30 junho 2011

Mamãe sereia

Somos cantados desde o útero materno. E nossa mãe é a sereia primordial: aquela que nos oferece a força matriz - uma constante humana - da tomada de posição na vida. A razão estética das mães e das sereias se constitui, portanto, no ato deliberado de cantar o filho-navegador. Ou seja, se a mãe e a sereia vivem para cantar, elas só existem porque cantam: cantar o outro é o que mantém-nas vivas.
E eis o desenho dessa complexa relação de reciprocidade, pois, por outro lado, ser cantado - ser ouvinte (filho e navegador) - implica em tornar-se dependente do canto, e de quem canta: veneno-remédio. Afinal, como Kafka anota em O silêncio das sereias: "As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio".
Fora do útero, passamos a vida cantando e sendo cantados, não necessariamente com a mesma exuberância paradisíaca, daí a circularidade permanente da ilusão e, até porque, precisamos cantar também: ser mães e ser sereias de outros.
A neosereia, o cancionista moderno, que faz uso da aparelhagem técnica e das gravações mecânicas disponíveis ao seu cantar, investe no paradigma humano ao reciclar temas e estilemas que tencionam a presença do indivíduo no mundo.
Daí a alegria latino-americana com sua profusão de ritmos e estilos cancionais. Por aqui, há mimos para todos os gostos e necessidades. O cancionista daqui trabalha com um raio imenso de significantes oriundos das misturas, da mestiçagem e da hibridação que nos constituem, sem medo de assumir influências, pois sabe que a autoria e a assinatura da canção estão no lugar do rearranjo que engendra com aquilo que as canções que lhe antecederam oferecem.
Tal rearranjo não se dá se qualquer jeito, mas precisa criar no ouvinte uma experiência estética forjadamente despretensiosa e aí reside o trabalho poético do cancionista. A fim de ninar o ouvinte, letra, palavra e gesto vocal precisam se equilibrar no eixo exato do desejo de quem ouve - quando não criar desejos - naquele instante ficcional em que a vida, com seus efeitos especiais, parece valer a pena.
O cancionista moderno é um ouvinte de canção. E isso não é pouco, pois sugere a mobilização da tradição. O cancionista moderno, a neosereia, usa as mídias como forma de canção. É isso que Marcela Bellas - no disco Será que Caetano vai gostar? (2009) - faz com a canção "Mamãe sereia", de Mário Mukeka e André Mury.
Marcela Bellas trabalha misturando sons de sintetizadores e tambores afim de criar uma cama sonora líquida - molhada - para a voz da mãe/sereia do título da canção. Isso radicaliza a mensagem do sujeito que pede à figura mítica: "Bota esse menino pra nascer / Bota esse menino pra correr / Bota esse menino no mundo que é pra ele ver".
O pedido deixa vazar um corte agridoce no cordal umbilical que vai do ouvinte ao seu cantor: filho/mãe; navegador/sereia. Ao justapor a figura da mãe e da sereia, o sujeito da canção coloca diante do espelho dois seres cantantes - Medusas no espelho - neutralizando e/ou exacerbando suas forças.
Para tanto, o sujeito recorre a Iemanjá e a Oxum - entidades que reinam sobre as águas - como metáfora poética do mergulho do sujeito liberto no mundo sonoro que ele mesmo passa a criar para si, sem a mediação materna e/ou sirênica.
Obviamente, seja como for, a interdepedência fica configurada: mães, sereias e deuses assim são porque assim os presentificamos em nossas vidas. Cabe ao indivíduo, assim como afirma fazer o sujeito de "Mamãe sereia", botar linha nas conchinhas da mamãe sereia (da vida) e fazer um colar. Aliás, é isso que faz Marcela Bellas ao se debruçar sobre nossa potência latino-americana tropicalista.



***

Mamãe sereia
(Mário Mukeka / André Mury)

Ê mamãe sereia
Transforme a areia em estrelas do mar
Ê mamãe sereia
Suas conchinas eu boto linha e faço um colar

Bota esse menino pra nascer
Bota esse menino pra correr
Bota esse menino no mundo que é pra ele ver

Ouvir o canto da sereia
Andar no véu de Iemanjá
Ver o ouro de Oxum lá no fundo do mar

