28 fevereiro 2013

Oriki de Iemanjá



"Caraíba: Feiticeiro entre os índios brasileiros. Eram os cantadores profissionais da tribo e iniciavam os cantos religiosos do cerimonial, bem como a cura dos doentes", registra Mário de Andrade no seu Dicionário musical brasileiro (1989, p. 114). Se levarmos em consideração a ideia de que "a música cura", como a cantora Gal Costa disse em entrevista ao programa Viva voz (07/02/2013), e que a cura significa, tal e qual atesta o dicionário, "tratamento contra uma doença; recuperação da saúde; curativo; remédio; solução para algo, regeneração", podemos inferir que a Revolução Caraíba divulgada por Oswald de Andrade já vem acontecendo há tempos.
Neo-sereias, de instinto caraíba, nossos cancionistas desempenham no mundo urbano contemporâneo a função do feiticeiro que cura e inicia o ouvinte. Ao equilibrar na voz um texto carregado de significados e uma melodia exata para figuratizar tal mensagem, o cancionista desperta no ouvinte o desejar de um desejo latente, mas até então não decifrado. O cancionista neo-sereia é decifrador de desejos.
"Só podemos atender ao mundo orecular", anota Oswald no "Manifesto antropófago" (A utopia antropofágica: 2011, p. 69). Ao amalgamar "auricular" - do ouvido - e "oracular" - do oráculo - no neologismo "orecular", Oswald investe no sentido da audição, da escuta como meio de acesso às sabedorias oferecidas pela gaia ciência. O oráculo fala antropofagicamente pela orelha, esta é o meio e a mensagem. É assim que "O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo" (idem, p. 69). Pensamos pelo ouvido, daí que "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago". (idem, p. 67).
É o instinto caraíba que promove a transformação do patriarcado em matriarcado, do tabu - proibições às tradições orais tidas como menores - em totem, em guias de iluminação: consagração do corpo sobre o intelecto - "Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós (...) A magia e a vida (...) Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas" (idem, p. 69-71).
É na canção popular, espaço fértil para o canto das várias questões do Humano, feita para ninar - no mais maternal que este termo contem - o desejo do ouvinte, que reconhecemos a manifestação dos instintos, da liberdade dos prazeres vitais. Dito de outro modo: "Transformação permanente do tabu em totem" no momento em que o ouvinte se resolve durante a escuta de uma frase cancional. Cantar é afirmar-se. Ser cantado também.
Essa transformação utópica, renunciando a lógica e a metafísica patriarcais, dá ânimo para que o indivíduo sobreviva na civilização. Foi assim nas aldeias dizimadas, nas senzalas, nos porões dos navios negreiros "ouvindo o batuque das ondas / Compasso de um coração de pássaro / No fundo do cativeiro / É o semba do mundo calunga / Batendo samba em meu peito / Kawo Kabiecile Kawo / Okê arô oke (...) O Batuque das ondas / Nas noites mais longas / Me ensinou a cantar", como canta o sujeito de "Yá Yá Massemba" na voz de Maria Bethânia. Cantar é resistir.
Para Oswald esta revolução se dá quando sobrepomos o selvagem ao civilizado; substituímos o verbo "to be" pelo substantivo "tupi"; e transformarmos os tabus da cultura escrita em totens de uma cultura primitiva, sem recalques, livre das neuroses que fazem o sujeito cantar "Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo / Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo", em "Neguinho" na voz de Gal Costa.
