"Caraíba:
Feiticeiro entre os índios brasileiros. Eram os cantadores profissionais da
tribo e iniciavam os cantos religiosos do cerimonial, bem como a cura dos
doentes", registra Mário de Andrade no seu Dicionário musical brasileiro (1989, p. 114). Se levarmos em
consideração a ideia de que "a música cura", como a cantora Gal Costa
disse em entrevista ao programa Viva voz
(07/02/2013), e que a cura significa, tal e qual atesta o dicionário,
"tratamento contra uma doença; recuperação da saúde; curativo; remédio;
solução para algo, regeneração", podemos inferir que a Revolução Caraíba
divulgada por Oswald de Andrade já vem acontecendo há tempos.
Neo-sereias, de
instinto caraíba, nossos cancionistas desempenham no mundo urbano contemporâneo
a função do feiticeiro que cura e inicia o ouvinte. Ao equilibrar na voz um
texto carregado de significados e uma melodia exata para figuratizar tal
mensagem, o cancionista desperta no ouvinte o desejar de um desejo latente, mas
até então não decifrado. O cancionista neo-sereia é decifrador de desejos.
"Só podemos
atender ao mundo orecular", anota Oswald no "Manifesto
antropófago" (A utopia
antropofágica: 2011, p. 69). Ao amalgamar "auricular" - do ouvido
- e "oracular" - do oráculo - no neologismo "orecular",
Oswald investe no sentido da audição, da escuta como meio de acesso às
sabedorias oferecidas pela gaia ciência. O oráculo fala antropofagicamente pela
orelha, esta é o meio e a mensagem. É assim que "O espírito recusa-se a
conceber o espírito sem o corpo" (idem, p. 69). Pensamos pelo ouvido, daí
que "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do
antropófago". (idem, p. 67).
É o instinto
caraíba que promove a transformação do patriarcado em matriarcado, do tabu -
proibições às tradições orais tidas como menores - em totem, em guias de
iluminação: consagração do corpo sobre o intelecto - "Nunca admitimos o
nascimento da lógica entre nós (...) A magia e a vida (...) Contra as
sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas" (idem, p. 69-71).
É na canção
popular, espaço fértil para o canto das várias questões do Humano, feita para
ninar - no mais maternal que este termo contem - o desejo do ouvinte, que
reconhecemos a manifestação dos instintos, da liberdade dos prazeres vitais.
Dito de outro modo: "Transformação permanente do tabu em totem" no
momento em que o ouvinte se resolve durante a escuta de uma frase cancional.
Cantar é afirmar-se. Ser cantado também.
Essa
transformação utópica, renunciando a lógica e a metafísica patriarcais, dá ânimo
para que o indivíduo sobreviva na civilização. Foi assim nas aldeias dizimadas,
nas senzalas, nos porões dos navios negreiros "ouvindo o batuque das ondas
/ Compasso de um coração de pássaro / No fundo do cativeiro / É o semba do
mundo calunga / Batendo samba em meu peito / Kawo Kabiecile Kawo / Okê arô oke
(...) O Batuque das ondas / Nas noites mais longas / Me ensinou a cantar",
como canta o sujeito de "Yá Yá Massemba" na voz de Maria Bethânia.
Cantar é resistir.
Para Oswald esta
revolução se dá quando sobrepomos o selvagem ao civilizado; substituímos o
verbo "to be" pelo substantivo "tupi"; e transformarmos os
tabus da cultura escrita em totens de uma cultura primitiva, sem recalques,
livre das neuroses que fazem o sujeito cantar "Neguinho quer justiça e harmonia
para se possível todo mundo / Mas a neurose de neguinho vem e estraga
tudo", em "Neguinho" na voz de Gal Costa.
Trata-se de
transvalorizar a cultura do conquistador, em nome da antropofagia. "É
preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas o
caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci", anota Oswald (idem, p. 72).
Ou seja, a valorização da mãe já existente e bastante, do matriarcado sobre o
patriarcado. "Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe
dos viventes", Oswald (p. 71).
No Brasil,
Guaraci tem uma parceira: Iemanjá, com quem divide a maternidade dos viventes,
dos que não separam o espírito do corpo. Iemanjá "é o orixá dos Egbá, uma
nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe
ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar
na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX. Evidentemente, não
lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os
objetos sagrados, suportes de axé da divindade.", anota Pierre Verger em Orixás (1981, p. 190).
Apesar de
complexa, não é difícil imaginar a transplantação de Iemanjá para o Brasil,
onde se tornou a mãe de todos os orixás e cujas homenagens - vestir-se de
branco e derramar bebida para o orixá - se disseminou pelas várias religiões, e
pelos não religiosos. "Contra a Memória fonte do costume. A experiência
pessoal renovada", diria Oswald no "Manifesto antropófago"
(idem, p. 73).
Foi também
movido pelo instinto caraíba que Antonio Risério transcriou alguns orikis para
o livro Oriki orixá (1996). Amparado
por textos teórico-ensaísticos, Risério oferece ao público brasileiro tão
íntimo afetivamente à língua iorubana uma oportunidade rara e fundamental de contato com
este gênero da linguagem oral.
"O
oriki-nome é um epíteto. O oriki-poema é, basicamente, um conjunto de
epítetos". (RISÉRIO: 1996, p. 40). Vocais, "orikis são emitidos
para ninar crianças, receber visitas, celebrar deuses; ressoam, também, em
batizados, noivados e funerais; comparecem, ainda, em cumprimentos palacianos, batalhas
e festivais" (idem, p. 41). "Em meio a esses diversos tipos de oriki,
destacam-se, sem dúvida, os orikis de orixá, que são figurações concentradas (e
não raro enigmáticas) dos deuses do panteão nagô-iorubana" (idem, p. 41).
