No encarte de Criolo
e Emicida ao vivo (2013), Emicida agradece "antes de mais nada a meus
orixás e antepassados que deram seu sangue para que hoje eu ocupasse este
lugar". Sabemos qual é este lugar mencionado pelo rapper: o lugar de voz,
de ser rapper. Em "Triunfo", por exemplo, Emicida explica este lugar:
"Uns rimam por ter talento, eu rimo porque eu tenho uma missão / Sou
porta-voz de quem nunca foi ouvido / Os esquecidos lembram de mim porque eu
lembro dos esquecidos / Tipo embaixador da rua".
Abro um parêntese para lembrar alguns versos de "Um bom
lugar", de Sabotage: "Um bom lugar / Se constrói com humildade é bom
lembrar / Aqui é o mano Sabotage / Vou seguir sem pilantragem, vou honrar,
provar / No Brooklin to sempre ali / Pois vou seguir, com Deus enfim / (...) / Bem
vindo ao inferno, aqui é raro, eu falo sério / Pecados anticristos e mortal
patifaria / (...) / Do ano 2000 pra frente / Homens do passado, pensando no
futuro, vivendo no presente / Há três tipos de gente / Os que imaginam o que
acontece, / Os que não sabem o que acontece, / E nós que faz acontecer, / O
bolo, guacê".
A expressão utilizada por Emicida "A rua é noiz"
(nó, nós, noise - barulho) condensa a ação do rapper-porta-voz: indivíduo que
se expande no coletivo ao guardar na voz a reivindicação da coletividade, o
canto do povo de um lugar historicamente posto à margem por certa parcela (a
nata) da sociedade. Tema recuperado por Caetano Veloso, posicionado noutro
ponto da questão, no verso "Neguinho que eu falo é nós". E
criticamente ironizado por Criolo nos versos "E quem se julga a nata
cuidado pra não quaiar".
"Se o rap se entregar favela vai ter o que?",
pergunta Emicida, levando-nos a pensar sobre o texto "Depois daquilo tudo
que passou em junho", de Marcus Vinícius Faustini, sobre as manifestações
que estão afirmando o esgotamento da democracia representativa: "Muita
gente disse que esse movimento não tinha líderes, o que não é verdade. Devemos
aos coletivos de juventude urbana - de favelas, mobilidade, arte, direitos das
mulheres, movimento negro, LGBT, anarquistas, movimento de luta por moradia - o
núcleo duro das mobilizações. A vibrante cena social e cultural do país está
nestes coletivos de vida e ação, com forte presença da juventude, que o poder
público prefere não reconhecer como parceiros das necessárias transformações da
sociedade, canalizando energia apenas para acordos com o grande capital".
(Prosa & Verso, 06/07/2013).
O rapper é este catalisador da fusão entre vida/arte e ação.
"Artista independente leva no peito a responsa, tiozão / E não vem dizer
que não", canta Criolo agregando voz aos coletivos que, à margem das
representações políticas constituídas, se mobilizam, se retroalimentam (afetando
o macro) e reagem à brutalidade cotidiana. "Eu sou guerreiro do rap,
sempre em alta voltagem / Um por um, Deus por nós, tô aqui de passagem / Vida
loka, eu não tenho dom pra vítima / Justiça e liberdade, a causa é
legítima", diz Mano Brown.
"Minha conclusão é que muito buso ainda vai pegar fogo
/ Aí, todo maloqueiro tem em si / Motivação pra ser Adolf Hitler ou Gandhi / E
se a maioria de nóis partisse pro arrebento? / A porra do congresso tava em
chama faz tempo! / Eu nasci junto a pobreza que enriquece o enredo / Eu cresci
onde os muleque vira homem mais cedo", canta Emicida. O rapper incorpora a
revolta, tal como o Parangolé P15 Capa
11 (1967) de Hélio Oiticica sugeria no corpo de Nildo da Mangueira.
A radicalização das referências - Hitler e Gandhi - sugere
um rascunho de resposta à questão apresentada por Nestor Garcia Canclini no
final do livro Culturas híbridas. Ou
seja, como ser radical sem ser fundamentalista, na crítica social e no
questionamento das pretensões do neoliberalismo tecnocrático?
Criolo e Emicida mostram que, no Brasil, em sua experiência
sincrética, misturado ao samba, ao reggae, ao afrobeat, à ginga das quebradas,
ou seja, sem negar a memória religiosa africana, o rap é polirrítmico, não tem
o ranço segregacionista que o caracteriza nos EUA. Aqui, através da reação
indígena e africana à imposição católica, não foi preciso abandonar os deuses,
como no caso estadunidense do protestantismo. Nem sufocar os antepassados que
deram seu sangue para que hoje o rapper ocupe seu lugar como o dedo na ferida,
a voz do canto do povo de um lugar, a reivindicação cidadã.