Trata-se de transvalorizar a cultura do conquistador, em nome da antropofagia. "É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci", anota Oswald (idem, p. 72). Ou seja, a valorização da mãe já existente e bastante, do matriarcado sobre o patriarcado. "Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes", Oswald (p. 71).
No Brasil, Guaraci tem uma parceira: Iemanjá, com quem divide a maternidade dos viventes, dos que não separam o espírito do corpo. Iemanjá "é o orixá dos Egbá, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX. Evidentemente, não lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os objetos sagrados, suportes de axé da divindade.", anota Pierre Verger em Orixás (1981, p. 190).
Apesar de complexa, não é difícil imaginar a transplantação de Iemanjá para o Brasil, onde se tornou a mãe de todos os orixás e cujas homenagens - vestir-se de branco e derramar bebida para o orixá - se disseminou pelas várias religiões, e pelos não religiosos. "Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada", diria Oswald no "Manifesto antropófago" (idem, p. 73).
Foi também movido pelo instinto caraíba que Antonio Risério transcriou alguns orikis para o livro Oriki orixá (1996). Amparado por textos teórico-ensaísticos, Risério oferece ao público brasileiro tão íntimo afetivamente à língua iorubana uma oportunidade rara e fundamental de contato com este gênero da linguagem oral.
"O oriki-nome é um epíteto. O oriki-poema é, basicamente, um conjunto de epítetos". (RISÉRIO: 1996, p. 40). Vocais, "orikis são emitidos para ninar crianças, receber visitas, celebrar deuses; ressoam, também, em batizados, noivados e funerais; comparecem, ainda, em cumprimentos palacianos, batalhas e festivais" (idem, p. 41). "Em meio a esses diversos tipos de oriki, destacam-se, sem dúvida, os orikis de orixá, que são figurações concentradas (e não raro enigmáticas) dos deuses do panteão nagô-iorubana" (idem, p. 41).
Risério chama atenção ainda para o fato que ao emitir um oriki o emissor é movido e tomado por uma "densidade energética", o poder da palavra vocalizada é posto em circulação cheio de "respeito e receio". Não há disposição rígida de métrica ou linearidade no oriki, mas o padrão orgânico do desejo de sagrar o encontro entre emissor e orixá. Portanto, não há enredo e/ou narrativa lógica, mas a justaposição paralelística anafórica de escolhas afetivas de epítetos. "O que vemos no oriki é justamente isso: o giro hiperbólico da palavra - vale dizer, uma retórica do exagero no plano referencial do discurso. (...) Da imagem à metáfora, o oriki aparece então como uma prática poética classificável, em termos poundianos, como fanopeia - 'a casting of images upon the visual imagination'." (idem, p. 45).
Da tradição oral, emitido para curar o emissor, o oriki é transmitido entre gerações através de reiterações de unidades estruturais a fim de manter aceso o frevo-axé. É assim que, mesmo mantendo tais estruturas nucleares, os orikis vão se adaptando a contextos e necessidades por meio da absorção intertextual movida pelo afeto do emissor. Obviamente, a categoria autor está suspensa, ou melhor, posta no coletivo, na rotatividade do domínio público. "Oriki: ideograma, objeto sígnico construído via sintaxe de montagem, assemblage verbal fundada no princípio da parataxe. Oriki: fanomelopeia intertextual", conclui Risério (idem, p. 54).
