21 janeiro 2011

O filho do pato

O disco Estudando a bossa (2008) é Tom Zé revelando-nos mais uma vez suas inquietantes ideias sonoras sobre a canção. O tropicalista despojado de qualquer atitude de discípulo destrona a bossa nova pai-e-mãe, refaz caminhos melódicos solares e percorre graças e otimismos temáticos para ensaiar e cantar a musa bossa nova.
O disco Estudando a bossa tenta (ensaia) cortar os laços de paternidade. Ele vai contra a corrente dos que apenas repetem gastos discursos de louvor a bossa nova a fim de exercitar o pensamento de todos os músculos que sentem a genealogia da canção popular brasileira não como evolução, mas como um eterno retorno em perspectiva.
Sem dúvidas, "O filho do pato", de Tom Zé e Arnaldo Antunes, estabelece direta intertextualidade com o clássico bossanovista "O pato". Mas é no derradeiro verso da canção que encontramos uma possível chave de interpretação: "ti-tico no fubaco, ensaiando o vocal". Chave que seja para entrar nas duas canções.
A canção "O filho do pato" é um ensaio sobre os modos de vocalização da bossa nova e sua vontade de desfazer o império passional de até então. Ao invés das inflexões melódicas e dos excessos semânticos, o sujeito investe nos acordes dissonantes.
A performance vocal titubeante (idas, vindas e torneios sonoros: fragmentos de sons) dos intérpretes Tom Zé e Márcia Castro de "O filho do pato" rompem com qualquer intenção estática que por ventura possa surgir no ouvinte. O sujeito quer incomodar: forçar o movimento e o pensamento. Sem desprezar os conteúdos emotivos, o sujeito quer o corpo e o cérebro do ouvinte em movimento.
Para tanto, ele figurativiza situações metaforizadas do cotidiano e chama atenção para a fala ordinária. Na voz que canta há uma cadeia proliferante de avanços, recuos, cortes e justaposições de sons comuns na fala cotidiana; na voz do indefectível pato.
A paródia irônica porque amorosa feita à canção "O pato", de Vinicius de Moraes, Toquinho e Paulo Soledade, é pontual e clara: reconstrói o conteúdo infantil ao tratar do afeto e usa uma dicção também infantil, desautomatizada e livre. Tudo para mostrar a radicalização estética promovida pela bossa nova: ao invés do excesso, precisão.




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O filho do pato
(Tom Zé / Arnaldo Antunes)

Tico-tico no fubaco
no fubico fubá
tico-tico no fubaco
ensaiando o vocal

0 filho do pa...pati-quitu, pati-quitu
também cantava alegremen... menti-quitu, menti-quitu
e a marrequinha de repen... penti-quitu, pati-quitu
pati-caiu também no samba
pra no samba sambar

E o filho do gan... eh eh eh
afo-fo-fo ba-ba damen... men men men te
qui-qui ri-ri ti-ti-mo quen... quiqui quen!!!
ga-gaguejou a pata n'água da lagoa
pra batucar

Mas a rosa que era famosa
em verso e prosa
não pôde dançar
porque estava bem presa no galho plantada na terra
suspensa no ar
sem sair do lugar
se abriu para o céu e rezou pro vento andar
ti-tico tico no fubaco

0 pato-pai
vinha voltando do batente
quando aquele contraparente
bateu na boca um reco-reco
para a turma dedar

E o neto do cisne
também achando que era gente
pensou a coisa diferente;
abriu o bico para o tico-tico
pôr no fubá

Mas a rosa formosa, cheirosa,
urbana da roça queria dançar
e piscando os olhinhos, charmosa,
sacou do chicote pro vento enquadrar
e se despetalou, despernou, desbraçou e ordenou pro vento
andar