23 junho 2011

Carcará

Por que cantar os clássicos? Sempre que me deparo com a regravação de uma canção canonizada - devidamente guardada na memória da história da canção e no afeto dos ouvintes - faço-me essa pergunta.
Será porque "tudo só se acha no passado", como Tom Zé afirma a cerca altura do filme Palavra encantada? Mas "o novo sempre vem", como diz o sujeito de "Como nossos pais", de Belchior. Salvo engano, acredito que o segredo está na união destas duas pontas da vida. O fato é que para o bem e para o mal há um vazio profundo na subjetividade do indivíduo latino-americano e isso se reflete na arte: no canto do povo deste lugar.
Cantar a vida é necessidade básica do indivíduo latino-americano. E ser um cantor aqui é ser antropófago: consciente de ser um devorador de canções. A musa latino-americana é híbrida e o cancionista atento a isso equilibra e canta “de um lado este carnaval / do outro a fome total”.
Ou seja, para que uma regravação obtenha relevância é preciso que ela ilumine lugares ainda não tocados pela própria canção; forje o efeito especial do ineditismo; promova, pelo empenho do cancionista, sensações novas; e imponha uma releitura do conhecimento: crie novidades - o velho-novo, de novo, em diferença.
Dito isso, a versão que Otto (trilha sonora da telenovela Cordel Encantado, 2011) oferece para "Carcará", de João do Vale e José Cândido, é metacanção. Egresso da cena Mangue beat, e já detentor de uma assinatura cancional própria, Otto sabe que o cancionista latino-americano é carcará: pega, mata e come canções para devolver à cultura - repor na linha evolutiva - uma canção que nunca termina de dizer algo novo.
Ao mesmo tempo em que emula versões anteriores, Otto se posiciona como parceiro criador e criativo de "Carcará". Clássico na voz da médium das sereias Maria Bethânia, com Otto "Cárcara" ganha áres de peleja: trilha sonora das emboscadas do cangaço, da movimentação do indivíduo nordestino, brasileiro.
A "Carcará" de Otto plasma uma barraca de cordéis - a métrica da letra e o arranjo ajudam isso - de alguma feira do interior na parede da memória do ouvinte: gesto vocal e melodia estão a serviço da manutenção de uma mitologia nordestina, latino-americana, quiçá, universal: o eterno retorno, em diferença. "O sertão aceita todos os nomes", diz o Riobaldo de Grande sertão: veredas, para mais adiante afirmar que o sertão "está movimentante todo-tempo".
Se o sujeito da canção não está no sertão - o "lá" indica isso -, e usa elementos urbanos - "avoa que nem avião" - para conseguir comunicação com seu interlocutor distante das realidades do lugar, Otto, sem rancor esterilizante, mergulha na tradição, remexe significantes e oferece uma nova canção: sertaneja, rosiana, misturada, nada plafetária, menos síntese épico-dramática e mais fragmento de subjetividade.
Eis a diferença e a relevância das duas versões: se a versão clássica de Bethânia - necessariamente seca, ferina e viril - interferia na doída repressão do contexto histórico, a versão de Otto festeja o hibridismo da cultura local: onde o "dentro" (autêntico) e o "fora" (ameaçador) se misturam; onde o indivíduo se mira e se movimenta.
Otto mantém a prosódia sintomática - as discordâncias verbais e nominais, por exemplo - do sujeito de "Carcará", que não teve acesso às normas cultas da Língua Portuguesa, questionando preconceitos linguísticos - estranhos à uma cultura tão diversa quanto a nossa - e reposicionando, para novos e antigos ouvintes, a beleza que surge da amizade entre a cultura popular (oral, folclórica) e a cultura mediatizada.
Parece óbvio, mas não custa lembrar que o sujeito de "Carcará" não fala errado, ele fala como sabe falar, como seus irmãos - com os recursos que sua condição social lhe permitiu para compor seu repertório conversacional. E afinal, como Haroldo de Campos anotou em Galáxias: "O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia".
Cancionista-carcará, Otto, vendo a roça queimada, a tradição azeitada, canta "Carcará": relê o clássico, sustenta mitos rodando-os no mundo - promovendo invernada. Eis porque cantar (regravar, reler) uma canção já acomodada no espaço clássico e canônico: para mobilizar a tradição - uma contribuição tipicamente latino-americana para o pensamento do humano: o jeito de corpo carcará.