Entre os orikis transcriados por Antonio Risério está o "Oriki de Iemanjá": "Iemanjá que se estende na amplidão / Aiabá que vive na água funda / Faz a mata virar estrada / Bebe cachaça na cabaça / Permanece plena em presença do rei. / Iemanjá se revira quando vem a ventania / Gira e rodopia em volta da vila. / Iemanjá descontente destrói pontes. / Come na casa, come no rio. / Mãe senhora do seio que chora. / Pêlo espesso na buceta / Buceta seca no sono / Como inhame ressequido. / Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa. / Velha dona do mar. / Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.  / Descansa qualquer um em qualquer terra. / Cá na terra, cala — à flor d’água, fala."
Como não reconhecer neste oriki estruturas que estão no nosso consciente coletivo? E é captando tais sensações que o grupo Axial (Axial, 2004) transcria verbivocalmente o oriki, recoloca-o na voz. Com a sonoridade autêntica que é peculiar ao grupo formado por Sandra Ximenez (voz e teclado), Felipe Julián (baixo e computadores), Leonardo Muniz Corrêa (saxofones e clarinete) e Yvo Ursini (guitarra e eletrônicos), o Axial religa a prática religiosa ao círculo comunitário da canção mediatizada.
O grupo Axial amplia no arranjo melódico o clima religioso do oriki, através de uma ambiência sagrada orgânica e sintetizada. Claro que não falamos aqui de religião, mas de vida, posto que, assim como acreditamos tenha sido na Grécia arcaica, a vida iorubana não se distingui da vivência religiosa, mística. "Movendo-se num universo religioso, os africanos possuem múltiplos templos e uma conduta religiosa multifária. O próprio iniciado na esfera do sagrado é, ele mesmo, um templo vivo do divino. (...) A natureza não é vazia. Seus objetos e fenômenos estão carregados de significância religiosa. De vibrações especiais", anota Risério (idem, p. 61).
Importa destacar que o grupo não vocaliza o oriki completo tal e qual proposto por Risério. O grupo investe no equilíbrio entre a palavra cantada e a palavra falada através do amor materno, do não sensual da Iemanjá africana de grande força sexual. Deixa de fora trechos como "Aiabá que vive na água funda / Faz a mata virar estrada / Bebe cachaça na cabaça / (...) / Pêlo espesso na buceta / Buceta seca no sono / Como inhame ressequido". E acrescenta novos epítetos: "(Cada tua filha, uma ilha / Pétala n’água salgada / Lágrima cristalizada.)". Ou seja, a ênfase é mesmo na relação mãe-filha, ou melhor, na cura promovida pelo mar, domínio da mãe, na filha "pétala n'água salgada". Deste modo, se a mãe tem seios fartos de onde jorram águas (salgadas) de cura, a filha é a "lágrima [água salgada] cristalizada".  
O que temos, portanto, é um novo oriki, ligado àquele, mas renovado, adaptado, transcriado, recompondo aquilo que Risério identifica no âmbito iorubá tradicional: "uma rotatividade de unidades verbais numa textualidade descentrada" (p. 53). E assim, "muda o mundo, mudam os deuses, mudam os textos que tematizam/condensam as personalidades e peripécias das personagens extra-humanas, mudam as vias de circulação textual" (p. 171). Do mesmo modo que a revolução caraíba vai se disseminando ciclicamente, perenemente na cultura, através da vocalização sirênica dos cancionistas. E é quando estes se transmutam em feiticeiros promotores da cura do ouvinte que surge a neo-sereia.

