20 dezembro 2012

Canções velhas para embrulhar peixes



O título do livro do professor Roberto Schwarz - A sereia e o desconfiado - entrega a temática dos ensaios que investigam os mecanismos de seduções da arte, no caso, da Literatura. É da posição do desconfiado, qual o Ulisses amarrado no mastro, que Schwarz vai descobrindo para si, e revelando ao leitor, os elementos sirênicos da Literatura e, de viés, da cultura.
O que fica de mais positivo da leitura do livro do professor, cujo título foi o despertador de minha atenção, é o exercício do cruzamento de conhecimentos a fim de circular o objeto analisado. E isso revela muito do meu método de audição e apreensão de canções, do canto neosirênico. Muito embora o meu esforço seja sempre o de me colocar à deriva, solto no mar sonoro, mar sem fim. Procuro navegar muito mais ao lado da certeza da desconfiança, do que da desconfiança da certeza.
Petulância e inquietude acompanham o ouvinte-leitor de canção. A este não basta a mera paráfrase da letra, muito menos dizer com suas palavras aquilo que o cancionista "quis dizer" ao conceber a obra, haja vista estar trabalhando com um blend (mix) complexo de linguagens. O objetivo aqui é tentar entender aquilo que o sujeito cancional - esta entidade estética só apreciável no instante exato da execução da canção - canta. E isso só é possível sem cordas e sem ceras.
Obviamente não há um jeito certo, uma metodologia única e completa para tal empreendimento, daí a dificuldade e o estado de sempre naufrágio do ouvinte-leitor. E quando este, ao invés de usar a canção como exemplo (confirmações) para teses e teorias pré-concebidas, capta a teoria (singularidade, filosofia) contida na canção, o objetivo está cumprido. Mas como fazer isso, captar singularidades, diante do mar aberto e sem fim, da profusão de canções que cotidianamente nos chegam aos ouvidos? Eis o esforço: dobrar-se aos encantos das sereias e deles extrair vida, "esperança de saúde, embriaguez da convalescença", diria Nietzsche.
Creio ter sido movido por este estado-de-poesia que Odilon Redon (1840-1916) desenhou Femme à l'aigrette (ou, Sirène à l'aigrette), transcriando o poema "Un coup de dés", de Stéphane (Étienne) Mallarmé. Redon investiu nas primeiras palavras do poema. Cito aqui de modo linear, radicalmente oposto e cruel aos efeitos estéticos lançados por Mallarmé: "UM LANCE DE DADOS / JAMAIS / ABOLIRÁ O ACASO / MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS / ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO (...)".
Como sabemos, o poema "Um lance de dados" revolucionou a poesia. Nas palavras de Augusto de Campos, ele é a "base e fundamento da nova formulação poética". Vale a pena citar: "O 'lance de dados' mallarmeano instiga e precipita rumos inteiramente inéditos para a poesia. Rejeitando as esterilizantes formas fixas e o verso-livre (álibi para todas as acomodações), Mallarmé passa a organizar o espaço gráfico como campo de força natural do poema. Vale-se dos mais diversos recursos tipográficos, sempre num plano de funcionalidade, para criar numa constelação de relações  temáticas (que chama de 'subdivisões prismáticas da Ideia'). Com esse processo, pode-se dizer que Mallarmé, colocando 'em situação' a sua própria obra e a poética moderna, 'opera, através da poesia, a junção da música com a arquitetura visível'".
A sereia graciosa, e um tanto burguesa, haja vista a vestimenta, criada por Redon aponta a equalização em perspectiva enigmática entre som e sentido advindos do poema-letras-soltas-móbile no papel-mar mallermeano. Ela indicia o acaso. E "Todo Pensamento emite um Lance de Dados", encerra o poema. Não às respostas. Sim à irrespondibilidade.
O lance de dados é a travessia (um estado de coisas a outro) que a sereia representa. Apelo à intuição. As sereias têm dessas coisas. Elas são o acaso em ação. "O canto das sereias seria a indiferenciação entre o sujeito que narra e o sujeito narrado, entre a manifestação e a significação: canto sem diferenças, sob o qual se prometeria a pura perda de diferenças do silêncio, do ponto zero da descrição", anota David E. Wellbery em Neo-retórica e desconstrução (p. 195-196).
Mas para que servem as canções? Se, como sugerimos anteriormente, o sujeito cancional só se revela no instante em que a canção entra pelos ouvidos, para onde vai a canção quando finda a melodia? A canção serve para sustentar o ouvinte no mundo. Enquanto ela dura, o ouvinte pensa ter o mundo nas mãos, ao final, ele amanhece mortal.
As canções envelhecem? Diante dos artifícios de eterno presente criado por elas, aliados às técnicas de armazenamento e reprodução, podíamos dizer que não, as canções não envelhecem. Mas aí Peri Pane complexifica a questão e cria uma canção cujo título – “Canções velhas para embrulhar peixes” associa a função da canção à função do jornal, abre brechas à temporalidade (validade) da canção.
Ora, se tal e qual o jornal, cronística, informativa (daquilo que sabemos, mas que precisa ser revelado por fora), a canção nos situa no instante do cotidiano, ela envelhece na medida em que cumpre seu papel de revelação do ouvinte ao ouvinte. No entanto, sendo este ouvinte propício às circularidades da ilusão necessária a todo indivíduo, a "mesma" canção retornará mais adiante. Em diferença.
Ou seja, a canção envelhece sem envelhecer de todo, pelo menos não como objetivamente entendemos o envelhecimento. Como diz a letra de Peri Pane, a canção fica velha quando "embrulha peixes". Tal e qual o jornal de ontem: serviu à leitura das informações e agora pode ser descartada, serve de outro modo, envolvendo peixes mortos, lembranças que devem ser "varridas pra debaixo dos tapetes".
Se pensarmos de modo macro, podemos inferir sobre a profusão de canções que são lançadas e rapidamente, logo após rápido sucesso e furdúncio entre os indivíduos, somem: "antes confetes, serpentinas / Hoje embalam as traças entre as naftalinas", como canta o sujeito da canção (Canções velhas para embrulhar peixes, 2012).
"Canções no escuro de hds, gavetas / Versos calados, surdos, cegos de muletas / Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas / A espera laça os futuros escafandristas", completa o sujeito, evocando não apenas a descartabilidade das canções e, consequentemente, das histórias que cada canção carrega, mas também dos indivíduos.
Sintomaticamente, a capa artesanal do disco é ilustrada por uma sereia criada pelo artista plástico Rafael Gentile, a partir da técnica do estêncil. Altiva, cabelos soltos, a sereia aparece solta no ar, no mar, intimidando o ouvinte. Frágeis como os indivíduos, as canções envelhecem com estes, dentro destes, recrudescem: juntos frente aos apelos da sereia, do acaso, no lance de dados. Canções à espera não de futuros amantes, mas de futuros escafandristas.