E ao não encartarem as letras do rap, eles recuperam a
tradição da poesia oral/vocal, dialogam com os repentistas, com os cantadores
de feira, também estes cantores das agruras e místicas do povo de um lugar,
instalam a rinha dos mc's, feita para o improviso, para o desafio. O rapper
problematiza as fronteiras entre criação, produção e recepção; cultura,
capitalismo e consumo. Ele é autor e produtor. Mediadas pelo capital, as
tendências estéticas entram em crise diante da ação/resistência política
progressista do rap.
Em "Bogotá" (Criolo) a referência literária é
nítida. Mas, ao invés de "Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do
rei" (Manuel Bandeira), temos: "Vamos embora para Bogotá / (...) /
Vai ser melhor do que em Pasárgada / Agradar até o rei", deslocando a ação
verbal para o convite plural e intensificando a mítica do lugar de origem,
pois, se para o sujeito do poema "Aqui eu não sou feliz" e "Lá a
existência é uma aventura", o sujeito do rap quer levar para lá toda a
beleza que há aqui. Afinal, "Desde pequeno sabe o que é isso: / No fio da
navalha / Brincar no precipício". "Se você quer amor, chegue aqui /
Se quer esquecer a dor, venha pra cá / Pois a ilusão é doce como o mel / E cada
um sabe o preço do papel / Quem tem / E de onde vem", canta.
Na gravação ao vivo, aos versos de Criolo se conectam os
versos de Emicida evocando Iemanjá e Ogum como guias dos antepassados que
orientam a ação do rapper: "(...) É canto que há no azul do vestido de
Iemanjá / (...) / eu quero provar sabores de lá / (...) / minha vida cabe numa
mochila / tá bom só um cantinho pra cochilar / a noite Ogum vai me
vigiar".
Como vemos, "o rap ainda é o dedo na ferida" do
elogio cego dos civilizados embasbacados com a luxuosidade de um Maracanã
restaurado a altos custos em contraposição à realidade fora do estádio feito
ilha. Fora da ilha, a polícia mostra "como é que pretos, pobres e mulatos,
e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". Fora da ilha, a
lenta luta diária é o regime. E "o rap é a resistência; a voz das ruas, de
todas as malocas".
***
Bogotá
(Criolo)
Vamos embora para Bogotá
Muambar, Muambei
Vamos cruzar Transamazônica
Pra levar, Pra freguês
Vai ser melhor do que em Pasárgada
Agradar até o rei
Se você quer amor, chegue aqui
Se quer esquecer a dor, venha pra cá
Pois a ilusão é doce como o mel
E cada um sabe o preço do papel
Quem tem
E de onde vem
Es qualité no exterior
Desde pequeno sabe o que é isso:
No fio da navalha, brincar no precipício
A vida e a morte, escolha o seu troféu
Pois cada um sabe o preço do papel que tem
E de onde vem
Es qualité no exterior
Emicida:
Ei, areia, espuma, sereia, escuna, mareia na bruma e a brisa, ah
pé no chão, de canto com a solidão e seu acalanto é o manto de
é canto que há no azul do vestido de Iemanjá
que quanto que ah faz toda vez, encontra paz na minha pequenez
eu quero provar sabores de lá
amores, olhares, lugares de ah
porque eu tô que não me aguento
é pouco tudo eu não condeno
é louco, tio
minha vida cabe numa mochila
tá bom só um cantinho pra cochilar
a noite Ogum vai me vigiar e eu vigiar
(Criolo)
Vamos embora para Bogotá
Muambar, Muambei
Vamos cruzar Transamazônica
Pra levar, Pra freguês
Vai ser melhor do que em Pasárgada
Agradar até o rei
Se você quer amor, chegue aqui
Se quer esquecer a dor, venha pra cá
Pois a ilusão é doce como o mel
E cada um sabe o preço do papel
Quem tem
E de onde vem
Es qualité no exterior
Desde pequeno sabe o que é isso:
No fio da navalha, brincar no precipício
A vida e a morte, escolha o seu troféu
Pois cada um sabe o preço do papel que tem
E de onde vem
Es qualité no exterior
Emicida:
Ei, areia, espuma, sereia, escuna, mareia na bruma e a brisa, ah
pé no chão, de canto com a solidão e seu acalanto é o manto de
é canto que há no azul do vestido de Iemanjá
que quanto que ah faz toda vez, encontra paz na minha pequenez
eu quero provar sabores de lá
amores, olhares, lugares de ah
porque eu tô que não me aguento
é pouco tudo eu não condeno
é louco, tio
minha vida cabe numa mochila
tá bom só um cantinho pra cochilar
a noite Ogum vai me vigiar e eu vigiar