***

Oriki de Iemanjá
(Sandra Ximenez / Antônio Risério)

Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa.
Velha dona do mar.
Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.
Descansa qualquer um em qualquer terra.
Cá na terra, cala – à flor d’água, fala.

(Cada tua filha, uma ilha
Pétala n’água salgada
Lágrima cristalizada.)

14 fevereiro 2013

Exagerado



"A canção popular é produzida na intersecção da música com a língua natural. Valendo-se de leis musicais para sua estabilização sonora, a canção não pode, de outra parte, prescindir do modo de produção da linguagem oral. Daí a sensação de que um pouco de cada nova obra já existia no imaginário do povo, senão como mensagem final ao menos como maneira de dizer", anota Luiz Tatit em Musicando a semiótica (p. 87).
Tendo isso em mente, podemos dizer que, se é um erro falar em um "jeito certo" de cantar essa ou aquela canção, não podemos esquecer que cada mensagem "pede" por um jeito mais “apropriado” de emissão vocal. Ou seja, se para que ocorra a eficácia da intenção na emissão de uma mensagem o que é dito precisa estar em sintonia com o modo de dizer, e é assim, por exemplo, que identificamos um ator canastrão, na canção acontece de igual modo. "A própria credibilidade enunciativa implicada nas execuções vocais depende do êxito da apreensão simultânea do modo de produção da linguagem oral em seu interior" (Tatit, idem, p. 88).
É no reconhecimento, pelo ouvinte, de que aquilo só poderia ser dito/cantado daquela forma que reside o vigor da canção: na integração entre letra e melodia na voz; na "equivalência entre sintaxe e ritmo", anota Tatit (idem, p. 87). Dito de outro modo, se não há um único "jeito certo" de dizer/cantar determinada mensagem, há um acordo íntimo e invisível entre emissor e ouvinte para que este reconheça na fala/canto daquele a credibilidade e o efeito de real necessários à fruição e, quiçá, ao entendimento. "Nossa vasta experiência com a linguagem oral [provoca] um efeito inevitável de 'realidade' enunciativa: alguém diz alguma coisa aqui e agora" (Tatit, idem).
Vem daí, e da memória cancional do ouvinte, toda a problemática e os perigos que residem na mudança de ritmo, de frequência melódica de uma canção cuja estabilidade do conteúdo na forma, e vice-versa, já havia sido engendra por um cancionista. Volto ao exemplo da versão de "Chuva, suor e cerveja" (Caetano Veloso) na voz de Simone (Quatro paredes, 1974; Em boa companhia, 2010).
Tendo sido gravada por Caetano Veloso (Muitos carnavais, 1989) em formato de frevo, isto é, tematizando a ação de quem se movimenta durante uma folia carnavalesca, a canção recebe da cantora Simone uma versão passionalizada, repleta de alongamentos vocálicos incompatíveis com aquilo que está sendo dito/cantado. Senão vejamos: como ouvir os versos "Não saia do meu lado / Segure o meu pierrot molhado / E vamos embolar ladeira abaixo / Acho que a chuva a gente a se ver / Venha veja deixa beija seja / O que Deus quiser" sem visualizar o ato plasmado na letra?
É certo que Simone descarta a última estrofe que diz "A gente se embala se embola se embola / Só para na porta da igreja / A gente se olha se beija se molha / De chuva suor e cerveja", ápice da ação tematizada, desprezando assim o título e o invólucro do todo cancional. Mas isso não anula a desestabilidade entre a substância sonora e o conteúdo que ela carrega, já que, como sugerimos, o ato de conjunção entre corpo e folia atravessa toda a canção.
A ênfase depositada pela letra nos aspectos da aproximação  entre os foliões (sujeito da canção e o outro a quem ele se dirige) não se sustenta na cama sonora dos alongamentos vocálicos da versão de Simone, estando as personagens no meio da folia, aproveitando ("segure o meu pierrot molhado"), juntos ("não saia do meu lado"), a festa.