Risério chama
atenção ainda para o fato que ao emitir um oriki o emissor é movido e tomado
por uma "densidade energética", o poder da palavra vocalizada é posto
em circulação cheio de "respeito e receio". Não há disposição rígida
de métrica ou linearidade no oriki, mas o padrão orgânico do desejo de sagrar o
encontro entre emissor e orixá. Portanto, não há enredo e/ou narrativa lógica,
mas a justaposição paralelística anafórica de escolhas afetivas de epítetos.
"O que vemos no oriki é justamente isso: o giro hiperbólico da palavra -
vale dizer, uma retórica do exagero no plano referencial do discurso. (...) Da
imagem à metáfora, o oriki aparece então como uma prática poética classificável,
em termos poundianos, como fanopeia - 'a casting of images upon the visual
imagination'." (idem, p. 45).
Da tradição
oral, emitido para curar o emissor, o oriki é transmitido entre gerações
através de reiterações de unidades estruturais a fim de manter aceso o
frevo-axé. É assim que, mesmo mantendo tais estruturas nucleares, os orikis vão
se adaptando a contextos e necessidades por meio da absorção intertextual
movida pelo afeto do emissor. Obviamente, a categoria autor está suspensa, ou
melhor, posta no coletivo, na rotatividade do domínio público. "Oriki:
ideograma, objeto sígnico construído via sintaxe de montagem, assemblage verbal
fundada no princípio da parataxe. Oriki: fanomelopeia intertextual",
conclui Risério (idem, p. 54).
Entre os orikis
transcriados por Antonio Risério está o "Oriki de Iemanjá":
"Iemanjá que se estende na amplidão / Aiabá que vive na água funda / Faz a
mata virar estrada / Bebe cachaça na cabaça / Permanece plena em presença do
rei. / Iemanjá se revira quando vem a ventania / Gira e rodopia em volta da
vila. / Iemanjá descontente destrói pontes. / Come na casa, come no rio. / Mãe
senhora do seio que chora. / Pêlo espesso na buceta / Buceta seca no sono /
Como inhame ressequido. / Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa. / Velha
dona do mar. / Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei. / Descansa qualquer um em qualquer terra. /
Cá na terra, cala — à flor d’água, fala."
Como não
reconhecer neste oriki estruturas que estão no nosso consciente coletivo? E é captando
tais sensações que o grupo Axial (Axial,
2004) transcria verbivocalmente o oriki, recoloca-o na voz. Com a sonoridade
autêntica que é peculiar ao grupo formado por Sandra Ximenez (voz e teclado),
Felipe Julián (baixo e computadores), Leonardo Muniz Corrêa (saxofones e
clarinete) e Yvo Ursini (guitarra e eletrônicos), o Axial religa a prática religiosa
ao círculo comunitário da canção mediatizada.
O grupo Axial
amplia no arranjo melódico o clima religioso do oriki, através de uma ambiência
sagrada orgânica e sintetizada. Claro que não falamos aqui de religião, mas de
vida, posto que, assim como acreditamos tenha sido na Grécia arcaica, a vida
iorubana não se distingui da vivência religiosa, mística. "Movendo-se num
universo religioso, os africanos possuem múltiplos templos e uma conduta
religiosa multifária. O próprio iniciado na esfera do sagrado é, ele mesmo, um
templo vivo do divino. (...) A natureza não é vazia. Seus objetos e fenômenos
estão carregados de significância religiosa. De vibrações especiais",
anota Risério (idem, p. 61).
Importa destacar
que o grupo não vocaliza o oriki completo tal e qual proposto por Risério. O
grupo investe no equilíbrio entre a palavra cantada e a palavra falada através do amor materno, do não sensual da Iemanjá africana de grande
força sexual. Deixa de fora trechos como "Aiabá que vive na água funda /
Faz a mata virar estrada / Bebe cachaça na cabaça / (...) / Pêlo espesso na
buceta / Buceta seca no sono / Como inhame ressequido". E acrescenta novos
epítetos: "(Cada tua filha, uma ilha / Pétala n’água salgada / Lágrima
cristalizada.)". Ou seja, a ênfase é mesmo na relação mãe-filha, ou
melhor, na cura promovida pelo mar, domínio da mãe, na filha "pétala
n'água salgada". Deste modo, se a mãe tem seios fartos de onde jorram
águas (salgadas) de cura, a filha é a "lágrima [água salgada] cristalizada".
O que temos,
portanto, é um novo oriki, ligado àquele, mas renovado, adaptado, transcriado,
recompondo aquilo que Risério identifica no âmbito iorubá tradicional:
"uma rotatividade de unidades verbais numa textualidade descentrada"
(p. 53). E assim, "muda o mundo, mudam os deuses, mudam os textos que
tematizam/condensam as personalidades e peripécias das personagens
extra-humanas, mudam as vias de circulação textual" (p. 171). Do mesmo
modo que a revolução caraíba vai se disseminando ciclicamente, perenemente na
cultura, através da vocalização sirênica dos cancionistas. E é quando estes se
transmutam em feiticeiros promotores da cura do ouvinte que surge a neo-sereia.
***
Oriki de Iemanjá
(Sandra Ximenez / Antônio Risério)
Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa.
Velha dona do mar.
Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.
Descansa qualquer um em qualquer terra.
Cá na terra, cala – à flor d’água, fala.
(Cada tua filha, uma ilha
Pétala n’água salgada
Lágrima cristalizada.)
(Sandra Ximenez / Antônio Risério)
Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa.
Velha dona do mar.
Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.
Descansa qualquer um em qualquer terra.
Cá na terra, cala – à flor d’água, fala.
(Cada tua filha, uma ilha
Pétala n’água salgada
Lágrima cristalizada.)