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Carcará
(João do Vale / José Cândido)

Carcará lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro marvado
Tem um bico vorteado que nem avião

Carcará quando vê roça queimada
Sai voando e cantando
Carcará vai fazer sua caçada
Carcará come até cobra queimada

Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim não passa fome
Os burrego que nasce na baixada

Carcará pega, mata e come
Não vai morrer de fome
Carcará mas coragem do que homem
Carcará pega, mata e come

Carcará é malvado e valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho não pode andar
Ele puxa no imbigo até matar

Carcará pega, mata e come
Não vai morrer de fome
Carcará mas coragem do que homem
Carcará pega, mata e come

16 junho 2011

Alguém cantando

O sujeito da canção "Alguém cantando", de Caetano Veloso, materializa a voz que emula (plagia, copia, imita e inventa) sons. O sujeito é conduzido ao canto pela imposição da presença de um personagem-sol: alguém cantando.
Aqui não importa muito o que é cantado, mas a voz: bússola e orientação do sujeito. Quantas vezes ao longo da vida, ouvintes e carentes de canção que somos, apropriamo-nos de canções ouvidas no rádio - "que canta como que pra ninguém" - e que juramos terem sido feitas para nós?
Na maioria das vezes não há uma explicação lógica para tal apropriação. Basta um verso, ou uma linha melódica, ou a voz de alguém cantando bem para que sejamos lançados noutra realidade: no tempo/espaço "onde não há pecado nem perdão", como diz o sujeito.
Ouvinte, o sujeito torna-se cantor da voz de alguém: devolve a este outro, com canção, a beleza de ser cantado, distinguido no mundo. O dueto entre Simone e Zélia Duncan (Amigo é casa, 2008) figurativiza isso: desenha, na sobreposição das duas vozes, um lugar sonoro complexo: transes, delírios, ficção e realidade se misturam.
Este lugar não é outro senão a mente de quem ouve "alguém cantando longe daqui". "Longe, longe", porém, de tão íntimo (amigo) que se torna do ouvinte, por dar sentido à vida deste ouvinte, aproxima-se e sensibiliza. O sujeito só se realiza quando é organizado internamente por este canto externo: ele precisa que o outro lhe esclareça o que desejar.
A canção se dá posterior à audição de alguém que guarda a natureza na voz. O antes perde sua importância. Tocado por esta voz que lhe abastece de palavra, melodia e voz, o sujeito não encontra outra saída a não ser cantar: pagar com a mesma moeda: canção - letra, música e gesto vocal: pureza.
A coerência da dúvida, ou seja, de não identificar o alguém por trás da voz que canta, sustenta o enigma do próprio sujeito e universaliza o canto: torna-o de ninguém e, portanto, suscetível a ser de todos. Por tudo isso, a canção "Alguém cantando" é metacanção: canção que se faz atravessada pelo canto, pela voz de alguém; canção que denuncia a si própria. O tema principal é a própria canção para além da canção.
Na verdade, o sujeito, embevecido na imensidão, por uma voz que vem dessa imensidão, não sabe onde começa e onde termina o próprio canto. A canção é muito mais canção do que o sujeito é sujeito. A canção trata o sujeito com extremos de mãe - "a voz de alguém quando vem do coração" - e insere o sujeito na vida.
Ouvintes de "Alguém cantando", não temos elementos para concluir nada: quem canta? quem é o alguém cantado? Resta-nos entra em uma das dobras da ficção cancional e se reinventar também no solapamento da ideia de subjetividade.


***

Alguém cantando
(Caetano Veloso)

Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir

Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém

A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão

09 junho 2011

Sucrilhos

As metacanções – as canções que se autodevoram: que cantam a si mesmas – pressupõem um ouvinte com um conhecimento prévio a respeito das questões que elas abordam, sob pena de não entendimento do trabalho estético. O ouvinte pode até curtir, mas não compreenderá as intenções da peça cancional.
Dito de outro modo, ao incorporar citações verbais e ou melódicas de outras canções, as metacanções exigem do ouvinte o acionamento de saberes e, portanto, estimulam um exercício intelectual peculiar: trazem à luz os preconceitos forjados na construção individual do ouvinte para coloca-los em dúvida; forçam a manutenção da subjetividade: da distinção do indivíduo no mundo.
As metacanções lidam com tal artifício das mais diversas formas: seja pela citação direta de um verso, seja modificando (dando novo sentido) a determinado trecho de outra canção, seja recuperando linhas melódicas, seja no gesto vocal do intérprete, etc.
Mas há um processo bem mais sutil: quando uma canção cita algo do mundo real, quando ela amolece os significantes desse mundo, interfere nas imagens pré-organizadas na mente do ouvinte e monta um novo olhar para aquele mundo agora desconhecido. Tudo isso sem perder de vista o primeiro mundo, a fim de que o ouvinte possa estabelecer as relações que assemelham e distinguem os dois.
O exercício não é fácil: dá um nó na orelha - exige o empenho do cancionista, que trabalha com a tradição a fim de recicla-la, e do ouvinte, que precisa suspender a tradição para entender o gesto do cancionista. Kleber Gomes, o Criolo Doido, ou simplesmente Criolo, dá ao sujeito da canção "Sucrilhos" tal tarefa.
"Sucrilhos" (Nó na orelha, 2011), pela própria imagem que o título oferece, lida com aquelas infiltrações do cotidiano que, já devidamente assimiladas, não se deixam questionar. Aqui, leves e com seus corantes artificiais, os sucrilhos querem nos alimentar.
Com alma rap, mas atravessada por diversas sonoridades tropicais, "Sucrilhos" não cai no rancor esterilizante: a canção alcança, pelo trabalho de bordar, colar várias referências do universo comum dos ouvintes - "querer tapar o sol com a peneira é feio demais", "acostumado com sucrilhos no prato, morango só é bom com a preta de lado" -, um nível de compreensão para além da denúncia. Aqui a canção que cantar.
Ao seu modo, o sujeito dá sentido às várias vozes que compõem a cidade e, de viés, constrói uma canção polifônica, um canto paralelo aos cantos (vozes) que ele ouve. Ele percebe que a caoticidade, a polifonia, a mistura sonora são elementos que fazem a cidade ser cidade e investe nisso, sem deixar de apresentar sua ideologia: "Eu tenho orgulho da minha cor / do meu cabelo e do meu nariz / sou assim, sou feliz / índio, caboclo, cafuzu, criolo / sou brasileiro", diz.
Mas quero destacar o punctum metacancional de "Sucrilhos". Ele se revela quando o sujeito da canção diz: "Cartola virá que eu vi, tão lindo forte e belo como Muhammad Ali". Este verso interfere na forma da canção "Índio" de Caetano Veloso - "Um dia (...) Virá / Impávido que nem Muhammad Ali - e cria um novo Cartola, com uma outra intensidade cultural: messias forte e sábio que derá ao rap a levada sambística reveladora e definidora de alegrias possíveis. O Cartola futuro fotografado aqui nos provoca o desejo da materialidade.
Chamando à cena rappers, djs, sambistas, jazzistas, atletas, artistas plásticos, o sujeito de "Sucrilhos" conecta os mundos que sustentam seu mundo. Ao final, inserindo o próprio cantor, numa afirmação da vida típica do rap, o sujeito-indivíduo dispara e coroa: "Criolo Doido não é guarapa / a ideia é rápida mais soma".
Borrando a fronteira entre o sujeito cancional (a voz da canção) e o indivíduo social (a voz por trás da voz da canção), Criolo sublinha que "Di Cavalcanti, Oiticica, Frida Kahlo tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro". Tudo soma, tudo lhe atravessa e é por ele atravessado (ele faz o povo cantar com emoção: dá sentido à vida) enquanto faz a própria travessia.



***

Sucrilhos
(Criolo)

Calçada pra favela, avenida pra carro,
céu pra avião e pro morro descaso,
cientista social, casas Bahia e tragédia,
gostar de favelado mais que Nutella
quanto mais ópio você vai querer,
uns prefere morrer ao ver o preto vencer,
é papel alumínio todo amassado
esquenta não mãe se é cabeça de alho,
cartola vira que eu vi, tão lindo forte e belo como Muhammad Ali,
canta rap nunca foi pra homem fraco saber a hora de parar é pra homem sabio,
rico quer levar com nois cê que sabe,
quero ver paga de loco lá em Abu Dhabi.
Eu sou nota 5 e sem provoca alarde,
nota 10 é Dina Di, dj Primo e sabotage.

pode colar mais sem arrastar,
se arrastar favela vai cobrar,
acostumado com sucrilhos no prato,
morango só é bom com a preta de lado.