"Quem canta sabe que se não recuperar os conteúdos virtualizados na composição, durante o período da execução, deixando transparecer uma inegável cumplicidade com o que está dizendo (o texto) e com a maneira de dizer (a melodia), simplesmente inutiliza o seu trabalho e se desconecta do ouvinte" (Tatit, idem, p. 89). Não queremos negar que há quem, pela paixão, conecte-se à versão de Simone, mas nosso trabalho aqui é analisar a integração da letra, da melodia e da voz: o ritmo evocado pela sintaxe.
É por isso que chamo à discussão a versão de Arnaldo Antunes (Paradeiro, 2001) para "Exagerado" (Cazuza, Ezequiel Neves e Leoni). Enquanto a versão de Cazuza investe na mensagem da letra usando-a como uma cantada de conquista e sedução, efetuando o balanço dos sentidos do ouvinte pelo uso do rock, a versão passional e grave de Arnaldo cria um sujeito cancional que parece consciente de já ter conquistado o outro e canta para a manutenção do desejo entre os dois.
A inserção de sutis "ruídos vespertinos do Candeal (BA)" amplia a certeza deste sujeito que recusa a rua – ao contrário do sujeito urbano da versão de Cazuza – e quer ficar infinitamente unido ao outro, dentro da bolha afetiva criada na canção de amor: o canto passional não permite que os sons de fora estourem a bolha e atinjam os sons de dentro.
Ao trocar os dispositivos melódicos do rock, com sua tendência à valorização de personagens e dos rituais dançantes ancorados nos ataques consonantais, na segmentação da melodia e na marcação dos acentos, pela passionalização, empenhada no estado psíquico, tais como a solidão e a contemplação, através da ampliação da frequência e duração das vogais, Arnaldo Antunes investe em versos como: "Nossos destinos foram traçados / Na maternidade (...) Jogado aos teus pés / Eu sou mesmo exagerado / Adoro um amor inventado". E reinventa a canção.
A voz de Arnaldo e o violão de Cézar Mendes possibilitam uma nova possibilidade de ouvir uma "mesma" mensagem, uma mensagem, diga-se de passagem, impregnada das energias da versão dançante de Cazuza fortemente disseminada na cultura cancional. Note-se, como exemplo disso, que amparado por sua versão, Cazuza recebeu o epíteto de "poeta exagerado".
Para o bem da verdade, a versão de Cazuza já indicia aquilo que Arnaldo realiza. Trabalhando entre acelerações e desacelerações, naquilo que comumente denominamos pop-rock, balada romântica, o sujeito de Cazuza sugere paixão, através da atenção despertada pelo primeiro verso: "Amor da minha vida". Arnaldo capta tais índices e investe neles.
Para Luiz Tatit (idem, p. 92-93), "ao controlar a velocidade da voz que fala, atribuindo-lhe uma duração no interior da voz que canta, o cancionista revela o que R. Barthes denominou 'grão da voz', ou seja, a exata intersecção entre língua e música: a condição ideal para o efeito de verdade da obra". Deste modo, Arnaldo transfere o exagero da emissão vocal acelerada do rock para a letra de mensagem exagerada de um sujeito que diz feliz e suplicante: "Eu nunca mais vou respirar / Se você não me notar / Eu posso até morrer de fome / Se você não me amar".
Ao final, se na versão de Cazuza (1985), e mesmo na versão de Ney Matogrosso (Vivo, 1999), o ouvinte “presta mais atenção” à gestualidade vocal visceral, na versão de Arnaldo Antunes é a letra, ou melhor, o modo visceral como o sujeito se entrega na letra, que se ilumina e concentra a atenção. A produção oral de Arnaldo presentifica um sujeito em ritmo narrativo exageradamente jogado aos pés do outro. E assim entra em sincretismo com o outro, agora ele: sujeito cancional e da canção – exagerado: gerado no excesso.