***

Canções velhas para embrulhar peixes
(Peri Pane)

Canções velhas para embrulhar peixes
Doidas varridas pra debaixo dos tapetes

Canções antes confetes, serpentinas
Hoje embalam as traças entre as naftalinas

Canções no escuro de hds, gavetas
Versos calados, surdos, cegos de muletas

Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas
A espera laça os futuros escafandristas

13 dezembro 2012

A volta da Asa branca



"Chega! / Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. / Minha boca procura a 'Canção do exílio'. / Como era mesmo a 'Canção do exílio'? / Eu tão esquecido de minha terra... / Ai terra que tem palmeiras / onde canta o sabiá!". São com estes versos que Carlos Drummmond de Andrade fecha o poema "Europa, França e Bahia", poema cujo sujeito poemático, após parecer deslumbrar-se com as belezas sedutoras dos países civilizados, sente saudade e tem os "olhos brasileiros sonhando exotismos".
Para ele e diante dele, em gesto antropofágico, a torrer Eiffel é um imenso caranquejo; "submarinos inúteis retalham mares vencidos"; "a Itália explora conscienciosamente vulcões apagados"; e é das águas sujas do Sena que a sabedoria escorre. "Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa", afirma. Estranho a tudo e desentendido de tudo, ele quer lembrar a canção do exílio, aquela que canta os exotismos da [sua] terra e, por isso mesmo, faz o sujeito retornar à terra familiar e íntima.
Guardado no livro Alguma poesia, "Europa, França e Bahia" serve para complexificar a discussão da importância da tão temida "cor local". Tendo o seu uso mal compreendido, ou rejeitado veementemente, confundiu-se por muito tempo, a fim de inserir o Brasil na modernidade, cor local e exotismo. Para este segundo termo, não há melhor entendimento do que o dado por Caetano Veloso ao final da canção "Um índio": "aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos, não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio".
Como já sabemos, o exótico só é visto na perspectiva depreciativa do termo por aqueles que não alcançam a obviedade o objeto/sujeito sob o olhar. O outro, sempre diferente, é exótico. O lugar que desconheço e cuja gente age de modo "oposto" ao meu, é exótico. Sob a pecha de exótica, Carmen Miranda voltou os olhos do mundo para o Brasil. Pagou caro por isso, renegada pela elite pensante, mas sabia que o povo que ela representava tinha nela a esperança (espelho refratário) de distinção e de reconhecimento universal.
Portanto, como venho tentando defender aqui, se a canção popular brasileira é a tradução prática da gaia ciência pensada, noutro plano de interpretação, por Nietzsche, posto que heterogênea e permeável, ela o é porque se alimenta de matrizes múltiplas, de produções populares diversas e de cores locais singulares e amalgamáveis.
Na canção popular brasileira, entretenimento, informação e criação se misturam forjando a educação ético-estético-filosófico-sentimental do brasileiro. Desde sempre foi assim, misturas de misturas, até entre linguagens diferentes. Isso se opõe a uma certa e interessada imagem única e limpa - pós-Bossa Nova - que alguns teóricos tendem fazer do Brasil para o exterior, a fim de se fazer entender pelos seus pares.
Mas, como sabemos "o baião vem de baixo do barro do chão da pista onde se dança" e "ninguém me salva / ninguém me engana / eu sou alegre / eu sou contente / eu sou cigana / eu sou terrível / eu sou o samba". O entendimento e a compreensão da canção popular - forjada e alimentada nos extratos populares - escapam à tradução meramente socrática, academicista.