O planeta jaz e a trombeta do satanás,
Usain Bolt se não correr fica pra traz,
querer tapar o sol com a peneira é feio demais,
e Cocaína desgraça a vida de um bom rapaz,
Trilha Sonora do Gueto Rappin Hood e Facção,
fazem o povo cantar com emoção,
Zona Sul haja coração,
dez mil pessoas numa favela na quermesse do Campão
Di Cavalcanti, Oiticica, Frida Kahlo
tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro,
disse que não ali o recém formado entende,
vou espera você fica doente,
canta rap nunca foi pra homem fraco,
saber a hora de parar é pra homem sábio,
vacilo no Jeb é Fio é lona,
Criolo Doido não é guarapa
a ideia é rápida mais soma.

pode colar mais sem arrastar,
se arrastar favela vai cobrar
acostumado com sucrilhos no prato
morango só é bom com a preta de lado

(Eu tenho orgulho da minha cor
do meu cabelo e do meu nariz
sou assim, sou feliz
índio, caboclo, cafuzu, criolo
sou brasileiro)

02 junho 2011

Arranjo

Somos a seleção e a edição daquilo que captamos no mundo. Se à primeira vista esta sentença deixa minar certa passividade, noutro olhar ela evoca a competência que cada um de nós tem ao arranjar (montar, produzir) a própria vida.
Nesta perspectiva, a nossa originalidade viria da capacidade (maior ou menor - dentro de um raio infinito de possibilidades) de produzir sentidos: de ser e estar no lugar da indistinção entre produção e consumo; original e cópia.
Não somos aquilo que já foi dito (cantado), mas desejamos o desejo que o cantor teve ao cantar. Ou melhor, constituímo-nos na interpretação que damos ao desejo que o cantor tem ao cantar. E tudo isso se dá em um processo circular de sensações, prazeres e erotismos.
Quando o sujeito da canção "Arranjo", de Zélia Duncan e Isabella Taviani (Meu coração não quer viver batendo devagar, 2009) pede que o outro lhe escale, note, harmonize, cante, escreva, improsive, está desejando a criação-de-si: a distinção perante a massa sonora universal.
Como Francisco Bosco anotou em seu texto de O globo (25/05/2011): "Sim, os artistas são nossos irmãos desconhecidos. E são nossos irmãos porque nos apresenta ao que, em nós mesmos, desconhecemos, e assim, nos elevam à altura da vida, livrando-nos do vazio e do nada". Ao ser cantado pelo outro, apresentado àquilo que desconhecemos em nós, tomamos lugar no mundo.
Mas a canção é e sempre será canção. Por nossa vez, nós nem sempre somos "a frase cantada", nem "a pausa longa", nem "o acorde afinado", mas o arranjo que damos a tudo isso. Somos a resposta à nossa necessidade de palavra cantada, de melodia que embala sensações e de voz que, "solamente una vez", com seu efeito de presença, torna-nos presentes no mundo.
O artifício metacancional utilizado na letra da canção "Arranjo" tematiza as técnicas de imitação, a necessidade de reconhecimento e a contribuição do novo à tradição (ao cantado). O sujeito aqui é a resposta possível ao canto do outro: a invenção que se realiza aprendendo o "ritmo moderado com ímpeto" do outro. O sujeito é transcanção.
Por um recalque tipicamente latino-americano, temos pânico de assumir nossa não-história, nossa genealogia. Forjamos uma tradição (essência, pureza) que não nos pertence. Indivíduos latino-americanos, temos à nossa disposição aquilo que os outros (outrora colonizadores) já cantaram. Estamos à frente, quando entendemos como isso se processa em nós.
Eis a contribuição (bela e/ou fera) que oferecemos ao pensamento do humano. Somos a materialidade da independência identitária (sempre anacrônica, porque atravessada por diversas vozes do passado) gestada nos signos e símbolos da dependência do canto alheio.
Dito de outro modo, tornamo-nos Ser-no-mundo, autores de nossas vidas, quando aceitamos (conscientes ou não) ser o arranjo (e aqui a letra da canção é sublime por trabalhar apenas com instrumentais do universo sonoro) que, em eterno retorno, engendramos.
Somos a "carnação da canção"; o ponto em que a imaterialidade de uma canção de presentifica; a tensão permanente entre ser um simples eu-cancional (cantado) e uma transcanção (cantante: transvaloração do cantado). Somos o arranjo.



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Arranjo
(Zélia Duncan / Isabella Taviani)

Me escala, me nota, me harmoniza
Me canta, me escreve, me improvisa
Sou frase sua, me continua
Faz o contra-ponto
Cifra o caminho onde eu te encontro

Aprendo seu ritmo moderado com ímpeto
Me afino em acordes alterados
Pela manhã peço uma pausa longa
De longo efeito
E te beijo em silêncio

Me orquestra, me sola
"Solamente una vez"
Nessa canção que você fez