***

(Cazuza / Ezequiel Neves / Leoni)

Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade

Paixão cruel desenfreada
Te trago mil rosas roubadas
Pra desculpar minhas mentiras
Minhas mancadas

Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais

Eu nunca mais vou respirar
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar

Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais

Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado

07 fevereiro 2013

Itapuana



"Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da Odisseia, não nos diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica), 'metade mulheres, metade peixes'. Não menos discutível é sua categoria; o dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ponte ilha do poente, perto da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que periodicamente eram celebrados para honrar sua memória", anota Jorge Luis Borges em O livro dos seres imaginários (p. 145).
No décimo livro da República, Platão registra que são oito sereias que presidem a revolução dos oito céus concêntricos "No cimo de cada um dos círculos, andava uma Sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma única escala" (p. 316). E destaca: "Mais três mulheres estavam sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas, vestidas de branco, com grinaldas na cabeça - Láquesis, Cloto e Átropos - as quais cantavam ao som da melodia das Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro" (idem).
Ora, já na Odisseia, Ulisses narra o famoso canto (porque contém a fama - reputação, glória e notícia - do ouvinte) como aquele que detém o ouvinte justamente porque guarda o passado (a guerra de Tróia), o presente (os périplos no retorno à Ítaca) e o futuro (o orgulho e a glória). Mas o que chama atenção nas palavras de Platão, diferenciando-se das de Ulisses, é que não são as sereias que cantam, mas 3 mulheres "ao som da melodia das Sereias".
Importa anotar que três era a medida antiga de contar os extremos para os gregos. Platão chama imitador ao autor (o pintor) daquilo que está três pontos afastado da realidade, atrás dos artífices da cama, por exemplo, Deus e o carpinteiro.
Retornamos ao tema da imitação, tão caro a Platão. As mulheres, neste caso, imitariam o canto sirênico. No entanto, acrescentado de palavras audíveis aos ouvidos comuns. E isso muda tudo, essas mulheres-poetas são a mediação entre o inaudível e o público. E assim o canto mudo das divindades chega ao humano.
Ou seja, Platão confunde Musa (cujo canto está reservado ao poeta) e Sereia (de canto audível para ouvidos humanos). De modo enviesado, ele sugere que as três mulheres, deste modo, poderiam ser o rascunho da neo-sereia que tenho analisado aqui: seres reais que, longe-perto, representam o mito, a voz que resume em um relato verídico (das sereias) o relato absoluto (das musas). E para por aqui a (quase) semelhança entre Platão e a neo-sereia.
Para a defesa que faço do dispositivo de análise que denomino neo-sereia, o cancionista não instaura o mau na alma do ouvinte, até porque nosso entendimento das relações interpessoais estão além (ou aquém) das noções/ideias estancadas de bem e de mal, visa o elogio dos sentidos, da "música da vida", acessada pela gaia ciência, que indistigue racionalmente o que é maior e o que é menor, o que é bom e o que é mau.
A neo-sereia, a sereia nossa contemporânea, por ser cancionista, condensa as filigranas das sereias homéricas (o canto dos três tempos), platônicas (o canto do canto das musas e das sereias; fingidoras da dor que deveras sentem), da mãe d’água de José de Alencar - “moça de formosura arrebatadora; tinha os cabelos verdes, os olhos celestes, e um sorriso que enchia a alma de contentamento” (O tronco do ipê); e das demais teorias da potencialidade da emissão vocal. Uma categoria tropical, afro-americana, a neo-sereia, ao contrário do que faz o idioma inglês, não distingue a sereia clássica (siren) das que têm cauda de peixe (mermaids). É no amálgama, diria Jorge Mautner, que reside a contribuição brasileira para o mundo.
É deste turbilhão espumoso que sai "Itapuana", de Arnaldo Antunes e Cézar Mendes, a sereia das três raças, personagem cantada por Arnaldo Antunes (Saiba, 2004). Itapuana se insere no panteão das qualidades de Iemanjá: una e múltipla, sereia transplantada e atropofagizada para o Brasil, Cuba, Uruguai. "En Brasil, Yemanjá es inspiradora de ritos públicos espectaculares que en años reciente dejaron de ser prerrogativa de Bahía y Río para extenderse a la populosa y cosmopolita São Paulo. Allí la sirena es rubia y, asociándola a la Virgen María, se le rinde culto el día de la Inmaculada Concepción. Pero es notorio que Yemanjá he elegido residir en Bahía se San Salvador, y precisamente en las aguas profundas de la laguna de Abaeté en Itapuã" (Meri Lao, em Las Sirenas, p. 118-119).
Ora, basta atentar para a letra de "Itapuana" para identificar nela uma proliferação dos significantes desta Yemanjá de Itapoã. Tendo o nome da rainha das águas sido obliterado no título, substituído por um nome de derivação feminina Tupi (Itapuã: pedra que ronca), é na última estrofe, no último verso que encontramos a revelação neo-barroca da personagem: "Quantos risos misturei ao som das águas / Quantas lágrimas de amor molhei no mar / No mais íntimo / Dos mais íntimos / Dos lugares desse lugar / Lugar público / Colo e útero / Amoroso de Yemanjá".
Íntimo e público, porque colo e útero de mãe, Itapuana é o espaço criado pelo sujeito da canção para servir de cenário à sereia que mora no Abaeté onde uma lagoa escura é arrodeada de área branca. E como não reconhecer Itapuana na Iemanjá-Sereia-Grande-Mãe de Rubens Carybé, guardada no Museu Afrobrasileiro, em Salvador-BA.
Para cantá-la, Arnaldo Antunes, o cancionista do barulho, do berro, da urgência do agora, baixa dos tons e entoa a la Dorival Caymmi. O sujeito cancional produzido aqui é justificado na quase canção de ninar ancorada na melodia de cordas (viola, violão, guitarra) e teclados. Tudo convida o ouvinte a admirar a beleza nunca desperdiçada - existe, sozinha - de Itapuã, em seu eterno retorno - de novo, de novo para sempre esta pedra roncará, aurora em fim de tarde.
A título de curiosidade, vale lembrar, portanto, que não é à toa que Dona Flor tem sua primeira vez sexual com Vadinho em Itapuã: “Um amigo endinheirado, Mário Portugal, solteiro e estróina naquele tempo, emprestou a Vadinho oculta casinhola para os lados de Itapoã. A viração desatava os cabelos lisos e negros de Flor, punha-lhe o sol azulados reflexos. No barulho das ondas e no embalo do vento, Vadinho arrancou-lhe a roupa, peça a peça, beijo a beijo. (...) Rompeu a aleluia sobre o mar de Itapoã, a brisa veio pelos ais de amor, e, num silêncio de peixes e sereias, a voz estrangulada de Flor em aleluia; no mar e na terra aleluia, no céu e no inferno aleluia!”, registra Jorge Amado na décima segunda parte do famoso romance.
Mas é em versos como os da estrofe que diz "Nas manhãs de Itapuã que o vento varre / Os coqueiros já conhecem as canções / Repetidas ou / Repentinas vêm / Consolar o meu coração / As vontades vêm / As saudades vão / Amanhece mais um verão" que se encontra a ponte entre cantor e ouvinte, mergulhado no banho tépido da voz grave, da água morna. O sujeito da canção compartilha com o ouvinte a memória das águas que consolam. Memória cancional: de Dorival Caymmi - "Coqueiro de Itapuã, coqueiro / Areia de Itapuã, areia / Morena de Itapuã, morena / Saudade de Itapuã me deixa / Oh vento que faz cantiga nas folhas / No alto dos coqueirais / Oh vento que ondula as águas / Eu nunca tive saudade igual / Me traga boas notícias daquela terra toda manhã / E joga uma flor no colo de uma morena de Itapuã" - a Caetano Veloso - "Itapuã, quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento a mim, assim: Caymmi (...) Eu cantar-te nos constela em ti / Eu sou feliz". Passando por Vinícius de Moraes e Toquinho: "É bom / Passar uma tarde em Itapuã / Ao sol que arde em Itapuã / Ouvindo o mar de Itapuã / Falar de amor em Itapuã".
Caymmi. “A marina caymmiana é mestiça. Nela podemos detectar um distante e vago resíduo ameríndio, a presença difusa dos bantos, a predominância de elementos portugueses e iorubanos. Tudo transfigurado, naturalmente. E esta mestiçagem se expressa desde já no trato caymmiano com a mitologia baiana, como se ouve numa composição como ‘A lenda do Abaité’. Todos sabem que esta lagoa se tornou famosa não apenas por sua beleza, mas também pelos inúmeros afogamentos nela ocorridos. Caymmi soube reter e assentar, em sua poesia, esta mescla de encanto e perigo. (...) A lagoa ainda hoje atemoriza, mas os ipupiaras de Itapuã foram esquecidos. Ou antes, sobrevivem irreconhecivelmente num misto de Iemanjá, a filha de Olokum e deusa dos egbás, e de sereia branca da Europa, dedicada ao canto e ao sexo. Houve uma identificação entre a orixá nigeriana e a sereia, esta por sua vez já confundida com a mãe-d’água, que ao que parece era originalmente uma cobra. O mito é, portanto, de extração euro-afro-ameríndia. E esta bricolagem mitológica vai se refletir na criação estética baiana.” (Antonio Risério, Caymmi: uma utopia de lugar, p. 78-80).
Ora, inserindo-se como mais um entre os mitemas (cantos) que compõem o mito de Itapuã, podemos intuir que a personagem-canção Itapuana é a morena de Itapuã, é a lua de braços morenos, é a sereia do sujeito da canção (que canta ao som da melodia dela, tal e qual as mulheres descritas por Platão), é a energia motora da canção. Ela é aquela que volta e manda a saudade embora a cada lembrança cantada do lugar: "Itapuã, tuas luas cheias, tuas casas feias / Viram tudo, tudo, o inteiro de nós / Nosso sexo, nosso estilo, nosso reflexo do mundo / Tudo esteve em Itapuã", diz o sujeito criado por Caetano.
Não podemos deixar de lembrar que as "Lendas do Abaeté" foram enredo da G.R.E.S. Mangueira em 1973. Os versos de Jajá, Preto Rico e Manuel, cantados em coro durante o desfile dizem: "Oh! Que linda noite de luar / Oh! Que poesia e sedução / Branca areia, água escura / Tanta ternura no batuque e na canção / Lá no fundo da lagoa / No seu rito e sua comemoração / Foi assim que eu vi / Iara cantar / Eu vi alguém mergulhar / Para nunca mais voltar".
A título de curiosidade, importa anotar que segundo contam Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas, no livro Samba de enredo, história e arte (2010, p. 68), só 1966 um orixá, "no desfile do segundo grupo", é mencionado pela primeira vez em um samba: "Apoteose ao folclore brasileiro", do G.R.E.S. São Clemente. O orixá, claro, foi Iemanjá: "(...os negros / Ornamentando a natureza / Na pescaria do xareu / Que simboliza a típica beleza / Das baianas que dançam / Com grande alegria / Pra rainha iemanja / Nas noites de luanda na bahia".
Tudo em “Itapuana” é impressão descritiva. Sobre a relação com a lua, "os minas diziam que de dia ela [Yemanjá, e acredito que chegamos ao acordo de que Itapuana é uma qualidade de Yemanjá] estava na terra e de noite no mar. Na água ela é uma sereia. A Iemanjá mais velha tem escamas nacaradas da cintura para baixo, rabo de peixe, os olhos brancos, saltados, redondos, muito abertos. 'As pupilas negras, pestanas como agulhas e os peitos muito grandes'", anota a pesquisadora Lydia Cabrera, em Iemanjá e Oxum (p. 40).
“O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha ideia”, diz o Riobaldo de Guimarães Rosa. De todos - "é sua / é minha" -, a beleza de ser mimado, ninado e cantado por "canções repetidas ou repentinas" a cada saudade consola o coração do sujeito: "as vontades vêm / as saudades vão" ao som do mar, da pedra que sempre roncará - "cada dia uma nova eternidade" e esta certeza da beleza é a fonte do canto - a melodia que leva o sujeito a cantar, a ser artífice-de-si, posto que "no calor do sol o céu da boca salga / e o mar na alma acalma o caminhar".

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Itapuana
(Arnaldo Antunes / Cézar Mendes)

Quando o dia vem varando a alvorada
Antes mesmo de nascer a luz do sol
A beleza nunca é desperdiçada
Existe
Sozinha

Quando a água morna molha nossas pernas
E a areia massageia nossos pés
A beleza sempre é compartilhada
É sua
É minha

Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão

No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam

Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo

Quantos risos misturei ao som das águas
Quantas lágrimas de amor molhei no mar
No mais íntimo
Dos mais íntimos
Dos lugares desse lugar
Lugar público
Colo e útero
Amoroso de Yemanjá