ti-tico no fubaco, ensaiando o vocal

14 janeiro 2011

Violão e voz

No disco Ana Rita Joana Iracema e Carolina (2001), Ana Carolina imprime um claro gesto autoral: a feitura de um rock-samba-trágico que, atravessado pela potência da voz da cantora, que em si guarda o poder de divas dadivosas do passado, desliza entre belezas e delírios de eus múltiplos.
A canção "Violão e voz", de Ana Carolina, é metacanção na medida em que condensa filigranas de outras tantas canções que povoam o imaginário do ouvinte: de Noel Rosa e Geraldo Pereira a Chico Buarque, para ficarmos nas referências mais visíveis.
Aliás, o cancioneiro de Chico Buarque atravessa todo o disco, a partir do título, já que todas as mulheres ali citadas foram cantadas por ele. Ana, Rita, Joana, Iracema e Carolina são mulheres de Chico que Ana Carolina toma como mote para se multiplicar em outras a cada canção, sugerindo que não somos um só, mas muitos: cada um é uma legião.
Se Chico sempre soube combinar-se com Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Ana recolhe todos e compõe um samba ao estilo batucada informal em caixa de fósforo. Ela agrega a isso tudo a voz não menos poderosa de Alcione. O resultado são duas vozes em acordo íntimo na busca da alegria-trágica do canto e do cantar.
Se em "Samba e amor", de Chico Buarque, o sujeito faz "samba e amor até mais tarde", em "Violão e voz" o sujeito faz "samba e amor a qualquer hora": desconstrói tempo e espaço, suspende o juízo para desenhar sua condição solitária. Para tanto faz uma bonita citação literária: a presença fantasmagórica do livro Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez.
"Ficar sozinho é pra quem tem coragem", diz o sujeito. Corajoso, ele assume sua condição e faz do canto um diálogo singular com a vida: "Não quero viver a exemplo da vida dos santos". O sujeito se entrega à canção: torna-se instrumento da paz do outro: nós, ouvintes.
Instrumento de quereres diversos, o sujeito é o tambor: pulso e tradição de si, do samba, de muitos. Por isso ele faz samba e amor a qualquer hora. Ele une e canta versos de "Pisei num despacho", de Geraldo Pereira e Elpídio Vianna, com Noel Rosa - o samba com feitiço aliado ao samba sem farofa e vela - procurando a cadência perfeita para dizer: "Eu sou como um tambor que ressoa mas dentro dele que dá pessoa".

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Violão e voz
(Ana Carolina)

Eu faço samba e amor a qualquer hora
De madrugada tem batucada
E eu tô afim de você
Ficar parado eu não aguento
Não quero viver a exemplo da vida dos santos
Eu não moro em São Francisco
Eu não moro em São Francisco
E você faça de mim um instrumento de sua paz
E sabe do que mais
Eu sou como um tambor que ressoa mas dentro
Dele
que dá pessoa

Eu faço samba e amor a qualquer hora
Porque não agora
Eu não posso perder você
Como quem perde um real e não nota não vê
Sem querer pisei num despacho
E saí cantando
Geraldo Pereira
Sem querer eu pisei num jardim
E saí cantando
Noel Rosa

Eu tenho você no coração
Ficar sozinho é pra quem tem coragem
Eu vou ler meu livro Cem anos de solidão
E nada melhor que ficar a sós com a voz e o violão
E nada melhor que ficar a sós com violão e voz

07 janeiro 2011

Peixes

No final da audição da canção "Peixes", de Nenung, gravada por Mariana Aydar no disco Peixes pássaros pessoas (2009), o ouvinte chega a conclusão de que pessoas são peixes (sempre) fora d'água, ou seja, são pássaros mudos. Obviamente, esta é uma conclusão ligeira, apesar de complexa, e a própria canção tenta construí-la e desconstruí-la.
O importante é perceber que a canção coloca nas garras das pessoas a tarefa de se autocantar: ser sereias de si. Ela entrega às pessoas a responsabilidade de ser peixes, pássaros e pessoas: seres híbridos. E o sujeito da canção faz isso embaralhando as tradições sobre o mito das sereias.
A voz melodiosa - tão essencial à vida (à fama) quanto destruidora, mortal - e a cauda de peixe são alguns dos elementos que caracterizam este ser encantador e ameaçador. No entanto, não podemos esquecer que a iconografia da Antiguidade apresenta as sereias como seres marinhos alados: com garras de pássaro (harpias: aves de rapina); e assustadores. Ou seja, o recurso sedutor é mesmo a voz (o canto) e não a beleza física das entidades: muitas vezes representadas com barbas.
O jogo erótico não passa pela sedução visual. A voz com o conhecimento sobrenatural penetra o corpo pelos ouvidos: a sereia diz ao indivíduo aquilo que ele, ordinário e comum, não sabe: ela revela ao homem o próprio homem, em um luxo da experiência das sensações de si.
Importa lembrar o poema A argonáutica, de Apolônio de Rodes, em que, para sobreviver à sedução irresistível, o próprio Orfeu usa a lira para eclipsar as sereias. O poema nos sugere que para resistir ao canto sedutor é preciso um sobrecanto, um canto paralelo: a luta erótica da voz contra (e a favor de) a voz. Algo difícil de ser entendido numa sociedade em que a audição (a potência vocal) perdeu demasiado espaço (principalmente) para a visão.
Com isso, em processo complexo, aliado à imagem judaica-cristã da mulher como causa da queda do homem, a sereia perde o conhecimento que lhe definia e atravessa nosso tempo apenas como ser belo e sedutor. Mesmo que a força da voz ainda se destaque, hoje ela divide espaço com o apelo da beleza física que invade a imaginação e o pensamento sobre as sirenas: a linda e sexual mulher não humana com calda de peixe.
Nunca é demais lembrar que mais do que o canto (ou em proporções iguais) o silêncio sirênico é terrível. Afinal, precisamos ser cantados. Cheio de metáforas, o que o sujeito da canção "Peixes" nos sugere é que este canto pode ser construído por cada um: significar e singularizar a própria vida.
O sujeito desenhado por Mariana Aydar faz isso acompanhando a banda passar (sim, a princípio a melodia lembra uma marcha), mas, por fim, exorcizando-se com um grito aterrador e introdutor do sujeito (nós: híbridos - peixes, pássaros, pessoas) na vida.




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Peixes
(Nenung)

Peixes são iguais a pássaros
Só que cantam sem ruído
som que não vai ser ouvido

Voam águias pelas águas
Nadadeiras como asas
que deslizam entre nuvens

Peixes, pássaros, pessoas
nos aquários, nas gaiolas
pelas salas e sacadas
afogados no destino
de morrer como decoração das casas

Nós vivemos como peixes
com a voz que em nós calamos
com essa paz que não achamos

Nós morremos como peixes
O amor que não vivemos
Satisfeitos mais ou menos
Todas as iscas que mordemos
Os anzóis atravessados
nossos gritos abafados

03 janeiro 2011

Rainha do Egito

Lançada em 1976, no disco Mil e uma noites de Bagdá, a canção "Rainha do Egito", de Jorge Mautner, recebeu uma gostosa releitura feita por Márcia Castro em Pecadinho (2007).
A versão de Márcia, uma cancionista lúcida e apaixonada pela canção, mantem e confirma o tom debochado, porém a um grau abaixo da versão de Mautner, que destrona o fantasma épico e a historiografia linear, para coroar e apontar uma genealogia (uma eterna, cíclica e circular criação) do humano.
É deste modo que o sujeito de "Rainha do Egito" compõe seu pecadinho: tomar para si delirantes significantes que, na história, desenham a "verdadeira" rainha de lá. Enquanto o sujeito daqui é "cartomante de esquina" e "bailarina de um cabaré".
Com mira e suingue tropicais (um ouvido nos sambas, frevos e batuques; e um ouvido nas disposições eletrônicas atuais), além de uma voz singular, Marcia Castro afetada e é afetada pelo desbunde do hipertropicalista Jorge Mautner: homenageia-o e recoloca-o na genealogia sempre em progresso da canção popular.
Cheia de charme, a voz de Márcia dá vida ao sujeito-rainha-diaba: "Sou uma dessas meninas que namora a lua e o sol (...) Porque o ser humano, seja homem ou mulher é uma eterna criação", diz. Márcia investe em gestos vocais que sensualizam os mitos cantados e põe o ouvinte para dançar: "Tudo menina, menino jóia dançando".
A introdução grandiloquente logo dá início ao nosso dengo brejeiro, praieiro e tropical. Aliás, importa perceber, como apontei acima, que na interpretação de Márcia há menos melancolia do que na versão de Mautner. O que ilumina outros sentidos da canção: outras intenções do sujeito. Afinal, seja como for, o que o sujeito quer é fazer da barra pesada que sempre está chegando mais um motivo de alegria, festa e fé na dança das certezas.




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Rainha do Egito
(Jorge Mautner)

Sou a rainha do Egito
Sou a filha do faraó
Sou uma dessas meninas
Que namora a lua e o sol

Sou cartomante de esquina
Sou bailarina de um cabaré
Sou uma dessas meninas
Que anda descalça e a pé

Me mandando pela louca madrugada
Com um cigarro aceso em cada mão
Porque o ser humano, seja homem ou mulher
É uma eterna criação

Posso te beijar agora
Pro zig zag poder ir embora
Posso te beijar agora
Pro zig zag poder ir embora

É a barra pesada que está chegando
É a barra pesada que está chegando
Tudo menina, menino jóia dançando
Tudo menina, menino jóia dançando