Focado na força da cultura popular da Grécia Antiga, e defensor da superioridade do popular, Nietzsche elabora e desenvolve novas modalidades de percepção da cultura, nas quais não entra o rancor daquilo que vem do povo. Pelo contrário, Nietzsche nos ajuda a repensar a estigma da ignorância dada à cultura popular pela lineariedade capitalista de subjetividades controladas.
É no sentido nietzschiano que Luiz Gonzaga é gênio, por aglutinar elementos espalhados na cultura popular que lhe forjou a obra, as canções - muitas de exílio. Um exemplo é que a musa Rosinha, condensação de várias mulheres sertanejas, serve à apropriação imagética de todo e qualquer sertanejo distante de sua mulher, por causa da seca do sertão "das muié séria / Dos homes trabaiador". "O mundo não vale nada / Sem amor de Rosinha / Por isso vivo a sonhar / Com a minha moreninha".
Gonzaga estetizou o sertão e moldou uma imagem do nordeste não apenas nas letras que cantava e no jeito de corpo (e vestimentas), mas, principalmente, na voz. É no timbre adequado, porque carregado de vivência, ao ritmo da sanfona onde mora a beleza do canto de Luiz preenchendo casas humildes, comuns, simples de alegria e esperança, matenedouras do homem na terra: "A seca fez eu desertar da minha terra / Mas felizmente Deus agora se alembrou".
É do luxo exuberante e óbvio do vivente-cantador da "festafeira no pino do sol a pino", cantador das tragédias do cotidiano, cordelistas da vida comum e fantástica, que a voz de Gonzaga se alimenta. A gestualidade vocal de Luiz Gonzaga figuratizava o "sertão é em todo lugar; o sertão é dentro de mim" rosiano. Posto que a voz de Gonzaga, seu modo de cantar e dizer, é a grande vereda dos sertões geográficos e íntimos. O que é "A volta da asa branca" senão uma fresta de luz no corpo ressequido do sertanejo? Um bálsamo sonoro na intemperância dos dias de muito sol e quase nenhuma água.
Foi deste recanto também que Haroldo Campos pinçou as estrelas, planetas, satélites de suas Galáxias. Se "(...) para / outros não existia aquela música não podia porque não podia popular", é esta música vinda do povo e cantada pelo povo que alimenta a vida do povo: injeta remédio e veneno na existência.Exótica, óbvia é esta canção que sustenta o indivíduo com saudade de sua terra que "tem palmeiras onde canta o sabiá". É ela que faz ele querer voltar e, de novo, tentar - ir indo: "A asa branca / Ouvindo o ronco do trovão / Já bateu asas / E voltou pro meu sertão / Ai, ai eu vou me embora / Vou cuidar da prantação". "Chega! / Meus olhos sertanejos se fecham saudosos".
Gilberto Gil (Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga, 2012) capta esta alegria do povo e da natureza natural inventada por Luiz Gonzaga ao cantar "A volta da asa branca" com acompanhamento festivo. Ele investe no sujeito que se enche de novas vontades: "(...) E se a safra / Não atrapaiá meus pranos / Que que há, o seu vigário / Vou casar no fim do ano".
Em entrevista à revista Bravo! (dez/2012), Gilberto Gil declarou: "Eu não existiria sem Gonzagão". Eu completaria que nem o sertão, nem o Nordeste, como os entendemos hoje, existiriam sem a voz de Gonzaga, sua agonia transvalorada em som. É ele o sabiá a sustentar memórias, crônicas e declarações de amor aqui na voz.

***

A volta da asa branca
(Zedantas / Luiz Gonzaga)

Já faz três noites
Que pro norte relampeia
A asa branca
Ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas
E voltou pro meu sertão
Ai, ai eu vou me embora
Vou cuidar da prantação

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria
Dos homes trabaiador

Rios correndo
As cachoeira tão zoando
Terra moiada
Mato verde, que riqueza
E a asa branca
Tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre
Mais alegre a natureza

Sentindo a chuva
Eu me arrescordo de Rosinha
A linda flor
Do meu sertão pernambucano
E se a safra
Não atrapaiá meus pranos
Que que há, o seu vigário
Vou casar no fim do ano.