lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca
(Chico Buarque)
Ela: Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar
Os dois: Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se
Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos
Os dois: Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz
Ele: Consta na pauta
Ela: No karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ela: Está no seguro
Ele: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz
Os dois: Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: Nos lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca